{"id":157912,"date":"2020-03-23T15:00:00","date_gmt":"2020-03-23T18:00:00","guid":{"rendered":"https:\/\/noticias.ambientebrasil.com.br\/?p=157912"},"modified":"2020-03-22T23:47:40","modified_gmt":"2020-03-23T02:47:40","slug":"na-bolivia-jordania-e-etiopia-falta-de-agua-limpa-e-a-face-mais-perversa-da-crise-climatica","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/clipping\/2020\/03\/23\/157912-na-bolivia-jordania-e-etiopia-falta-de-agua-limpa-e-a-face-mais-perversa-da-crise-climatica.html","title":{"rendered":"Na Bol\u00edvia, Jord\u00e2nia e Eti\u00f3pia, falta de \u00e1gua limpa \u00e9 a face mais perversa da crise clim\u00e1tica"},"content":{"rendered":"\n
\"Silv\u00e9rio
Silv\u00e9rio Rios Choque, boliviano da etnia uru, caminha em dire\u00e7\u00e3o a barcos encalhados no que era o lago Poop\u00f3, na Bol\u00edvia. Hoje, a \u00e1rea se converteu em um deserto t\u00f3xico contaminado por rejeitos de mineradoras de estanho e prata.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Mal podia acreditar que estava andando na \u00e1gua. Um fin\u00edssimo espelho refletia as nuvens abaixo dos meus p\u00e9s descal\u00e7os. Poderia ser lindo, mas era simplesmente perturbador. \u00c0 medida que eu caminhava, o ch\u00e3o se metamorfoseava em um deserto insalubre. Parecia lama branca, depois virou uma areia densa salpicada com um p\u00f3 brilhante fin\u00edssimo. O odor era insuport\u00e1vel, fruto da mistura de elementos qu\u00edmicos com mat\u00e9ria org\u00e2nica em putrefa\u00e7\u00e3o. O lago Poop\u00f3 j\u00e1 foi o segundo maior da Bol\u00edvia \u2013 tem quase tr\u00eas vezes a \u00e1rea da cidade de S\u00e3o Paulo \u2013 e hoje \u00e9 um cen\u00e1rio \u00e1rido e sem vida. Perdeu toda a sua fauna. De tempos em tempos eu via algumas manchas cor de rosa enterradas a uns cinco cent\u00edmetros abaixo do solo \u2013 eram penas de flamingos em decomposi\u00e7\u00e3o, resqu\u00edcios da vida que um dia esteve ali.<\/p>\n\n\n\n

O senhor Silv\u00e9rio Rios Choque me leva at\u00e9 um pequeno barco de pesca que se desmanchava sob o Sol, encalhado a 2 km de sua casa. \u201cSe andarmos mais meia hora, encontraremos outros barcos naquela dire\u00e7\u00e3o\u201d, me conta com uma voz profunda, falando em espanhol misturado com qu\u00e9chua. \u201cCerto dia o lago secou completamente. Era a fonte de alimento e sustento dos meus pais e dos pais dos meus pais. E hoje n\u00e3o h\u00e1 nada. N\u00e3o h\u00e1 mais vida para a gente.\u201d<\/p>\n\n\n\n

\"Juan
Juan Choque Miranda, 76 anos, conserva o estilo de vida dos pescadores da etnia uru, que entraram em decad\u00eancia ou tiveram que se mudar ap\u00f3s o colapso clim\u00e1tico e antr\u00f3pico que abateu o antigo lago, hoje deserto, Popp\u00f3.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
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No come\u00e7o da manh\u00e3, o jovem casal Wilson e Nely Requena \u00e9 retratado no vilarejo El Choro, na Bol\u00edvia, logo ap\u00f3s terem recolhido \u00e1gua usando um carrinho de constru\u00e7\u00e3o.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

