{"id":141078,"date":"2018-01-06T00:01:09","date_gmt":"2018-01-06T02:01:09","guid":{"rendered":"http:\/\/noticias.ambientebrasil.com.br\/?p=141078"},"modified":"2018-01-05T22:47:00","modified_gmt":"2018-01-06T00:47:00","slug":"precisamos-matar-os-animais-para-salva-los","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/clipping\/2018\/01\/06\/141078-precisamos-matar-os-animais-para-salva-los.html","title":{"rendered":"Precisamos matar os animais para salv\u00e1-los?"},"content":{"rendered":"

Em busca de \u00e1gua, os elefantes iam surgindo em manadas enrugadas e se demoravam perto das depress\u00f5es poeirentas no terreno. Com a temperatura em setembro alcan\u00e7ando os 40\u00baC ao meio-dia, os paquidermes se moviam pela beirada do deserto de Kalahari, na Nam\u00edbia, em uma reserva de fauna silvestre, Nyae Nyae, uma \u00e1rea protegida e mantida pela comunidade local, cerca de 2 800 membros da etnia San que ali vivem em condi\u00e7\u00f5es in\u00f3spitas.<\/strong><\/p>\n

Os elefantes deixam um rastro de galhos quebrados e pilhas de excrementos mornos. Quando farejam o nosso cheiro, de suor mesclado ao aroma das gram\u00edneas ressequidas pelo sol, eles irrompem em um ruidoso meio trote e somem de vista.<\/p>\n

Mais tarde, outros se materializam no horizonte, \u00e0 sombra das ac\u00e1cias. Embora fossem animais enormes, mal eram vis\u00edveis, e mesmo assim s\u00f3 para os olhos agu\u00e7ados de um homem baixo e musculoso chamado Dam \u2013 um rastreador do povo San que estava na parte traseira do Land Rover.<\/p>\n

\u201cOlifante!\u201d, exclamou com sotaque, debru\u00e7ando-se para fora no lado direito do jipe e espreitando os rastros na areia. Bateu com a m\u00e3o na porta e paramos com uma sacudida forte e abrupta. Dam saltou do ve\u00edculo, examinou uma pegada de bordas corrugadas e com o interior marcado por concavidades menores. A\u00ed acenou, e Felix Marnewecke, ca\u00e7ador profissional e guia desta expedi\u00e7\u00e3o, saiu pela porta do lado do condutor. Robusto, corado e loiro, com 40 e poucos anos, n\u00e3o poderia ser uma figura mais estereotipada, ainda mais porque usava shorts e chap\u00e9u de feltro. Marnewecke ficou contemplando a pegada por um instante, com express\u00e3o ir\u00f4nica, e assentiu com uma inclina\u00e7\u00e3o da cabe\u00e7a. A \u00e1rea des\u00e9rtica de Nyae Nyae n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 o lar das fam\u00edlias San, mas tamb\u00e9m dos derradeiros e maiores elefantes que ainda restam no planeta vivendo em condi\u00e7\u00f5es naturais. E aquela pegada era a prova.<\/p>\n

Todos n\u00f3s descemos do jipe, seguidos pelo rastreador que sempre chamam de Velho, de um aprendiz de rastreador, e de um outro san, que tinha a fun\u00e7\u00e3o de \u201cguarda-ca\u00e7a\u201d, ou seja, de assegurar que a ca\u00e7a fosse realizada de acordo com as normas e cotas da reserva. O \u00faltimo a enfrentar o calor\u00e3o abafado foi o pr\u00f3prio cliente, um empres\u00e1rio americano, que abriu a porta do passageiro e tirou do bagageiro a sua arma, que pesava cinco quilos e meio: um rifle feito sob medida, de cano duplo e calibre 12, para muni\u00e7\u00e3o .470 Nitro Express. Essas armas, que chegam a custar 200 mil d\u00f3lares, s\u00e3o as prediletas dos ca\u00e7adores de animais de grande porte devido ao seu \u201cpoder de parada\u201d (stopping power<\/em>, em ingl\u00eas), ou seja, a capacidade de imobilizar e matar um animal de grande porte. Afinal, obter trof\u00e9us de ca\u00e7a \u00e9 o que trouxe para c\u00e1 esse empres\u00e1rio. Um entusi\u00e1stico ca\u00e7ador cujas aventuras j\u00e1 o levaram \u00e0 \u00c1sia Central para abater carneiros-de-marco-polo a 4 500 metros de altitude, e tamb\u00e9m \u00e0 \u00c1frica atr\u00e1s de um leopardo, agora estava de volta a este continente para incluir os elefantes entre os seus feitos.<\/p>\n

Segundo Marnewecke, o pre\u00e7o atual de uma expedi\u00e7\u00e3o de 14 dias, com o abate de um elefante, gira em torno de 80 mil d\u00f3lares. O limite anual para ca\u00e7adas desportivas em Nyae Nyae, totalizando no m\u00e1ximo cinco elefantes abatidos, proporciona uma renda expressiva para o povo San. Parte da taxa de abate segue diretamente para os membros da comunidade, assim como para um fundo de conserva\u00e7\u00e3o da fauna silvestre na regi\u00e3o. Quanto aos elefantes, o cliente leva as presas para casa, mas toda a carne do animal \u00e9 consumida pelos San.<\/p>\n

Marnewecke e o seu cliente \u2013 que pediu para permanecer an\u00f4nimo, dada a natureza pol\u00eamica da ca\u00e7a aos elefantes \u2013 ergueram os rifles aos ombros e partiram atr\u00e1s de Dam, que saiu em disparada como uma lebre. Virando-se para tr\u00e1s, enquanto eu trope\u00e7ava tentando acompanh\u00e1-los, Marnewecke comentou: \u201cJuro que n\u00e3o tem outro rastreador t\u00e3o bom na \u00c1frica. Mesmo que tiver de seguir assim por 30 milhas [48 quil\u00f4metros], ele nunca desiste\u201d.<\/p>\n

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Desde Charles Darwin e John James Audubon,<\/strong> passando por Theodore Roosevelt, at\u00e9 Ernest Hemingway, os ca\u00e7adores mais conscientes h\u00e1 muito se consideram, antes de tudo, naturalistas e conservacionistas, comprometidos com a sustentabilidade das popula\u00e7\u00f5es de animais e a preserva\u00e7\u00e3o das \u00e1reas de ca\u00e7a. Esse v\u00ednculo tornou-se inextric\u00e1vel. Todos os anos, centenas de milh\u00f5es de d\u00f3lares arrecadados com impostos federais nos Estados Unidos financiam diretamente o manejo da fauna silvestre e atividades relacionadas. E qualquer pessoa que tenha o freezer repleto de carne de veado provavelmente vai lhe dizer que o ato de ca\u00e7ar na natureza o que se come no jantar \u00e9 algo bem mais ben\u00e9volo do que comprar no supermercado uma pe\u00e7a de carne embrulhada em pl\u00e1stico e resultante da cria\u00e7\u00e3o industrial de animais.<\/p>\n

