{"id":162814,"date":"2020-09-08T08:30:28","date_gmt":"2020-09-08T11:30:28","guid":{"rendered":"https:\/\/noticias.ambientebrasil.com.br\/?p=162814"},"modified":"2020-09-08T00:43:03","modified_gmt":"2020-09-08T03:43:03","slug":"jose-gregorio-ou-preservamos-a-floresta-amazonica-ou-ela-se-vingara","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/clipping\/2020\/09\/08\/162814-jose-gregorio-ou-preservamos-a-floresta-amazonica-ou-ela-se-vingara.html","title":{"rendered":"Jos\u00e9 Gregorio: ou preservamos a floresta amaz\u00f4nica ou ela se vingar\u00e1"},"content":{"rendered":"\n
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Jos\u00e9 Gregorio, l\u00edder da Guarda Ind\u00edgena Ambiental, em um retrato em que usa a camiseta de sua organiza\u00e7\u00e3o na Amaz\u00f4nia colombiana.<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Liderada por Jos\u00e9 Gregorio, uma patrulha ind\u00edgena da guarda ambiental sobe o rio Amacayacu, na\u00a0Amaz\u00f4nia\u00a0colombiana. Com exce\u00e7\u00e3o dele, que agora est\u00e1 na casa dos 40, todos os membros da guarda ambiental s\u00e3o muito jovens, embora mostrem grande serenidade e equil\u00edbrio quando alcan\u00e7am e interceptam uma canoa suspeita de estar navegando furtivamente rio acima.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 uma inspe\u00e7\u00e3o de rotina, mas n\u00e3o sem tens\u00e3o. Os dois ocupantes do barco, movido por um pequeno motor Honda que parece ter acabado de sair da loja, t\u00eam as respostas bem ensaiadas: elas s\u00e3o curtas, lac\u00f4nicas. Mas \u00e9 poss\u00edvel notar que n\u00e3o querem conversa. Eles est\u00e3o nervosos, com pressa de sair da presen\u00e7a dos guardas.<\/p>\n\n\n\n

Meio ocultos atr\u00e1s de seus chap\u00e9us e sem descobrirem o rosto, os meninos falam em ir rio acima para pescar. Eles contam que haver\u00e1 uma\u00a0minga<\/em>\u00a0em sua comunidade no dia seguinte \u2013 uma reuni\u00e3o coletiva para realizar algum trabalho comunit\u00e1rio que culmina em uma refei\u00e7\u00e3o comemorativa, de acordo com a tradi\u00e7\u00e3o ind\u00edgena.<\/p>\n\n\n\n

Ap\u00f3s fazer anota\u00e7\u00f5es cuidadosas em seu caderno de controle, a guarda ind\u00edgena ambiental os autoriza a seguir, n\u00e3o sem antes avis\u00e1-los que o territ\u00f3rio est\u00e1 sob seu controle e que da pr\u00f3xima vez eles devem obter permiss\u00e3o pr\u00e9via para entrar no rio, que corre dentro do Parque Natural Nacional de Amacayacu, sobreposto \u00e0 Reserva Ind\u00edgena Tikuna, Cocama e Yagua.<\/p>\n\n\n\n

A press\u00e3o sobre o\u00a0meio ambiente\u00a0\u00e9 cont\u00ednua e proporcional \u00e0 biodiversidade e aos recursos naturais desta floresta amaz\u00f4nica. As amea\u00e7as s\u00e3o m\u00faltiplas, da pesca excessiva \u00e0\u00a0minera\u00e7\u00e3o ilegal, aos\u00a0madeireiros\u00a0e \u00e0 reinstala\u00e7\u00e3o de\u00a0laborat\u00f3rios de processamento de coca, como os que existiam no passado, embora j\u00e1 tenham se mudado para o outro lado do rio Amazonas, no lado peruano. Esta combina\u00e7\u00e3o de riqueza e amea\u00e7as resultou na cria\u00e7\u00e3o da guarda ind\u00edgena ambiental, que tem sido fundamental para a defesa e conserva\u00e7\u00e3o desses territ\u00f3rios vulner\u00e1veis.<\/p>\n\n\n\n