A imagem do senhor Silv\u00e9rio caminhando parecia uma passagem b\u00edblica \u2013 um conto sobre tempos de mudan\u00e7a e de pragas que pairam sobre a condi\u00e7\u00e3o humana. Mas n\u00e3o. Era apenas um dia normal em um planeta mais quente. O lago anualmente tenta se restabelecer com tempestades r\u00e1pidas que castigam a regi\u00e3o, mas nunca suficientes para elevar a \u00e1gua aos n\u00edveis originais. Os pescadores viram a margem ir embora e as mineradoras que exploram prata e estanho se aproximar. Os rejeitos de grandes usinas seguem muitas vezes direto para a \u00e1gua. \u00c9 como se fossem barragens como a de Mariana ou de Brumadinho, s\u00f3 que tudo indo lentamente para o lago, sem tratamento. O Poop\u00f3 j\u00e1 chegou a ter 6 metros de profundidade e hoje \u00e9 um deserto contaminado gra\u00e7as ao assoreamento aliado \u00e0s altas temperaturas e a explora\u00e7\u00e3o descontrolada da agricultura e da atividade industrial. Um genoc\u00eddio ambiental, que matou os peixes primeiro e, depois, envenenou as aves que os consumiram \u2013 um n\u00edtido exemplo de como a a\u00e7\u00e3o antr\u00f3pica pode destruir um ecossistema. Fiquei refletindo sobre como a etnia uru consegue resistir mesmo com sua popula\u00e7\u00e3o jovem migrando para cidades maiores e deixando, muitas vezes, idosos em uma situa\u00e7\u00e3o de mis\u00e9ria.<\/p>\n\n\n\n

\"Candi
Candi Moya Maur\u00edcio recolhe \u00e1gua de 3 a 4 vezes ao dia com seus filhos, rotina recorrente desde que o lago Popp\u00f3, na Bol\u00edvia, desapareceu no horizonte.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Na
Na cidade de Huanuni, na Bol\u00edvia, ar e rios foram tomados pela polui\u00e7\u00e3o emitida por mineradoras. Na parede, l\u00ea-se \u201cCidade Moderna\u201d.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Enquanto nas grandes cidades sentimos as ondas de calor inclementes e enchentes fora de temporada, nas comunidades rurais isoladas mundo afora a menor varia\u00e7\u00e3o do clima exerce um impacto significativo nos regimes pluviais e hidrol\u00f3gicos. Na pr\u00e1tica, isso imp\u00f5e um regime de adapta\u00e7\u00f5es sem aviso pr\u00e9vio a povos rurais que sempre tentaram compreender o mundo natural e viver em harmonia com ele, respeitando-o e extraindo o suficiente para sobreviver e conservar.<\/p>\n\n\n\n

Quando deixei a regi\u00e3o do lago que n\u00e3o \u00e9 mais lago, passei pelo vilarejo El Choro. Vi um casal carregando baldes de \u00e1gua em um carrinho de constru\u00e7\u00e3o. Eu sorri, acenei e eles acenaram de volta. Os jovens Wilson e Nely Requena vivem em uma pequena casa de esquina. O que era para ser uma conversa r\u00e1pida se tornou um momento intenso de confiss\u00e3o entre estranhos sedentos de contato humano. Wilson me conta como \u00e9 dif\u00edcil viver com pouca \u00e1gua, em condi\u00e7\u00f5es extremas, tentando driblar as adversidades de uma vida cheia de limita\u00e7\u00f5es. As interfer\u00eancias pol\u00edticas e disputas entre os l\u00edderes comunit\u00e1rios, ele diz, mais atrapalham do que ajudam as pessoas. Caminhamos em sua horta org\u00e2nica enquanto Wilson me mostra como criou um sistema de irriga\u00e7\u00e3o. Ele faz furos pequenos com uma agulha em garrafas de pl\u00e1stico e as enterra no solo cheias d\u2019\u00e1gua. Assim, no ritmo lento da gravidade, o mecanismo fornece uma pequena planta\u00e7\u00e3o que lhe garante alguns vegetais. Eu digo que \u00e9 a sabedoria da \u00e1gua. Ele comenta: \u201cA necessidade \u00e9 a melhor amiga dos humanos\u201d.<\/p>\n\n\n\n