No entanto, a ca\u00e7a desportiva na atualidade, sobretudo dos cinco grandes animais da \u00c1frica (elefante, le\u00e3o, leopardo, rinoceronte e b\u00fafalo-africano), levanta um conjunto mais amplo de quest\u00f5es morais e financeiras. A matan\u00e7a recreativa de animais em risco de extin\u00e7\u00e3o na natureza desperta uma oposi\u00e7\u00e3o feroz, ainda mais quando o animal tem at\u00e9 nome, como no caso do le\u00e3o Cecil. De acordo com as estimativas dos bi\u00f3logos, as perdas totais de mam\u00edferos de grande porte em \u00e1reas protegidas do continente africano chegaram a 60% entre 1970 e 2005. \u00c0 medida que as popula\u00e7\u00f5es desses animais se reduzem cada vez mais devido ao avan\u00e7o das atividades humanas, \u00e0s mudan\u00e7as clim\u00e1ticas e aos abates criminosos generalizados, h\u00e1 muitos ca\u00e7adores \u2013 como, por exemplo, o empres\u00e1rio americano em Nyae Nyae \u2013 que argumentam que o abate, com regras r\u00edgidas e em troca do pagamento de taxas elevadas, de elefantes machos j\u00e1 idosos constitui uma forma sustent\u00e1vel de prote\u00e7\u00e3o tanto da esp\u00e9cie como do h\u00e1bitat.<\/p>\n

Continuamos seguindo na esteira das pegadas. De tempos em tempos, Dam volta atr\u00e1s, circulando em meio ao p\u00f3, at\u00e9 que reduzimos o avan\u00e7o para um ritmo muito lento e cuidadoso. E ent\u00e3o, ao chegar no alto de um morrinho, n\u00f3s os vemos afinal, os esp\u00e9cimes de\u00a0Loxodonta africana<\/em> \u2013 e pareciam ser tr\u00eas machos, mastigando folhas e relva. Marnewecke tateou em busca dos bin\u00f3culos, e o cliente americano empunhou o rifle. Tudo se concentra agora em um \u00fanico ponto nervoso. Os elefantes-africanos chegam a viver at\u00e9 60 ou 70 anos, e aqueles que exibem as presas maiores costumam ter mais de 45 anos de idade. As presas s\u00e3o classificadas por seu peso, e todo animal com presas que parecem ter mais de 23 quilos (50 libras) \u00e9 considerado um alvo leg\u00edtimo pelos ca\u00e7adores. O empres\u00e1rio americano estava esperando topar com um elefante cujas presas pesassem mais de 32 quilos \u2212 mas aquelas do trio avistado eram pequenas demais. Marnewecke ent\u00e3o decidiu que n\u00e3o valia a pena, deu meia volta e caminhou de volta ao Land Rover. Ningu\u00e9m parecia decepcionado: s\u00f3 o fato de termos nos aproximado de animais t\u00e3o magn\u00edficos j\u00e1 havia sido uma emo\u00e7\u00e3o e tanto.<\/p>\n

\u201cO disparo \u00e9 s\u00f3 a etapa final de uma ca\u00e7ada de elefantes\u201d, conta Marnewecke. \u201cEu me sinto p\u00e9ssimo quando os elefantes s\u00e3o mortos, mas s\u00e3o eles que pagam pela conserva\u00e7\u00e3o dos outros 2 500 esp\u00e9cimes que vivem por aqui. A ca\u00e7a desportiva \u00e9 o melhor modelo econ\u00f4mico hoje existente na \u00c1frica.\u201d Eu iria constatar em seguida que este argumento \u00e9 tido como insustent\u00e1vel por outros ca\u00e7adores e, tamb\u00e9m, por uma multid\u00e3o de ativistas e bi\u00f3logos. \u201cNo final, talvez seja a salva\u00e7\u00e3o desta regi\u00e3o \u2013 e tamb\u00e9m dos elefantes.\u201d Rodeado pelo calor e a poeira do Kalahari naquele dia ensolarado, dando as costas para os elefantes, n\u00e3o pude deixar de me perguntar: mas ser\u00e1 assim mesmo? Pode a morte de cinco elefantes salvar outros 2 500? Ou, abordando a quest\u00e3o de outro modo: por que \u00e9 preciso matar os animais?<\/p>\n

Visto de um avi\u00e3o, o continente africano <\/strong>lembra uma miragem, com campinas verdejantes e dram\u00e1ticos vales de fratura, desertos imensos e rios caudalosos, vastas extens\u00f5es selvagens que parecem ser de ningu\u00e9m, despovoadas, ostensivamente esquecidas de tudo e de todos. De um relance, ele pode se tornar um reposit\u00f3rio de todas as ideias que nos ocorram sobre a natureza em seu estado original. Na realidade, por\u00e9m, hoje n\u00e3o resta no continente nenhum trecho n\u00e3o reivindicado, que n\u00e3o esteja demarcado, explorado economicamente ou n\u00e3o seja motivo de disputas. Os animais que perambulam pelo interior africano foram convertidos em mercadorias \u2212 como parte de um novo tipo de consumismo \u2212, foram negociados e vendidos, suas caracter\u00edsticas exploradas ao m\u00e1ximo e contrastados uns com os outros, sua sobreviv\u00eancia uma quest\u00e3o dependente da demanda, dos caprichos e dos c\u00e1lculos humanos. Os animais de grande porte s\u00e3o, para a \u00c1frica, um recurso tal como o petr\u00f3leo \u2013 e tamb\u00e9m um dia v\u00e3o acabar.<\/p>\n

A ca\u00e7a desportiva, tendo como objetivo a obten\u00e7\u00e3o de trof\u00e9us \u2013 o abate de grandes animais para extrair-lhes chifres, presas, peles, ou cabe\u00e7as que depois s\u00e3o empalhadas \u2013 \u00e9 atualmente um setor movido pela busca de lucros, com movimenta\u00e7\u00e3o anual de cerca de 1 bilh\u00e3o de d\u00f3lares, em alguns casos sob a supervis\u00e3o de governos corruptos. Na \u00c1frica subsaariana, muitos pa\u00edses permitem esse tipo de ca\u00e7a, com graus variados de transpar\u00eancia e controle, fixando cotas anuais concebidas para refletir a situa\u00e7\u00e3o das esp\u00e9cies, e estabelecendo controles para preservar as popula\u00e7\u00f5es mais vulner\u00e1veis. A \u00c1frica do Sul, por exemplo, hoje n\u00e3o permite mais a ca\u00e7a de leopardos. Desde 1977, o Qu\u00eania pro\u00edbe todo o tipo de ca\u00e7a desportiva. E Botsuana, um pa\u00eds de fauna silvestre comparativamente abundante, implantou em 2014 um veto tempor\u00e1rio \u00e0 ca\u00e7a em \u00e1reas controladas pelo governo.<\/p>\n

