{"id":172757,"date":"2021-08-13T14:28:11","date_gmt":"2021-08-13T17:28:11","guid":{"rendered":"https:\/\/noticias.ambientebrasil.com.br\/?p=172757"},"modified":"2021-08-13T14:28:14","modified_gmt":"2021-08-13T17:28:14","slug":"a-contradicao-entre-recordes-no-agronegocio-e-fome-no-brasil","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/clipping\/2021\/08\/13\/172757-a-contradicao-entre-recordes-no-agronegocio-e-fome-no-brasil.html","title":{"rendered":"A contradi\u00e7\u00e3o entre recordes no agroneg\u00f3cio e fome no Brasil"},"content":{"rendered":"\n
\"\"<\/a>
Distribui\u00e7\u00e3o de alimentos em Parais\u00f3polis. Nos \u00faltimos meses de 2020, 19 milh\u00f5es de brasileiros passaram fome<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

Ap\u00f3s ter deixado o mapa da fome<\/a> da ONU em 2014, o Brasil tem convivido com um cen\u00e1rio de crescente inseguran\u00e7a alimentar. Nos \u00faltimos meses do ano passado, 19 milh\u00f5es de brasileiros passaram fome, e mais da metade dos domic\u00edlios no pa\u00eds enfrentou algum grau de inseguran\u00e7a alimentar. Os dados s\u00e3o de um estudo nacional realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Seguran\u00e7a Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).\u00a0<\/p>\n\n\n\n

O problema tem diversas justificativas, como a infla\u00e7\u00e3o que afeta g\u00eaneros aliment\u00edcios b\u00e1sicos desde o ano passado, o alto \u00edndice de desemprego no pa\u00eds e a defasagem do Bolsa Fam\u00edlia. Chama aten\u00e7\u00e3o, entretanto, que o crescimento da fome no Brasil coincida com um pico na exporta\u00e7\u00e3o de g\u00eaneros aliment\u00edcios. <\/p>\n\n\n\n

Em junho, o agroneg\u00f3cio<\/a> bateu mais um recorde ao faturar 12,11 bilh\u00f5es de d\u00f3lares com a venda de produtos agropecu\u00e1rios para o exterior. A cifra \u00e9 25% maior que os 9,69 bilh\u00f5es de d\u00f3lares registrados no mesmo m\u00eas do ano passado. A marca recorde tamb\u00e9m fora superada nos meses de abril e maio.\u00a0<\/p>\n\n\n\n

O centro de pesquisa Agro Global, ligado ao Insper, estima que as exporta\u00e7\u00f5es do setor devem alcan\u00e7ar 120 bilh\u00f5es de d\u00f3lares neste ano, 20% a mais do que em 2020. Tendo se tornado um \u201cfiador\u201d da balan\u00e7a comercial, a agropecu\u00e1ria se tornou o setor mais importante da economia nacional, em processo de desindustrializa\u00e7\u00e3o desde os anos 1980. <\/p>\n\n\n\n

Embora integre a cadeia produtiva do pa\u00eds, o agroneg\u00f3cio \u00e9 um mercado dominado globalmente por um seleto grupo de multinacionais. Juntas, as empresas ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus controlam 70% da produ\u00e7\u00e3o, comercializa\u00e7\u00e3o e transporte de produtos agr\u00edcolas. O setor \u00e9 marcado por sucessivas fus\u00f5es entre grandes marcas, que aumentam a concentra\u00e7\u00e3o dos mercados de sementes, agrot\u00f3xicos e terras.<\/p>\n\n\n\n

Demanda internacional<\/h2>\n\n\n\n

Nessa configura\u00e7\u00e3o, o foco do agroneg\u00f3cio est\u00e1 no atendimento da demanda global por commodities, que vivem um boom de pre\u00e7os. Os resultados expressivos alcan\u00e7ados pelo setor no Brasil<\/a> se justificam tamb\u00e9m pela desvaloriza\u00e7\u00e3o do real, que torna os produtos mais competitivos no exterior.<\/p>\n\n\n\n

“Como uma economia capitalista agr\u00edcola globalizada que produz commodities, o agroneg\u00f3cio vende para qualquer mercado que puder comprar. Hoje, a popula\u00e7\u00e3o n\u00e3o consegue comprar arroz porque o compromisso econ\u00f4mico do agroneg\u00f3cio \u00e9 com o mercado internacional”, critica o ge\u00f3grafo Ricardo Gilson, professor da Universidade Federal de Rond\u00f4nia (UNIR).<\/p>\n\n\n\n

O arroz, lembrado pelo pesquisador, \u00e9 um dos itens b\u00e1sicos da rotina alimentar dos brasileiros que mais foi afetado pela infla\u00e7\u00e3o, chegando a registrar 70% de aumento nos pre\u00e7os ao longo de 12 meses. <\/p>\n\n\n\n

Para o agr\u00f4nomo Silvio Porto, ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e professor da Universidade Federal do Rec\u00f4ncavo Baiano (UFRB), a principal causa do desequil\u00edbrio no pre\u00e7o do arroz foi o aumento extraordin\u00e1rio da demanda internacional.<\/p>\n\n\n\n

“A maioria dos produtores n\u00e3o tem capacidade de armazenagem, e fica dependente da ind\u00fastria processadora. Para esse setor, n\u00e3o faz diferen\u00e7a vender internamente ou exportar. Resultado: mais de 13% da safra foi para o exterior, gerando esse efeito interno”, explica.<\/p>\n\n\n\n