\"dia-mundial-da-agua-bolivia-lago-popoo\"\/
A senhora Espiridiana Montoya \u00e9 uma das cinco moradoras que restaram no vilarejo Condo K, na Bol\u00edvia. Antes uma pr\u00f3spera vila de pescadores, entrou em decad\u00eancia ap\u00f3s o lago recuar at\u00e9 secar.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

O que acontece com esse minguante lago no pa\u00eds mais pobre da Am\u00e9rica do Sul, tem paralelos em diversas outras partes do planeta, como nos lagos Urmia \u2013 no Ir\u00e3 \u2013, Aral \u2013 no Uzbequist\u00e3o \u2013 e, tamb\u00e9m, Mar Morto \u2013 entre Israel e Jord\u00e2nia. O Mar Morto \u00e9 um lago dez vezes mais salgado que o oceano e fica no ponto habit\u00e1vel mais profundo do planeta, chegando a 430 metros abaixo do n\u00edvel do mar. Seu principal contribuinte, o Rio Jord\u00e3o, \u00e9 sagrado para metade da humanidade, mas 96% de sua \u00e1gua doce j\u00e1 foi desviada para uso dom\u00e9stico por Israel, Jord\u00e2nia e S\u00edria. O vale onde Jesus foi batizado tamb\u00e9m sofre com um clima mais quente. Como consequ\u00eancia, a enorme lagoa salgada recua 1,3 metros ao ano, segundo o Banco Mundial.<\/p>\n\n\n\n

Em recess\u00e3o<\/strong><\/p>\n\n\n\n

O encolhimento das bordas do Mar Morto \u00e9 vis\u00edvel a olho nu, sendo poss\u00edvel perceber as varia\u00e7\u00f5es mensalmente, me conta um morador da regi\u00e3o. Enormes buracos e eros\u00f5es no solo surgem do dia para a noite \u2013 perigos para pessoas e animais. Casas, hot\u00e9is e empresas simplesmente se mudam ou s\u00e3o engolidas pelo ch\u00e3o. Falta de \u00e1gua e o aumento da temperatura s\u00e3o a principais preocupa\u00e7\u00f5es. O rio Jord\u00e3o \u00e9 a principal fonte de \u00e1gua fresca para a Jord\u00e2nia e j\u00e1 foi 4 vezes mais volumoso do que \u00e9 hoje. \u201cO Mar Morto \u00e9 um lago salgado not\u00e1vel, cheio de minerais, que testemunhou a heran\u00e7a humana e agora encolhe mais de um metro por ano\u201d, me explica Eshak Al Guzaa, gerente nacional de projetos da organiza\u00e7\u00e3o\u00a0EcoPeace Middle East. \u201cAs bacias hidrogr\u00e1ficas est\u00e3o sendo superexploradas, com uma taxa de bombeamento que varia de 150% [da capacidade] em aq\u00fc\u00edferos menores a 210% nos grandes. O desafio da mudan\u00e7a clim\u00e1tica est\u00e1 patrocinando nosso fracasso na gest\u00e3o da \u00e1gua.\u201d<\/p>\n\n\n\n