No passado, a \u00c1frica dava a impress\u00e3o de ter \u201cum suprimento inesgot\u00e1vel de natureza\u201d, comenta o bi\u00f3logo americano Craig Packer, um especialista em le\u00f5es que viveu e trabalhou no continente por mais de quatro d\u00e9cadas. No entanto, diz ele, desde 10 mil metros de altitude, \u00e9 \u00f3bvio que os h\u00e1bitats naturais est\u00e3o encolhendo. \u201cOs le\u00f5es est\u00e3o de fato se tornando uma esp\u00e9cie amea\u00e7ada, e os ca\u00e7adores n\u00e3o deveriam abater esses animais por esporte, a menos que possam fornecer ind\u00edcios conclusivos de que isso tem um efeito salutar na conserva\u00e7\u00e3o da esp\u00e9cie.\u201d<\/p>\n

Os bi\u00f3logos recorrem \u00e0 mesma argumenta\u00e7\u00e3o para se oporem \u00e0 ca\u00e7a de outros animais de grande porte, entre os quais os elefantes, cujas popula\u00e7\u00f5es diminu\u00edram acentuadamente em todo o continente. A demanda por chifres de rinocerontes, presas de elefantes e ossos de le\u00f5es, alimentada sobretudo pelos mercados asi\u00e1ticos, desencadeou uma catastr\u00f3fica onda de mortic\u00ednios criminosos. Por outro lado, trata-se de uma quest\u00e3o complexa, pois, em alguns locais, popula\u00e7\u00f5es espec\u00edficas, como no caso dos elefantes de Nyae Nyae, est\u00e3o prosperando em uma situa\u00e7\u00e3o na qual h\u00e1 ca\u00e7a desportiva.<\/p>\n

\u201cSe a gente acabar com as reservas de ca\u00e7a na Nam\u00edbia\u201d, comenta Packer, \u201cprovavelmente elimina tamb\u00e9m toda a fauna silvestre e s\u00f3 vai ter rebanhos de gado.\u201d Na opini\u00e3o de Packer, o salvamento de um animal individual n\u00e3o \u00e9 o mais importante: crucial mesmo \u00e9 proteger, como um todo, as popula\u00e7\u00f5es geneticamente vi\u00e1veis. \u201cN\u00e3o sou contra a ca\u00e7a, mas \u00e9 preciso chegar a um consenso\u201d, diz. Na estimativa dele, contudo, tal consenso n\u00e3o fica exatamente entre as posi\u00e7\u00f5es opostas, pois est\u00e1 convencido de que a ca\u00e7a desportiva tem um valor apenas marginal no esfor\u00e7o mais amplo de conserva\u00e7\u00e3o na \u00c1frica.<\/p>\n

Por outro lado, ca\u00e7adores e autoridades governamentais costumam citar uma pol\u00eamica estimativa da Safari Club International Foundation, uma organiza\u00e7\u00e3o pr\u00f3-ca\u00e7a cujo objetivo declarado \u00e9 promover a conserva\u00e7\u00e3o e a educa\u00e7\u00e3o, segundo a qual os cerca de 18 mil ca\u00e7adores esportivos que v\u00e3o ao sul e ao leste da \u00c1frica todos os anos contribuem com 436 milh\u00f5es de d\u00f3lares para o PIB da regi\u00e3o. De acordo com a Humane Society International, por\u00e9m, o valor para essas regi\u00f5es n\u00e3o passaria de 132 milh\u00f5es de d\u00f3lares, ou 0,03% do PIB.<\/p>\n

Em 2013, em uma coluna no\u00a0New York Times<\/em>, o respons\u00e1vel pela fauna silvestre da Tanz\u00e2nia, Alexander Songorwa, afirmou que os ca\u00e7adores que participam de saf\u00e1ris de 21 dias pagaram individualmente taxas no valor de at\u00e9 10 mil d\u00f3lares, injetando 75 milh\u00f5es de d\u00f3lares na economia do pa\u00eds entre 2008 e 2011. Packer, por sua vez, lembra que os 300 mil quil\u00f4metros quadrados de \u00e1reas de ca\u00e7a na Tanz\u00e2nia necessitam de investimentos anuais da ordem de 600 milh\u00f5es de d\u00f3lares, e que \u201cn\u00e3o d\u00e1 para conseguir isto abatendo le\u00f5es a 10 mil d\u00f3lares por cabe\u00e7a\u201d.<\/p>\n

Para alguns, o debate em torno da ca\u00e7a n\u00e3o passa de uma tentativa, por parte dos ambientalistas ocidentais, de impor \u00e0 \u00c1frica a sua agenda \u2013 uma forma de neocolonialismo, na opini\u00e3o de Marnewecke. \u201cDe onde algu\u00e9m tira o direito de, sentado em outro continente, vir aqui dizer como devemos fazer o manejo da nossa fauna silvestre?\u201d Os ca\u00e7adores insistem que, com todos os operadores pagando para atuar nas reservas e os ca\u00e7adores pagando taxas sobre cada animal abatido, o setor de fato vem realizando contribui\u00e7\u00f5es financeiras significativas para o continente e a conserva\u00e7\u00e3o dos h\u00e1bitats \u2013 ao passo que os opositores da ca\u00e7a se limitam a fazer barulho.<\/p>\n

Quanto ao destino das taxas pagas pelos ca\u00e7adores, no melhor dos casos \u00e9 dif\u00edcil determinar o que acontece \u2013 e, no caso das cleptocracias, imposs\u00edvel. Seja como for, diz Packer, quanto ao financiamento das iniciativas de prote\u00e7\u00e3o aos le\u00f5es, \u201ca quantidade de recursos gerada pela ca\u00e7a desportiva \u00e9 t\u00e3o insatisfat\u00f3ria que n\u00e3o surpreende nada que, a despeito da ca\u00e7a ser permitida nesses pa\u00edses, tenha ocorrido uma queda brutal na popula\u00e7\u00e3o de le\u00f5es\u201d. De acordo com a Uni\u00e3o Internacional para a Conserva\u00e7\u00e3o da Natureza (IUCN, na sigla em ingl\u00eas), que faz o monitoramento das popula\u00e7\u00f5es animais, a quantidade de le\u00f5es nos cinco grupos populacionais existentes na Tanz\u00e2nia caiu nada menos que dois ter\u00e7os de 1993 a 2014.<\/p>\n