Esses territ\u00f3rios e as pessoas que os habitam t\u00eam sofrido deteriora\u00e7\u00e3o e fragmenta\u00e7\u00e3o desde os tempos antigos. Uma das contribui\u00e7\u00f5es esquecidas da extinta Liga das Na\u00e7\u00f5es, na turbulenta d\u00e9cada de 1930, foi a resolu\u00e7\u00e3o do conflito com o Peru, quando a Col\u00f4mbia queria assegurar o acesso ao rio Amazonas. Essa \u00e9 a origem da \u00e1rea conhecida hoje como o Trap\u00e9zio Amaz\u00f4nico, desenhada por diplomatas com uma b\u00fassola e um bisel sobre uma mesa de negocia\u00e7\u00f5es, como tantas fronteiras que vemos no mapa africano, por exemplo, como resultado de acordos de descoloniza\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Esses cortes em um mapa te\u00f3rico sobre a mesa, o que fazem \u00e9 fragmentar arbitrariamente ecossistemas complexos, desenhando fronteiras que dividem universos culturais e grupos \u00e9tnicos inteiros, criando ambientes pol\u00edticos artificiais, que a realidade e a floresta, quase sempre, s\u00e3o respons\u00e1veis por desafiar.<\/p>\n\n\n\n

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Integrantes da guarda ind\u00edgena ambiental durante una navega\u00e7\u00e3o de rotina pelo rio Amacayacu, pr\u00f3ximo \u00e0 comunidade de San Mart\u00edn.\u00a0PABLO ALBARENGA<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Assim, essa\u00a0tr\u00edplice fronteira entre a Col\u00f4mbia, o Brasil e o Peru,\u00a0ao longo dos curtos 120 km de soberania colombiana sobre a Amaz\u00f4nia, tornou-se uma fonte cont\u00ednua de tr\u00e1fego de todos os tipos de bens valiosos, obtidos legal ou ilegalmente.<\/p>\n\n\n\n

Portanto, hoje, no Trap\u00e9zio, manter seu equil\u00edbrio n\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil. Como um territ\u00f3rio atravessado por tr\u00eas jurisdi\u00e7\u00f5es diferentes, a presen\u00e7a do Estado \u00e9 fraca, deixando amplo espa\u00e7o para a impunidade: h\u00e1 uma vasta regi\u00e3o em que nem as autoridades ou sequer os pr\u00f3prios povos ind\u00edgenas, t\u00eam a capacidade de controlar.<\/p>\n\n\n\n

Essa realidade \u00e9 bem conhecida por Jos\u00e9 Gregorio V\u00e1zquez, o experiente l\u00edder da guarda ind\u00edgena, da etnia tikuna e pertencente ao cl\u00e3 Cascabel. Ap\u00f3s deixar a comunidade para estudar e trabalhar em Leticia, a capital dessa regi\u00e3o esquecida, Jos\u00e9 Gregorio entrou na escola militar em Bogot\u00e1. Mas uma les\u00e3o prematura no joelho e motivos familiares importantes o levaram a retornar \u00e0 sua comunidade de San Mart\u00edn, no rio Amacayacu. Ele tinha ent\u00e3o 25 anos de idade.<\/p>\n\n\n\n

Jos\u00e9 Gregorio conta como, ao retornar a San Mart\u00edn, teve uma conversa com seus av\u00f3s, os guardi\u00e3es culturais e espirituais da comunidade, e ao mesmo tempo iniciou um di\u00e1logo pol\u00edtico com as autoridades. Ele sonhava em materializar os valores da Constitui\u00e7\u00e3o colombiana de 1991, que inclui os direitos das comunidades ind\u00edgenas de organizar politicamente seu territ\u00f3rio e sua comunidade. Nessa \u00e9poca, estava sendo demarcada a reserva ind\u00edgena Tikuna-Cocama-Yagua, e Jos\u00e9 Gregorio enxergou com clareza: \u201cminha tarefa \u00e9 aqui\u201d.<\/p>\n\n\n\n

Os direitos n\u00e3o t\u00eam utilidade se n\u00e3o puderem ser exercidos e mesmo que, no papel, o governo reconhe\u00e7a as comunidades, h\u00e1 muitos obst\u00e1culos e dificuldades em sua gest\u00e3o administrativa e financeira. Mas, para Jos\u00e9, o importante era reconhecer que o sistema territorial forma um todo integrado e que, como ele mesmo diz, \u201cexiste uma uni\u00e3o entre o espiritual, o humano e o natural\u201d.<\/p>\n\n\n\n