\"Um
Um Khaldoun seca o suor do rosto enquanto sua filha bebe \u00e1gua no calor implac\u00e1vel do baixo vale do rio Jord\u00e3o. O Mar Morto chegava at\u00e9 ali, mas hoje a margem est\u00e1 bem mais longe, em um local do planeta a 400 m abaixo do n\u00edvel do mar.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Um
Um Khaldoun limpa o ch\u00e3o de casa com seu filho em um dia muito quente. A fam\u00edlia de 11 filhos resiste em meio a pobreza e dificuldades impostas por um clima em transforma\u00e7\u00e3o com pouca \u00e1gua.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Eu queria testemunhar a lenta morte do Mar Morto e foi assim que cheguei at\u00e9 o extremo sul do vale do Jord\u00e3o, onde o mar desapareceu por completo dando espa\u00e7o a uma plan\u00edcie ardente e salgada. Entrei na casa de Um Khaldoun, uma mulher sorridente que tem 11 filhos e estava gr\u00e1vida do 12\u00ba. Sua cozinha \u00e9 anexa ao \u00fanico banheiro que tem na casa, o que fazem os cheiros de comida e esgoto se misturarem no ar. Com um pouco de \u00e1gua num balde, ela esfregava o ch\u00e3o com seu filho. A luz do sol entra pela janela e deixa o final do dia mais quente e mais triste pra mim. Khaldoun fala pouco mas reclama que cobras come\u00e7aram a surgir depois que covas de um antigo cemit\u00e9rio ao lado de sua casa se transformaram em ninhos. Hoje ela vive de ajuda de vizinhos, que doam um pouco de \u00e1gua quando poss\u00edvel. Resiliente, ela me parece ser o retrato da mulher do Oriente M\u00e9dio: forte e \u00edntegra, um rosto para representar a humanidade, que, limpando o suor dos olhos, me d\u00e1 uma discreta ideia do que seria viver naquelas condi\u00e7\u00f5es. A vida n\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil quando se mora no ponto mais baixo habit\u00e1vel da Terra.<\/p>\n\n\n\n

\"Constru\u00e7\u00e3o
Constru\u00e7\u00e3o se esvai em um solo colapsado, engolida pela eros\u00e3o decorrente do encolhimento do Mar Morto, cuja linha azul vemos ao longe no fundo, na Jord\u00e2nia.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Mohamed
Mohamed cruza um viaduto em busca de \u00e1gua para hidratar seus animais no vale do rio Jord\u00e3o, na Jord\u00e2nia.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Ghor Mazra-a \u00e9 uma pequena vila de casas escuras de onde ainda conseguimos ver, ao longe, uma linha azul do que resta do Mar Morto. Entrei em uma casa onde moram 25 pessoas. Os simp\u00e1ticos irm\u00e3os Jafar e Amir puxam cadeiras de pl\u00e1stico para mim e para o meu tradutor de \u00e1rabe. Os sorrisos de boas vindas v\u00e3o mudando para um tom mais realista depois que tomamos o tradicional ch\u00e1 vermelho. Eles me mostram como guardam a \u00e1gua em gal\u00f5es para beber e me contam que o governo disponibiliza caminh\u00f5es-pipa duas vezes por semana. \u00c9 um estresse enorme gerenciar \u00e1gua para tudo e para todos. Naquele dia, o tanque de reserva estava vazio. \u201cQuando acaba, pegamos mesmo das piscinas de irriga\u00e7\u00e3o. Sim, sabemos que \u00e9 suja\u201d, dizem, apontando para uma cratera no meio da areia coberta com um pl\u00e1stico preto para reter \u00e1gua. Vejo um outro homem se abaixando para beb\u00ea-la. O senhor Ahmed olha para mim com canto dos olhos mas n\u00e3o se incomoda com a minha foto. \u201cA situa\u00e7\u00e3o aqui vai muito mal\u201d, ele comenta. Conto para Jafar que tenho viajado muito para documentar fam\u00edlias que sofrem com a falta d\u2019\u00e1gua e ele me pergunta: \u201cPor acaso existe algo pior do que isso aqui?\u201d. Sil\u00eancio. Minha cabe\u00e7a vai longe, lembro do Brasil, meu pa\u00eds, mas n\u00e3o consigo deixar de pensar na Eti\u00f3pia.<\/p>\n\n\n\n