No entanto, os ca\u00e7adores insistem que ajudaram no financiamento de incont\u00e1veis recursos \u2013 desde postos de sa\u00fade, escolas e po\u00e7os d\u2019\u00e1gua at\u00e9 assist\u00eancia pr\u00e1tica contra ca\u00e7adores ilegais \u2212, ao mesmo tempo que teriam um impacto menor no ambiente do que a alternativa frequentemente citada \u00e0 matan\u00e7a dos animais: a dos saf\u00e1ris fotogr\u00e1ficos. De acordo com a Organiza\u00e7\u00e3o Mundial do Turismo, da ONU, 35,4 milh\u00f5es de pessoas visitaram a \u00c1frica subsaariana em 2015, gastando 24,5 bilh\u00f5es de d\u00f3lares. E excurs\u00f5es concebidas para uma clientela mais exigente \u2013 que faz quest\u00e3o de banhos quentes, lautas refei\u00e7\u00f5es e coquet\u00e9is no fim do dia \u2013 requerem mais infraestrutura e equipamentos, e por vezes at\u00e9 uma frota de ve\u00edculos.<\/p>\n

O grande perigo, na concep\u00e7\u00e3o de muitos ca\u00e7adores, \u00e9 que um volume excessivo de turistas acabe por inviabilizar a pr\u00f3pria experi\u00eancia que os leva \u00e0 regi\u00e3o. \u201cO Serengeti \u00e9 deslumbrante\u201d, diz Natasha Illum-Berg, uma ca\u00e7adora profissional de b\u00fafalos que nasceu na Su\u00e9cia e hoje vive na Tanz\u00e2nia, e que, tal como Marnewecke, proporciona aos seus clientes \u201cexperi\u00eancias de ca\u00e7a\u201d e trof\u00e9us. \u201cA cratera Ngorongoro \u00e9 algo milagroso. Mas todos esses parques nacionais est\u00e3o repletos de vans com gente que faz turismo fotogr\u00e1fico \u2013 \u00e9 incr\u00edvel\u201d, diz ela, ressaltando que as vans t\u00eam um impacto acentuado nessas \u00e1reas naturais famosas. \u201cMas e quanto \u00e0s outras \u00e1reas?\u201d, indaga. \u201cQuanta gente j\u00e1 foi \u00e0 regi\u00e3o na qual costumo trabalhar, com seus 1300 quil\u00f4metros quadrados? Neste ano, n\u00e3o mais do que 20 pessoas.\u201d Sem a ca\u00e7a desportiva, argumenta Illum-Berg, n\u00e3o haveria como coibir os ca\u00e7adores ilegais, nem como viabilizar qualquer tipo de manejo. \u201c\u00c9 o que sempre digo: basta que apresentem uma ideia melhor do que a ca\u00e7a, e que seja uma ideia sustent\u00e1vel. Pois, no final, a pergunta sempre \u00e9: quem vai pagar a conta?\u201d<\/p>\n

O ind\u00edcio mais antigo de um elefante morto<\/strong> por m\u00e3os humanas remonta a 14 mil anos atr\u00e1s, e veio de um p\u00e2ntano de argila azulada na Sib\u00e9ria. A coluna vertebral de um mamute-lanoso, achada na conflu\u00eancia dos rios Ob e Irtysh, parece ter sido penetrada por uma arma confeccionada por m\u00e3os humanas, deixando resqu\u00edcios de pedra em forma de lascas no interior de uma das v\u00e9rtebras. As presas desse animal, disso temos certeza, n\u00e3o acabaram em uma sala de trof\u00e9us na caverna do ca\u00e7ador.<\/p>\n

No entanto, a ca\u00e7a \u00e9 mais do que uma compensa\u00e7\u00e3o inevit\u00e1vel na luta pela sobreviv\u00eancia. A certa altura no desenvolvimento da nossa consci\u00eancia, o resultado das ca\u00e7adas passou a se refletir na posi\u00e7\u00e3o social, virilidade e poder dos ca\u00e7adores. Pain\u00e9is ass\u00edrios esculpidos em 650 a.C. mostram le\u00f5es libertados de jaulas para serem trucidados por um rei conduzindo um carro de combate. Para os massai, na \u00c1frica, h\u00e1 muito a morte de um le\u00e3o faz parte dos ritos de inicia\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Com o surgimento de armas mais eficientes, a ca\u00e7a tamb\u00e9m se tornou uma atividade desportiva, com as suas hierarquias de classe, microculturas e eventuais exemplos flagrantes de desperd\u00edcio. Em registros de 1790, referentes ao condado Snyder, no estado americano da Pensilv\u00e2nia, dois ca\u00e7adores abateram mais de mil animais, incluindo ursos-negros, pumas, linces-vermelhos, lobos, raposas, bis\u00f5es, cervos, veados, carcajus, assim como milhares de outros animais menores, aproveitando alguns deles e queimando a maioria das carca\u00e7as em fogueiras.<\/p>\n

Os te\u00f3logos foram os primeiros a criticar tais matan\u00e7as perdul\u00e1rias. No final do s\u00e9culo 18, um ca\u00e7ador brit\u00e2nico an\u00f4nimo publicou um livro, intitulado\u00a0O Manual do Esportista \u2212<\/em> Ensaio sobre a Ca\u00e7a<\/em>, propondo regras justas e \u201corienta\u00e7\u00f5es para os cavalheiros\u201d nos campos e nas florestas, que inclu\u00edam a limita\u00e7\u00e3o da quantidade de animais abatidos. Essas regras foram ampliadas e aperfei\u00e7oadas no decorrer do s\u00e9culo seguinte. Em 1887, Theodore Roosevelt (que depois seria presidente dos Estados Unidos) fundou o Boone and Crockett Club, reunindo importantes ca\u00e7adores americanos que estavam empenhados em preservar \u00e1reas intocadas do pa\u00eds e foram cruciais para a cria\u00e7\u00e3o do sistema de parques nacionais dos Estados Unidos.<\/p>\n

Em 1934, no Hotel Norfolk, em Nair\u00f3bi, no Qu\u00eania, um grupo de ca\u00e7adores ocidentais fundou a Associa\u00e7\u00e3o de Ca\u00e7adores Profissionais da \u00c1frica Oriental, que defendia uma esp\u00e9cie de c\u00f3digo de honra e lutou pela ado\u00e7\u00e3o de leis e regulamentos, incluindo a proibi\u00e7\u00e3o de abater quase todas as f\u00eameas, assim como animais em cacimbas ou pr\u00f3ximos dos ve\u00edculos. Contudo, ao mesmo tempo que se empenhavam para preservar as \u00e1reas de ca\u00e7a, os membros da associa\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m foram respons\u00e1veis por eliminar enormes quantidades de animais no continente africano. Atualmente, a tecnologia associada \u00e0 ca\u00e7a deu um salto qualitativo, com o uso de drones, v\u00eddeos das ca\u00e7adas e rifles de grande pot\u00eancia equipados com miras a laser.<\/p>\n