Para Jos\u00e9 Gregorio a chave \u00e9 ter uma vis\u00e3o forte sobre o controle e gest\u00e3o do meio ambiente, porque ele sente que \u00e9 a\u00ed que reside o futuro das comunidades. Para isso, ele deve administrar o turismo (ele mesmo dirige um alojamento para turistas europeus em San Mart\u00edn). E ele tamb\u00e9m sabe que \u00e9 crucial exercer o autogoverno a fim de preservar o que ele chama de \u201cpropriedade do nosso conhecimento\u201d, porque ele est\u00e1 muito consciente de que \u201ctoda vez que a humanidade muda seu modelo, n\u00f3s perdemos muito conhecimento\u201d.<\/p>\n\n\n\n

\u201cEu acredito que tudo o que estamos fazendo \u00e9 para beneficiar o mundo, n\u00e3o apenas a mim. E isso me d\u00e1 muita esperan\u00e7a,\u201d diz Jos\u00e9 Gregorio. Da\u00ed surge seu grande projeto: a guarda ind\u00edgena. Capacitando e treinando jovens, com o tempo ele construiu um pequeno, mas vers\u00e1til, grupo que trabalha na conserva\u00e7\u00e3o e prote\u00e7\u00e3o em v\u00e1rios n\u00edveis: \u201cpara as crian\u00e7as\u201d, diz ele, \u201cmas tamb\u00e9m para os antepassados que j\u00e1 se foram\u201d.<\/p>\n\n\n\n

Assim, a conserva\u00e7\u00e3o do meio ambiente e sua prote\u00e7\u00e3o s\u00e3o a principal ocupa\u00e7\u00e3o de Jos\u00e9 Gregorio. Enquanto sua esposa se certifica de que o neg\u00f3cio do hotel gere renda suficiente para manter os guardas ind\u00edgenas em boas condi\u00e7\u00f5es, Jos\u00e9 Gregorio est\u00e1 encarregado de planejar o trabalho da guarda, dia ap\u00f3s dia.<\/p>\n\n\n\n

O trabalho \u00e9 enorme, os problemas ambientais s\u00e3o grandes e as consequ\u00eancias da crise clim\u00e1tica sobre o ecossistema se aceleraram, pelo menos desde 2000. As comunidades t\u00eam visto mudan\u00e7as dram\u00e1ticas no ciclo de flora\u00e7\u00e3o e no ciclo da \u00e1gua, e tanto a colheita quanto a pesca est\u00e3o sendo seriamente afetadas.<\/p>\n\n\n\n

Segundo a percep\u00e7\u00e3o de Jos\u00e9 Gregorio, a grande mudan\u00e7a ocorreu entre 2000 e 2010. \u201cOs pequenos rios est\u00e3o mortos, os peixinhos n\u00e3o est\u00e3o preparados, n\u00f3s n\u00e3o estamos preparados. As coisas caem de um momento para o outro e o ritmo anual da cheia do rio, que era sempre uniforme, est\u00e1 perdido.\u201d<\/p>\n\n\n\n

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Jos\u00e9 Gregorio, l\u00edder Guarda Ind\u00edgena Ambiental (G.I.A.), posa para a foto na Amaz\u00f4nia que rodeia o rio Amacuyacu.PABLO ALBARENGA<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

\u00c9 por isso que Jos\u00e9 Gregorio est\u00e1 agora preocupado com a consolida\u00e7\u00e3o da guarda ind\u00edgena por ele fundada, com a aquisi\u00e7\u00e3o de autonomia e, se poss\u00edvel, com a sua extens\u00e3o a outras comunidades. Os jovens viram nele uma oportunidade de aprender, de se aplicar na defesa do territ\u00f3rio e de permanecer em San Mart\u00edn em vez de emigrar para Leticia ou mais al\u00e9m, onde as cidades consomem tudo.<\/p>\n\n\n\n