Os baldes amarelos<\/h3>\n\n\n\n

Cruzei a Eti\u00f3pia de sul a norte pela segunda vez para\u00a0documentar hist\u00f3rias da \u00e1gua\u00a0no come\u00e7o de 2020. A Eti\u00f3pia \u00e9 emblem\u00e1tica para nos ensinar sobre o que acontece no mundo \u2013 trata-se do segundo pa\u00eds mais populoso da \u00c1frica e da na\u00e7\u00e3o com menos \u00e1gua pot\u00e1vel dispon\u00edvel por habitante. Pela caracter\u00edstica clim\u00e1tica, geogr\u00e1fica e populacional, \u00e9 na Eti\u00f3pia onde podemos ter uma dimens\u00e3o visual do que \u00e9 viver com pouco, aproveitando apenas o se que tem naquele dia. A \u00e1gua \u00e9 a agenda di\u00e1ria da grande maioria das mulheres e crian\u00e7as. Para onde quer que olhemos, h\u00e1 algu\u00e9m com um gal\u00e3o de pl\u00e1stico amarelo nas costas.<\/p>\n\n\n\n

\"Acompanhados
Acompanhados dos filhos, os irm\u00e3os Jafar e Amir carregam suas reservas de \u00e1gua para uso dom\u00e9stico di\u00e1rio no vilarejo Ghor Mazra-a, no vale do rio Jord\u00e3o, Jord\u00e2nia.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Ahmed
Ahmed cuida de uma piscina constru\u00edda para armazenar \u00e1gua \u00e0 agricultura no vale do Rio Jord\u00e3o, na Jord\u00e2nia. “A situa\u00e7\u00e3o aqui vai muito mal\u201d, me conta.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

A economia et\u00edope \u00e9 baseada na agricultura. Cerca de 86% da popula\u00e7\u00e3o \u00e9 formada por agricultores rurais. A regi\u00e3o sul do pa\u00eds \u00e9 uma amostra do que foi a \u00c1frica antiga. As tribos do vale do Omo, ao sul, isoladas e culturalmente preservadas, s\u00e3o um exemplo de como o homem vivia em compromisso com a vida, praticando a ca\u00e7a e a coleta e, depois, a agricultura e a pecu\u00e1ria. Pouco mudou, mas nos \u00faltimos 20 anos a regi\u00e3o foi invadida por uma enxurrada de turistas. Celulares, carros modernos e redes de energia d\u00e3o um tom interessante para um lugar que obriga o passado a coexistir com o futuro. As tribos est\u00e3o se adaptando cada vez mais \u00e0s tecnologias e \u00e0s possibilidades trazidas pelo governo, por pesquisadores e ONG\u2019s. Em algumas comunidades da etnia hammar, por exemplo, os buracos em rios que s\u00e3o cavados \u00e0 m\u00e3o nas \u00e9pocas secas para procurar uma linha barrenta de \u00e1gua para beber, agora est\u00e3o dando lugar a cisternas que captam \u00e1guas de chuvas, a partir de grandes terra\u00e7os que s\u00e3o constru\u00eddos em \u00e1reas abertas. Eu j\u00e1 tinha visto sistemas parecidos em diversos locais no mundo, inclusive no semi-\u00e1rido brasileiro.<\/p>\n\n\n\n