Por outro lado, as \u201cfotos de ca\u00e7a\u201d \u2013 imagens em que os ca\u00e7adores aparecem ao lado dos animais abatidos \u2013 tamb\u00e9m se propagam pelas redes sociais e provocam revolta entre os ativistas de direitos animais e o p\u00fablico em geral. Em junho de 2015, as pessoas ficaram chocadas quando um dentista de Minneapolis, Walter Palmer, ca\u00e7ou e matou Cecil, um le\u00e3o famoso em Zimb\u00e1bue. E a pol\u00eamica ressurgiu, em julho de 2017, quando o filho de Cecil, Xanda, foi morto durante um saf\u00e1ri de ca\u00e7a legal.<\/p>\n

Com mais da metade da popula\u00e7\u00e3o mundial vivendo em cidades, o relacionamento com a natureza est\u00e1 se tornando cada vez mais divorciado da nossa realidade cotidiana. Hoje, cada vez menos nos vemos como parte da natureza, dos campos e das matas tropicais \u2013 e cada vez mais como consumidores desse mundo. No entanto, ao ingerirmos carne e usarmos produtos de couro, tamb\u00e9m somos ca\u00e7adores em certa medida.<\/p>\n

No interior da comunidade de ca\u00e7adores, a nossa mentalidade de abocanhar tudo e depressa \u2013 a certeza de que temos o direito de consumir tudo \u2013 come\u00e7ou a alcan\u00e7ar n\u00edveis preocupantes. Na tentativa de evitar as demoras e despesas de um saf\u00e1ri na \u00c1frica, no qual costumam ser preservadas as regras de uma ca\u00e7ada justa, alguns ca\u00e7adores v\u00eam preferindo um tipo artificial de ca\u00e7a \u2013 a matan\u00e7a em \u00e1reas confinadas de animais muitas vezes criados de prop\u00f3sito para isso, a chamada \u201cca\u00e7a em conserva\u201d, ou \u201cca\u00e7a enlatada\u201d, da express\u00e3o em ingl\u00eas\u00a0canned hunting<\/em> \u2212, assim como a ca\u00e7a com iscas, o arrebanhamento de animais por meio de helic\u00f3pteros, ou os disparos feitos de dentro dos Land Cruisers. Na Tanz\u00e2nia, circularam relatos de ca\u00e7adores estrangeiros abatendo animais, incluindo f\u00eameas gr\u00e1vidas, com fuzis autom\u00e1ticos AK-47. Em uma reserva de ca\u00e7a denominada Loliondo, que o governo tanzaniano arrendou por longo prazo a autoridades dos Emirados \u00c1rabes Unidos, os massai que ali vivem contam de avi\u00f5es a jato de carga que decolam com todo o tipo de animais, vivos e mortos. Em artigo recente na revista\u00a0Biology Letters<\/em>, cientistas sociais descrevem uma gera\u00e7\u00e3o de ca\u00e7adores acostumados a se vangloriar de seus feitos, exibindo nas redes sociais fotos em que aparecem junto aos animais abatidos, \u00e0s vezes em poses que menosprezam a dignidade do animal que acabaram de matar.<\/p>\n

Na \u00c1frica do Sul, que abriga cerca de 2 mil le\u00f5es selvagens, esse tipo desregrado de ca\u00e7a ao le\u00e3o tornou-se um neg\u00f3cio de mais de 100 milh\u00f5es de d\u00f3lares, com cerca de 200 locais onde s\u00e3o criados cerca de 6 mil felinos de grande porte especialmente para serem mortos em condi\u00e7\u00f5es facilitadas. De acordo com o sul-africano Ian Michler, um fot\u00f3grafo e organizador de saf\u00e1ris que investigou o setor de \u201cca\u00e7a enlatada\u201d para o document\u00e1rio\u00a0Blood Lions<\/em>, de 2015, por vezes os animais crescem enjaulados e se reproduzem em condi\u00e7\u00f5es deplor\u00e1veis. Os filhotes s\u00e3o separados das m\u00e3es e levados a zool\u00f3gicos onde servem de atra\u00e7\u00e3o para crian\u00e7as. Quando chegam \u00e0 idade adulta, muitos dos machos s\u00e3o abatidos a tiros, por taxas de \u201cca\u00e7a\u201d bem mais reduzidas do que aquelas pagas em um saf\u00e1ri normal de 21 dias (de 5 mil a 15 mil d\u00f3lares, em vez de 50 mil d\u00f3lares ou mais). E \u00e9 praticamente certo que o ca\u00e7ador v\u00e1 para casa com o seu trof\u00e9u. \u201c\u00c9 estarrecedor\u201d, comenta Michler. \u201c\u00c9 algo perverso.\u201d<\/p>\n

Essa ca\u00e7a confinada tem ainda outro efeito delet\u00e9rio. Enquanto os ca\u00e7adores voltam para casa felizes com a pele e a cabe\u00e7a do animal, e as garras e os dentes s\u00e3o vendidos \u00e0s lojas para turistas em Nair\u00f3bi e Zanzibar, atualmente a maior demanda \u00e9 pelos ossos. Estes s\u00e3o exportados para a \u00c1sia, onde entram na composi\u00e7\u00e3o seja de rem\u00e9dios tradicionais, seja de \u201cvinho de osso de tigre\u201d, produzido com ossos mo\u00eddos de animais misturados a ervas chinesas, e vendido por pre\u00e7os elevados como t\u00f4nico e afrodis\u00edaco. Neste ano, as autoridades sul-africanas autorizaram a exporta\u00e7\u00e3o de 800 esqueletos de le\u00f5es, e a grande preocupa\u00e7\u00e3o de bi\u00f3logos, conservacionistas e defensores dos direitos dos animais \u00e9 que, ao legitimar e permitir tal com\u00e9rcio, o pa\u00eds incentive tanto a demanda por ossos de le\u00f5es, como o mortic\u00ednio dos 20 mil e tantos le\u00f5es selvagens que restam no continente africano.<\/p>\n