Para os tikunas, como para a maioria dos povos ind\u00edgenas da Amaz\u00f4nia, a floresta cont\u00e9m tudo. \u201cTudo o que temos est\u00e1 l\u00e1. L\u00e1 est\u00e1 a vida, nossos deuses, a Yakuruna, a \u00e1gua. Sem isso, tudo estar\u00e1 perdido, n\u00e3o haver\u00e1 mais vida\u201d, diz Jos\u00e9 Gregorio. \u201cTudo em San Mart\u00edn e no Trap\u00e9zio Amaz\u00f4nico existe, vive porque cuidamos dele h\u00e1 mil\u00eanios, porque \u00e9 uma constru\u00e7\u00e3o dos ancestrais.\u201d<\/p>\n\n\n\n

Jos\u00e9 Gregorio olha para o rio Amacayacu e v\u00ea um mundo de equil\u00edbrio muito fr\u00e1gil que ele quer preservar a todo custo e empregar o maior n\u00famero poss\u00edvel de jovens em sua conserva\u00e7\u00e3o. Com olhos vidrados e o olhar perdido na cortina de \u00e1gua que cai com estrondo na floresta tropical, Jos\u00e9 Gregorio tem uma mensagem para o mundo exterior, aquela que ele escolheu seguir quando jovem e decidiu voltar para San Mart\u00edn: \u201ceu diria que deveriam se preocupar em olhar para seu estilo de vida. Que deveriam reduzir o consumo massivo. Pensar que o que nos resta j\u00e1 \u00e9 muito pouco. Estamos ficando sem ar, sem \u00e1gua limpa. Temos que pensar sobre o que est\u00e1 por vir.\u201d<\/p>\n\n\n\n

Finalmente, o dil\u00favio infinito d\u00e1 tr\u00e9gua no fim da tarde, e Jos\u00e9 Gregorio sai para dar uma caminhada. Ele caminha ao longo da trilha, junto com alguns membros da guarda ind\u00edgena, vestido com sua camiseta verde camuflada, suas botas de p\u00e2ntano e seu chap\u00e9u. E de repente, nas margens do Amacayacu, j\u00e1 querendo transbordar, ele para diante de uma imensa e monumental \u00e1rvore.<\/p>\n\n\n\n

Como um esp\u00edrito antigo, consciente de que o que ele est\u00e1 prestes a dizer o compromete, fixando seus olhos na \u00e1gua, ele prev\u00ea: \u201cEm algum momento, esta natureza e o mundo da espiritualidade v\u00e3o tomar decis\u00f5es por n\u00f3s. E quando tomem essas decis\u00f5es, n\u00e3o haver\u00e1 ningu\u00e9m que possa dizer\u00a0eu tenho poder<\/em>. Aquele que vai se vingar ser\u00e1 o sol, e n\u00e3o h\u00e1 como par\u00e1-lo.\u201d Algumas semanas depois de pronunciar essas palavras, o mundo inteiro entrou na profunda\u00a0crise da Covid-19\u00a0e talvez, hoje, Jos\u00e9 Gregorio esteja pensando: \u201cEu avisei que a natureza iria se vingar\u201d.<\/p>\n\n\n\n

As restri\u00e7\u00f5es de mobilidade devido \u00e0 pandemia fizeram com que a guarda ind\u00edgena reduzisse significativamente suas rondas pela \u00e1rea. Al\u00e9m disso, caiu drasticamente a renda dispon\u00edvel para o combust\u00edvel de canoa.<\/p>\n\n\n\n

Contatado no in\u00edcio de agosto, Jos\u00e9 Greg\u00f3rio diz que ele e a guarda retomaram os trabalhos de controle ambiental do territ\u00f3rio. Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 doen\u00e7a, conta que se cuidam com plantas medicinais da floresta que\u00a0protegem e auxiliam na resili\u00eancia dessas comunidades amaz\u00f4nicas, determinadas a sobreviver a todos os males desde os antigos tempos da coloniza\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Este artigo pertence a uma\u00a0s\u00e9rie sobre defensores florestais\u00a0que come\u00e7ou no Brasil e no Equador e agora continua na Col\u00f4mbia. \u00c9 um projeto do\u00a0openDemocracy\/democracyAbierta\u00a0e foi realizado com o apoio do Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center.<\/p>\n\n\n\n

Tradu\u00e7\u00e3o: Manuella Libardi<\/p>\n\n\n\n

Fonte: El Pa\u00eds<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"