\"dia-mundial-da-agua-etiopia-hammar\"\/
Bona Arbane, de 32 anos, desce at\u00e9 o fundo de um tanque de capta\u00e7\u00e3o de \u00e1gua de chuva para poder levar um pouco para a fam\u00edlia no vilarejo Bita Gelefa, pr\u00f3ximo a Turmi, sul da Eti\u00f3pia.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Visitei o vilarejo Bita Gelefa e o n\u00edvel da \u00e1gua estava t\u00e3o baixo que as pessoas se revezavam, entrando uma de cada vez, em uma pequena abertura por uma escada at\u00e9 o fundo de um tanque de chuva, pegando de dez a 20 litros por vez. Desci junto e testemunhei o mart\u00edrio di\u00e1rio de mulheres como Bona Arbane, 32 anos, cujos m\u00fasculos dos bra\u00e7os brilhavam cheios de veias, num ambiente reluzente como num cen\u00e1rio de teatro \u2013 tr\u00e1gico e liter\u00e1rio, onde um pequeno cap\u00edtulo de crise h\u00eddrica se manifesta em sil\u00eancio. A subida com o gal\u00e3o na m\u00e3o em uma escada de ferro \u00e9 uma opera\u00e7\u00e3o inimagin\u00e1vel, que exige equil\u00edbrio e muita for\u00e7a. Algumas repetem a opera\u00e7\u00e3o quatro ou cinco vezes ao dia. Ao sa\u00edrem descal\u00e7as do ambiente \u00famido, o desafio \u00e9 evitar os escorpi\u00f5es que se acumulam em volta do buraco da escada \u2013 uma delas me mostra um que havia acabado de matar. Um pequeno problema leva a outro, e toda a cadeia de demandas h\u00eddricas cria desafios n\u00e3o ditos que jamais podemos saber. Na caminhada de volta, do alto de uma colina amarelada, pude ver uma estrondosa nuvem com bilh\u00f5es de gafanhotos \u2013 um toque apocal\u00edptico e inesperado para um fim de dia que eu jamais vou esquecer.<\/p>\n\n\n\n

O que me comoveu foi testemunhar como as comunidades rurais vivem das mesmas pr\u00e1ticas h\u00e1 incont\u00e1veis gera\u00e7\u00f5es, transferindo conhecimento de pai pra filho, no of\u00edcio de ler, lidar e sobreviver com as regras e desafios da natureza que rege a vida em meio a plan\u00edcies e montanhas. Nada passa despercebido para os agricultores \u2013 cada linha de \u00e1gua no solo tem o seu valor, toda sombra \u00e9 aproveitada. Onde houver uma grande ac\u00e1cia, tamb\u00e9m haver\u00e1 uma colmeia artificial em que as abelhas podem acolher seu mel. Os animais domesticados s\u00e3o respeitados e as pessoas trabalham. Muito. N\u00e3o existe calor ou chuva que tire os agricultores de sua labuta \u2013 \u00e9 emocionante ver tanta gente trabalhando juntas, enquanto h\u00e1 alguma luz do dia. O campo n\u00e3o para, os turnos parecem n\u00e3o ter fim.<\/p>\n\n\n\n

\"Mulher
Mulher prepara o fogo e usa \u00e1gua que acabara de pegar no rio para poder preparar ingera, prato t\u00edpico da Eti\u00f3pia.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong><\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Na
Na regi\u00e3o onde vive a etnia tigray, ao norte da Eti\u00f3pia, uma senhora acaba de pegar um pouco de \u00e1gua para si, numa rotina que ocupa grande parte do dia, especialmente o das mulheres e crian\u00e7as. <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

\u201cOs agricultores de terras altas da Eti\u00f3pia dependem de um sistema alimentado pelas chuvas. Eles confiam nas chuvas bimodais que est\u00e3o por vir. O per\u00edodo mais chuvoso entre julho e agosto \u00e9 o que traz esperan\u00e7a para deixar as encostas verde claras e fazer com que a colheita mantenha a fam\u00edlia\u201d, explica Lemlem Sissay Fetene, consultora internacional na Divis\u00e3o de Alimentos e Nutri\u00e7\u00e3o do Departamento de Agroneg\u00f3cios da Organiza\u00e7\u00e3o das Na\u00e7\u00f5es Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido). \u201cA esparsa chuva da primavera traz apenas o suficiente para germinar as sementes e obter ciclos curtos. As chuvas s\u00e3o cada vez mais irregulares, o que torna os agricultores vulner\u00e1veis e desafia a sustentabilidade de seus meios de subsist\u00eancia.\u201d<\/p>\n\n\n\n