Na verdade, alguns dos cr\u00edticos mais veementes contra essas pr\u00e1ticas s\u00e3o os pr\u00f3prios ca\u00e7adores. \u201cSe n\u00e3o conseguirmos convencer a maioria das pessoas de que a ca\u00e7a \u00e9 moralmente aceit\u00e1vel\u201d, afirma Kai-Uwe Denker, um renomado ca\u00e7ador profissional na Nam\u00edbia, \u201cn\u00e3o nos resta nenhum futuro.\u201d Diante da p\u00e9ssima publicidade e do p\u00e9ssimo comportamento, alguns ca\u00e7adores tiveram de recorrer a um argumento econ\u00f4mico \u2013 o de que a presen\u00e7a deles na \u00c1frica traz empregos, e que \u00e9 uma estrat\u00e9gia vi\u00e1vel de combate \u00e0 pobreza. Mas n\u00e3o \u00e9 essa a opini\u00e3o de Denker. \u201cVejo um perigo muito grande quando se valoriza s\u00f3 o lado financeiro. A subsist\u00eancia, a gera\u00e7\u00e3o de renda, a cria\u00e7\u00e3o de empregos \u2013 tudo isso \u00e9 secund\u00e1rio. N\u00e3o d\u00e1 para justificar algo imoral com o apelo ao dinheiro.\u201d<\/p>\n

Ao conhecer Denker em um vale nos montes Erongo, onde vive a 40 quil\u00f4metros da civiliza\u00e7\u00e3o em uma casa que construiu, ele lamentou a intrus\u00e3o humana na paisagem africana. Segundo Denker, a ca\u00e7a, quando realizada de forma apropriada, permite que voc\u00ea estabele\u00e7a \u201cuma conversa com a sua pr\u00f3pria morte\u201d. Enquanto convers\u00e1vamos na varanda ensombrecida, o sol ressaltou um esbranqui\u00e7ado cr\u00e2nio de elefante ali perto, e o vento sacudiu os galhos da ac\u00e1cia, levando para longe uma certa estagna\u00e7\u00e3o do meio-dia que \u00e0s vezes toma conta do deserto. O tempo ali parecia pr\u00e9-hist\u00f3rico. Alto e magro, vestindo uma camisa rasgada e cal\u00e7\u00f5es curtos, Denker \u00e9 famoso por caminhar at\u00e9 65 quil\u00f4metros por dia durante uma ca\u00e7ada. E tamb\u00e9m por aderir a um r\u00edgido conjunto de princ\u00edpios, entre os quais est\u00e1 a ca\u00e7a de animais, como o elefante e o cudo, que perambulam livres em seu h\u00e1bitat tradicional, abatendo apenas os esp\u00e9cimes mais velhos e n\u00e3o reprodutores, independentemente de propiciarem ou n\u00e3o trof\u00e9us de ca\u00e7a.<\/p>\n

\u201cMuitos dos cr\u00edticos consideram a ca\u00e7a como algo pervertido\u201d, disse Denker. \u201cMas a ca\u00e7a em si n\u00e3o tem nada de perverso. \u00c9 algo que est\u00e1 em nossos genes. Se a ca\u00e7a \u00e9 imoral\u201d, prosseguiu, \u201ceu desisto dela de imediato. Mas vai ser o fim da natureza.\u201d<\/p>\n

Se paga, vale a pena.<\/strong> Esta \u00e9 uma frase que ouvi muitas vezes, em incont\u00e1veis discuss\u00f5es sobre a conserva\u00e7\u00e3o na \u00c1frica, em parte para descrever de que modo o dinheiro alterou as concep\u00e7\u00f5es dos moradores rurais no que se refere \u00e0 valoriza\u00e7\u00e3o dos animais de grande porte. Com demasiada frequ\u00eancia, as pessoas viram os elefantes destruindo as suas planta\u00e7\u00f5es, e algumas conheceram at\u00e9 mesmo a dor de perder filhos para um le\u00e3o furtivo e esfomeado. N\u00e3o h\u00e1 nessas \u00e1reas nenhuma mitifica\u00e7\u00e3o ou fantasia em rela\u00e7\u00e3o a esses animais, nenhum esfor\u00e7o para levantar fundos com base na difus\u00e3o de imagens fofas: ali um leopardo \u00e9 um assassino, e o rinoceronte, um destruidor de planta\u00e7\u00f5es. Para se protegerem desses inimigos, os moradores dos vilarejos muitas vezes matam a tiros ou com veneno esses invasores, sem demonstrar um pingo de sentimentalismo. Todavia, o que se argumenta \u00e9 que, se esses animais resultarem em benef\u00edcios financeiros para uma comunidade, esta vai se empenhar na conserva\u00e7\u00e3o e prote\u00e7\u00e3o deles.<\/p>\n

Isso \u00e9 algo que testemunhei em primeira m\u00e3o. Minha estada no Kalahari coincidiu com a contagem anual dos animais em Nyae Nyae, durante a qual 50 e tantos sans ficam acampados tr\u00eas noites perto de v\u00e1rias cacimbas, tentando estimar a quantidade de animais existentes naquela \u00e1rea de 9 mil quil\u00f4metros quadrados de areia, mato rasteiro e baob\u00e1s.<\/p>\n

Por mais fr\u00e1gil que seja esse ambiente, \u00e9 poss\u00edvel considerar Nyae Nyae como uma hist\u00f3ria de sucesso relativo, em parte porque as cotas de ca\u00e7a foram metodicamente monitoradas e elevadas ao longo dos anos. Houve momentos em que a cria\u00e7\u00e3o de gado chegou a amea\u00e7ar a reserva, mas os animais de grande porte retornaram, e o card\u00e1pio de presas acess\u00edveis aos ca\u00e7adores hoje inclui leopardos, cudos e gnus, que s\u00e3o abatidos em troca do pagamento de taxas estabelecidas por uma comiss\u00e3o de manejo constitu\u00edda por cinco membros da reserva. Os lucros s\u00e3o partilhados por toda a comunidade: no ano passado, em Nyae Nyae, cada indiv\u00edduo com mais de 18 anos recebeu cerca de 70 d\u00f3lares. \u201cN\u00f3s temos o suficiente\u201d, contou-me o chefe Bobo Tsamkxao, diante da sua casa em ru\u00ednas, com as suas esposas sentadas lado a lado em meio \u00e0s crian\u00e7as e \u00e0 sujeira. O esquema tamb\u00e9m prev\u00ea que os ca\u00e7adores profissionais contratem e treinem os moradores locais, e contribuam para os projetos de desenvolvimento como escolas e postos de sa\u00fade.<\/p>\n

Nyae Nyae foi a primeira reserva de ca\u00e7a, sob administra\u00e7\u00e3o da comunidade local, a ser criada na Nam\u00edbia, em 1998. A cada cinco anos, a reserva \u00e9 objeto de um leil\u00e3o, no qual os ca\u00e7adores profissionais fazem ofertas ao povo San com o intuito de arrematar o direito de atua\u00e7\u00e3o na \u00e1rea. No ano passado, o lance vencedor foi superior a 400 mil d\u00f3lares, um valor devido em grande parte ao fato de os elefantes terem se tornado t\u00e3o grandes e valiosos. A fim de recuperar esse dinheiro, cobrir as despesas e obter lucros, os operadores vendem s\u00e1faris de ca\u00e7a aos clientes. Muitos atuam em mais de uma reserva; alguns se juntam para controlar pequenos feudos.<\/p>\n