A grande maioria dos agricultores et\u00edopes vivem em fun\u00e7\u00e3o da ecologia, n\u00e3o trazem nada de fora, como sementes, nutrientes e pesticidas. Tamb\u00e9m raramente irrigam o solo \u2013 deixam que as chuvas fa\u00e7am isso. Eles observam a natureza e fazem as previd\u00eancias para atender suas necessidades, mas pequenas varia\u00e7\u00f5es na temperatura m\u00e9dia mudam tamb\u00e9m os h\u00e1bitos das plantas, bact\u00e9rias e insetos. Quando a \u00e1gua vem em tempestades r\u00e1pidas existe a impress\u00e3o que h\u00e1 muita \u00e1gua dispon\u00edvel. No entanto, apenas uma pequena parte dela pode ser captada \u2013 \u00e9 como se n\u00e3o houvesse nada.<\/p>\n\n\n\n

\"Detalhe
Detalhe de p\u00e9s de crian\u00e7as que se espremem na fila para coletar \u00e1gua em uma bica p\u00fablica em Konso, sul da Eti\u00f3pia.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Em
Em Konso, Eti\u00f3pia, pessoas cavam pequenos buracos na areia perto de riachos para poder achar uma linha de \u00e1gua um pouco mais limpa para beber e levar para casa. A pr\u00e1tica \u00e9 comum em regi\u00f5es no sul da Eti\u00f3pia onde n\u00e3o h\u00e1 po\u00e7os para bombear \u00e1gua do subsolo.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

No extremo norte da Eti\u00f3pia, fui de carro de Lalibela at\u00e9 Mekele, um panorama campesino entrecortado de p\u00e3es de a\u00e7\u00facar com planta\u00e7\u00f5es que sumiam no horizonte repletos de trabalhadores em dilig\u00eancias puxadas por bois e uma infinidade de casinhas, ora esculpidas em esterco de vaca, ora de madeira coloridas. No meio de tudo isso, pequenos filetes de \u00e1gua ainda flu\u00edam em meio a um calor escaldante. Alguns eram apinhados de gente agachada em volta. As mulheres com jarros de pl\u00e1stico buscavam \u00e1gua para as necessidades da casa, para beber e para fazer o prato tradicional et\u00edope, a ingera. Crian\u00e7as sempre corriam em volta, sorrindo, brincando, tamb\u00e9m carregando sua cota menor de \u00e1gua, dando uma m\u00fasica ao cen\u00e1rio de tirar o f\u00f4lego que se desenhava diante de mim a cada curva. Foram 12 horas dirigindo e n\u00e3o vi o tempo passar, pois me sentia abra\u00e7ado pelo ambiente em aparente harmonia entre seres humanos e natureza. Mas algo n\u00e3o me parecia certo \u2013 havia alguma tens\u00e3o no ar.<\/p>\n\n\n\n

Um frio come\u00e7ou a se pronunciar ao cair da noite em Mekele, uma cidade inesperadamente grande, barulhenta, cheia de caminh\u00f5es, edif\u00edcios e universidades. De l\u00e1 eu chegaria mais adiante ao ponto mais baixo da \u00c1frica, a depress\u00e3o de Afar. Dali pra frente, portanto, seria s\u00f3 descida. E ent\u00e3o calor, muito calor. \u00c9 a maior m\u00e9dia de temperatura do planeta. Nesta noite eu dormi sob as estrelas, tentando repassar na minha mem\u00f3ria tudo o que eu havia vivido at\u00e9 ent\u00e3o. Quando o sol despontou no horizonte, comecei a ver as pessoas carregando gal\u00f5es nas costas no quadro que se formou entre os meus p\u00e9s. Na esta\u00e7\u00e3o seca, quando n\u00e3o h\u00e1 uma bomba para sugar o subsolo, a \u00fanica alternativa \u00e9 sair caminhando. Eu perguntei onde as pessoas encontravam \u00e1gua, e algu\u00e9m apontava o queixo na dire\u00e7\u00e3o do horizonte onde n\u00e3o havia nada. A regi\u00e3o \u00e9 erma, n\u00e3o fosse alguns grupos de turistas chineses e europeus indo fotografar a deslumbrante paisagem amarela-esverdeada de enxofre de Dallol ou o vulc\u00e3o cuspindo um rio de magma em Erta Ale.<\/p>\n\n\n\n