Quando l\u00e1 estive, em setembro de 2016, Marnewecke acabara de saber que fora vencido no leil\u00e3o e perderia o direito de atuar em Nyae Nyae ap\u00f3s aquela temporada. \u201cVou sentir saudade dos sans\u201d, comentou, mas n\u00e3o ficaria sem trabalho: havia outra reserva ao norte para mant\u00ea-lo ocupado. O que mais o preocupava era a fragilidade de Nyae Nyae, e a possibilidade de pessoas irrespons\u00e1veis ali introduzirem facilidades prejudiciais \u2013 como abrir novos caminhos pela reserva e, com isso, colocando em risco o seu equil\u00edbrio.<\/p>\n

Enquanto a Nam\u00edbia transferiu o manejo da fauna silvestre aos moradores locais, autoridades de outros pa\u00edses, como a Tanz\u00e2nia, adotaram uma solu\u00e7\u00e3o oposta, assumindo diretamente a propriedade e o arrendamento das \u00e1reas de ca\u00e7a. Para os cr\u00edticos, nenhum pa\u00eds deveria se imiscuir no neg\u00f3cio de vender e lucrar com animais mortos. Quando os cofres p\u00fablicos ficam vazios e faltam recursos, dizem eles, as cotas de ca\u00e7a s\u00e3o elevadas sem a menor considera\u00e7\u00e3o pelas dimens\u00f5es das popula\u00e7\u00f5es animais. E naquelas \u00e1reas de ca\u00e7a em que os recursos n\u00e3o foram reinvestidos, simplesmente n\u00e3o h\u00e1 mais fauna silvestre a ser ca\u00e7ada. Talvez esteja a\u00ed a explica\u00e7\u00e3o para o fato de 40% das reservas delimitadas na Tanz\u00e2nia terem ficado sem animais de ca\u00e7a nas \u00faltimas d\u00e9cadas. Um v\u00eddeo promocional que apareceu em 2014 mostra uma empresa de saf\u00e1ris, a Green Mile Safari, promovendo uma perturbadora expedi\u00e7\u00e3o para ca\u00e7adores dos Emirados \u00c1rabes Unidos. O ministro do Turismo e dos Recursos Naturais da Tanz\u00e2nia reconheceu que o grupo transgrediu diversas leis quando, entre outras coisas, disparou fuzis autom\u00e1ticos, abateu f\u00eameas e filhotes, e permitiu que um menor participasse da ca\u00e7ada. Em consequ\u00eancia, o governo proibiu que a Green Mile realizasse outros saf\u00e1ris no pa\u00eds em 2014. No ano passado, por\u00e9m, a permiss\u00e3o de funcionamento da empresa foi renovada, em meio a acusa\u00e7\u00f5es de corrup\u00e7\u00e3o. Nenhuma pris\u00e3o foi feita, e a Green Mile alega que o respons\u00e1vel foi um dos guias.<\/p>\n

No ecossistema da Reserva de Ca\u00e7a Selous, um valorizado destino para a ca\u00e7a desportiva, levantamentos a\u00e9reos estimam uma popula\u00e7\u00e3o de elefantes em torno de 15 mil esp\u00e9cimes, ao passo que em 2009 chegavam talvez a 50 mil animais. \u201cPor que a reserva Selous virou um campo de exterm\u00ednio?\u201d, pergunta a cientista Katarzyna Nowak, uma especialista em conserva\u00e7\u00e3o vinculada \u00e0 Universidade do Estado Livre, em Qwaqwa, na \u00c1frica do Sul. \u201cSe os ca\u00e7adores est\u00e3o vindo de todos os cantos do mundo, e o dinheiro arrecadado com taxas vem sendo usado na pr\u00f3pria reserva, para conserva\u00e7\u00e3o e combate \u00e0 ca\u00e7a ilegal, onde foram parar todos os elefantes?\u201d<\/p>\n

Para Craig Packer, a conserva\u00e7\u00e3o da fauna silvestre na \u00c1frica deve ser vista com pragmatismo: se os ca\u00e7adores est\u00e3o abatendo le\u00f5es \u201cpor um milh\u00e3o de d\u00f3lares e este dinheiro por le\u00e3o est\u00e1 indo diretamente para o manejo, ent\u00e3o as bases s\u00e3o s\u00f3lidas. Mas, na verdade, os le\u00f5es s\u00e3o mortos por dezenas de milhares de d\u00f3lares, e muito pouco vai para a conserva\u00e7\u00e3o.\u201d Com 2 bilh\u00f5es de d\u00f3lares por ano seria poss\u00edvel salvar e proteger a fauna silvestre nos parques nacionais africanos, avalia Packer. Mas esses recursos teriam de vir de parceiros internacionais como o Banco Mundial, os ecofilantropistas e as organiza\u00e7\u00f5es n\u00e3o-governamentais.<\/p>\n

Alguns ca\u00e7adores desportivos dizem que n\u00e3o \u00e9 justo que sejam culpabilizados. Seja o que for que se ache desse tipo de ca\u00e7a, n\u00e3o s\u00e3o eles que estabelecem o valor das taxas ou que determinam as cotas. Tampouco s\u00e3o respons\u00e1veis pela corrup\u00e7\u00e3o end\u00eamica em alguns pa\u00edses, mesmo que indiretamente contribuam para isto. Outros alegam que partilham da preocupa\u00e7\u00e3o dos ambientalistas com o colapso dos h\u00e1bitats e a queda das popula\u00e7\u00f5es. Segundo Kevin Reid, propriet\u00e1rio no Texas de uma fazenda de cria\u00e7\u00e3o de animais para serem ca\u00e7ados, ele cria esp\u00e9cies africanas amea\u00e7adas n\u00e3o s\u00f3 para o proveito de ca\u00e7adores desportivos, mas tamb\u00e9m para criar \u201cum reposit\u00f3rio de animais\u201d, entre os quais os \u00f3rix e os rinocerontes-brancos, de modo a possibilitar o repovoamento da \u00c1frica quando os atuais problemas estiverem solucionados. \u201cEstamos tentando reverter a extin\u00e7\u00e3o\u201d, diz Reid. Em mais uma ironia dessa quest\u00e3o, contudo, a quase extin\u00e7\u00e3o dos elefantes, rinocerontes e le\u00f5es africanos \u00e9 o hoje o resultado do uso dos rifles de ca\u00e7a.<\/p>\n

Talvez, ent\u00e3o, tudo possa ser resumido a outro conjunto de quest\u00f5es: \u00e0 luz daquilo que nos tornamos enquanto esp\u00e9cie, que forma nova est\u00e1 assumindo a natureza, e quais as novas regras que ali poderiam ser praticadas? Temos o dever, em rela\u00e7\u00e3o ao mundo natural que tanto devastamos, de trat\u00e1-lo de outro modo \u2013 menos voraz e mais generoso? N\u00e3o ter\u00e1 chegado o momento de interromper a matan\u00e7a de popula\u00e7\u00f5es cada vez menores por motivos de divers\u00e3o e prest\u00edgio social? Ou, o que talvez seja mais dif\u00edcil de considerar: ser\u00e3o os trof\u00e9us de ca\u00e7a tudo o que um dia vai restar da natureza selvagem que conhecemos?<\/p>\n

No 12o\u00a0dia da ca\u00e7a ao elefante<\/strong> em Nyae Nyae, sob o calor cada vez mais intenso, o rastreador Dam identifica as marcas deixadas por tr\u00eas machos que se moviam juntos. Assim que avistam os elefantes a mais de mil metros, Marnewecke e o seu cliente se d\u00e3o conta de que eram enormes e come\u00e7am a se aproximar deles na dire\u00e7\u00e3o em que sopra o vento a fim de n\u00e3o serem notados pelos animais. Dois dos machos estavam diante deles, mas o terceiro, maior e mais velho, mantinha-se separado, seguindo atr\u00e1s dos outros. Por isso os ca\u00e7adores v\u00e3o se esgueirando em torno dos primeiros e afinal chegam bem perto do \u00faltimo no momento em que este se dirige a uma moita de arbustos. O empres\u00e1rio americano ent\u00e3o se abaixa num dos lados da moita enquanto o velho macho alimenta-se no outro lado, sem se dar conta de nada.<\/p>\n

A morte de um velho macho como esse vai contribuir de algum modo para salvar todos os outros elefantes de Nyae Nyae?<\/p>\n

Os velhos machos, segundo a bi\u00f3loga Caitlin O\u2019Connell, uma pesquisadora interessada no modo como os elefantes se comunicam, s\u00e3o uma fonte de sabedoria, decidindo em que momento e em que dire\u00e7\u00e3o a manada vai se mover em busca de \u00e1gua, e impondo ordem na comunidade dos paquidermes. \u201cAo contr\u00e1rio do que se diz, os elefantes machos s\u00e3o animais muito sociais\u201d, conta ela. \u201cEles se movem em grupos de at\u00e9 15 animais, preservando uma hierarquia r\u00edgida. Os machos mais velhos t\u00eam um impacto regulador muito importante na manada, e exercem uma influ\u00eancia emocional e social nos machos mais jovens.\u201d Estes animais jovens, quando est\u00e3o no per\u00edodo de\u00a0must<\/em> \u2212 um estado de muita agressividade no qual os n\u00edveis de testosterona podem ser 10 vezes maiores que o normal \u2212 t\u00eam mais probabilidade de brigar uns com os outros sempre que um macho mais velho est\u00e1 ausente.<\/p>\n

A 15 metros de dist\u00e2ncia, o ca\u00e7ador consegue distinguir todas as rugas que recobrem o elefante. Ent\u00e3o faz mira com o rifle de cano duplo e coronha de prata entalhada a m\u00e3o \u2212 e alveja o cora\u00e7\u00e3o do animal. O elefante se vira e come\u00e7a a correr, caindo 30 metros depois. O ca\u00e7ador ent\u00e3o faz outro disparo, agora no cr\u00e2nio, e tudo acaba. Cada uma das presas pesava mais de 32 quilos. Seis horas depois, os san haviam limpado a carca\u00e7a, levando para os seus familiares quase 3 toneladas de carne.<\/p>\n

Dois dias depois, o grupo topou com outro macho de grande porte. O ca\u00e7ador dispara um tiro e derruba o animal \u2013 mas a\u00ed um outro macho avan\u00e7a, e ele e Marnewecke sa\u00edram correndo por quase um quil\u00f4metro antes de o elefante deix\u00e1-los em paz. Em seguida todo o processo se repetiu: a remo\u00e7\u00e3o da pele, a retirada da carne, a alimenta\u00e7\u00e3o das fam\u00edlias. Com este elefante, completou-se a cota anual de Marnewecke. O seu cliente voltou para casa; as presas dos dois elefantes seriam enviadas depois, para serem exibidas em sua sala de trof\u00e9us nos Estados Unidos.<\/p>\n

Fiquei pensando sobre essas presas nas semanas seguintes, agora transformadas em possess\u00f5es, s\u00edmbolos venerados de uma fa\u00e7anha desoladora. Elas s\u00e3o tudo o que restou de seres sens\u00edveis de 7 mil quilos. O que me leva ao chefe San, Bobo Tsamkxao, e suas esposas e filhos \u2013 e como ele e outros na comunidade iriam se alimentar desses animais. E pensei tamb\u00e9m que iriam receber dinheiro, ao menos indiretamente, desses animais. Ainda assim algo ainda me parecia fora de prumo: o fato de algu\u00e9m pagar para matar um animal que iria alimentar os San ou contribuir para a conserva\u00e7\u00e3o da reserva de Nyae Nyae. Mesmo que a ca\u00e7a esteja gravada em nossos genes, como disse Denker, resta uma quest\u00e3o essencial: h\u00e1 justificativa moral para se matar um animal amea\u00e7ado de extin\u00e7\u00e3o nessa altura da hist\u00f3ria?<\/p>\n

Depois de os ca\u00e7adores terem partido, a manada retomou a sua busca de \u00e1gua, desfrutando da paz tempor\u00e1ria, sem saber que na temporada seguinte viria outro grupo de ca\u00e7adores. S\u00f3 nos resta imaginar esses elefantes, como sombras perambulando por toda essa imensid\u00e3o contestada, alguns j\u00e1 carregando as etiquetas de pre\u00e7o, ali diante de n\u00f3s como apari\u00e7\u00f5es assombrosas.<\/p>\n

Fonte: National Geographic<\/p>\n<\/div>\n

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A ca\u00e7a esportiva contribui para financiar a prote\u00e7\u00e3o de esp\u00e9cies. Para os cr\u00edticos, por\u00e9m, os benef\u00edcios alardeados n\u00e3o se comprovam, nem h\u00e1 justificativa moral para a matan\u00e7a de animais de grande porte. <\/a><\/p>\n<\/div>","protected":false},"author":3,"featured_media":0,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[5,4],"tags":[405,718,598],"_links":{"self":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/141078"}],"collection":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/users\/3"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=141078"}],"version-history":[{"count":1,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/141078\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":141079,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/141078\/revisions\/141079"}],"wp:attachment":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=141078"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=141078"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=141078"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}