\"Logo
Logo cedo pela manh\u00e3, ao lado do rio Pequeno Keske, mulheres carregam \u00e1gua na regi\u00e3o de Turmi, ao sul da Eti\u00f3pia. A \u00faltima da fila estava gr\u00e1vida.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n
\"Dia
Dia comum em um vilarejo de Afar, ao norte da Eti\u00f3pia: mulheres carregam \u00e1gua e lenha para o fogo em uma regi\u00e3o seca e remota.
FOTO DE\u00a0\u00c9RICO HILLER<\/strong> <\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Eu estava em um 4×4 e a minha peregrina\u00e7\u00e3o pela \u00e1gua seguia r\u00e1pida pelas beiradas das estradas empoeiradas, numa paisagem marciana, onde peda\u00e7os de tendas do ACNUR, \u00f3rg\u00e3o de refugiados das Na\u00e7\u00f5es Unidas, eram reutilizados para moldar uma moradia pequena, redonda, que geralmente abriga dez pessoas ou mais. Havia centenas delas pelo caminho. Ap\u00f3s tr\u00eas semanas fotografando a Eti\u00f3pia, no \u00faltimo dia antes de voltar para casa, tive uma oportunidade sublime de entender mais sobre a rotina dos habitantes de Afar nesta regi\u00e3o infecunda, caminhando com duas mulheres at\u00e9 um imenso c\u00e2nion em busca de \u00e1gua. Elas estavam t\u00edmidas e um pouco incomodadas com a presen\u00e7a da minha c\u00e2mera. Andamos por cerca de uma hora entre pared\u00f5es imensos, verdadeiras montanhas. E ent\u00e3o, um filete de \u00e1gua brotou do cascalho no ch\u00e3o. Era tudo o que sobrou do rio naquela esta\u00e7\u00e3o do ano. Elas se agacharam e, com uma garrafa pet cortada, recolheram pacientemente 20 litros de \u00e1gua cada uma. N\u00e3o teve conversa, nem sorrisos, nada. Sil\u00eancio absoluto. Antes de terminarem, usaram a \u00e1gua corrente para lavar os p\u00e9s e os rostos antes de seguir o longo caminho de volta.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9rico Hiller \u00e9 fot\u00f3grafo colaborador de National Geographic. Atualmente trabalha em um longo projeto sobre a crise h\u00eddrica ao redor do planeta que contar\u00e1 com um livro, a ser lan\u00e7ado em outubro de 2020, e um document\u00e1rio longa-metragem dirigido por Lucas Bogo, que sair\u00e1 em 2021. Conhe\u00e7a seu trabalho no\u00a0Instagram.<\/p>\n\n\n\n

Fonte: National Geographic – \u00c9rico Hiller <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Popula\u00e7\u00f5es tradicionais assistem ao esvaziamento e \u00e0 contamina\u00e7\u00e3o de seus recursos h\u00eddricos por grandes aqu\u00edferos, projetos agroindustriais e aumento das temperaturas. Fot\u00f3grafo brasileiro viaja o mundo para documentar o problema da falta d\u2019\u00e1gua. <\/a><\/p>\n<\/div>","protected":false},"author":3,"featured_media":157913,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[4],"tags":[2514,1977,1236],"_links":{"self":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/157912"}],"collection":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/users\/3"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=157912"}],"version-history":[{"count":1,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/157912\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":157914,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/157912\/revisions\/157914"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/media\/157913"}],"wp:attachment":[{"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=157912"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=157912"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"http:\/\/localhost\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=157912"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}