A tese de que as exporta\u00e7\u00f5es t\u00eam efeito inflacion\u00e1rio dentro do Brasil \u00e9 rejeitada por Bruno Lucchi, diretor t\u00e9cnico da Confedera\u00e7\u00e3o da Agricultura e Pecu\u00e1ria do Brasil (CNA), entidade que representa o agroneg\u00f3cio. <\/p>\n\n\n\n

“A exporta\u00e7\u00e3o n\u00e3o compete com o mercado interno. O problema do custo alto dos alimentos hoje \u00e9 mundial, devido \u00e0 alta dos insumos e problemas clim\u00e1ticos severos, como a seca. A venda para o exterior permite que os produtores n\u00e3o aumentem o pre\u00e7o internamente, por compensar as perdas”, comenta.<\/p>\n\n\n\n

“Celeiro do mundo” x inseguran\u00e7a alimentar<\/h2>\n\n\n\n

Em participa\u00e7\u00e3o no Congresso Brasileiro do Agroneg\u00f3cio, em 2018, o ent\u00e3o representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic, afirmou que o pa\u00eds tem condi\u00e7\u00f5es para ser o \u201cceleiro do mundo\u201d. Atualmente, o Brasil \u00e9 o maior exportador de carne bovina e o segundo maior exportador de gr\u00e3os no mundo.<\/p>\n\n\n\n

Internamente, no entanto, a participa\u00e7\u00e3o do agroneg\u00f3cio na garantia da seguran\u00e7a alimentar \u00e9 limitada. Embora seja respons\u00e1vel pela maior parte da produ\u00e7\u00e3o de g\u00eaneros aliment\u00edcios que integram a rotina alimentar das fam\u00edlias brasileiras, como carne bovina, milho, arroz e trigo, n\u00e3o h\u00e1 reservas destinadas ao mercado nacional. <\/p>\n\n\n\n

Embora movimentos sociais ligados ao campo afirmem que a agricultura familiar responde por 70% dos alimentos que chegam \u00e0 mesa dos brasileiros, o dado \u00e9 de dif\u00edcil mensura\u00e7\u00e3o, segundo especialistas. Mesmo assim, a import\u00e2ncia desse segmento produtivo para a seguran\u00e7a alimentar no pa\u00eds \u00e9 incontest\u00e1vel. <\/p>\n\n\n\n

Dados do Censo Agropecu\u00e1rio 2017-2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat\u00edstica (IBGE) mostram que a participa\u00e7\u00e3o da agricultura familiar na gera\u00e7\u00e3o de receitas no campo foi de 23% do total, percentual inferior aos 38% aferidos pelo mesmo estudo em 2006.<\/p>\n\n\n\n

Mesmo enfraquecido, o segmento teve contribui\u00e7\u00e3o relevante na produ\u00e7\u00e3o de hortali\u00e7as, frutas e legumes, como alface (64,4%), banana (48,5%) e mandioca (69,6%), al\u00e9m do leite de vaca (64,2%). <\/p>\n\n\n\n

Agricultura familiar j\u00e1 sofria antes da pandemia<\/h2>\n\n\n\n

Embora o aumento da fome tenha rela\u00e7\u00e3o direta com os efeitos econ\u00f4micos da pandemia, a situa\u00e7\u00e3o j\u00e1 vinha se agravando nos \u00faltimos anos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estat\u00edstica (IBGE), a inseguran\u00e7a alimentar grave estava presente no lar de 10,3 milh\u00f5es de brasileiros entre 2017 e 2018.<\/p>\n\n\n\n

O per\u00edodo analisado reflete os impactos de mudan\u00e7as nas pol\u00edticas p\u00fablicas destinadas \u00e0 seguran\u00e7a alimentar durante o governo do ex-presidente Michel Temer. Durante seu mandato, entrou em vigor a emenda constitucional que instituiu o teto de gastos p\u00fablicos.<\/p>\n\n\n\n

Nesse contexto, Temer realizou cortes or\u00e7ament\u00e1rios dr\u00e1sticos em programas voltados ao incentivo da agricultura familiar reconhecidos internacionalmente. O ex-presidente ainda extinguiu o Minist\u00e9rio do Desenvolvimento Agr\u00e1rio, deixando a agricultura familiar sob o guarda-chuva do Minist\u00e9rio da Agricultura, ocupado por representantes do agroneg\u00f3cio.<\/p>\n\n\n\n

Uma das principais pol\u00edticas p\u00fablicas voltadas ao incentivo da agricultura familiar foi o Programa de Aquisi\u00e7\u00e3o de Alimentos (PAA). A iniciativa consiste no repasse de recursos da Uni\u00e3o a estados e munic\u00edpios para a compra de produtos de comunidades tradicionais. Os alimentos comprados s\u00e3o repassados \u00e0 rede socioassistencial e aos equipamentos de nutri\u00e7\u00e3o destinados a pessoas em situa\u00e7\u00e3o de inseguran\u00e7a alimentar.<\/p>\n\n\n\n

O impacto do PAA foi tamanho que a Organiza\u00e7\u00e3o das Na\u00e7\u00f5es Unidas (ONU) o replicou em pa\u00edses africanos. Todavia, junto com o Programa Nacional de Alimenta\u00e7\u00e3o Escolar (Pnae), o PAA vem sofrendo com sucessivos cortes. Das 297 mil toneladas de alimentos comercializadas por meio do programa em 2012, o n\u00famero despencou para apenas 14 mil toneladas em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.\u00a0<\/p>\n\n\n\n

\"\"<\/a>
Sem reservas no agroneg\u00f3cio destinadas ao mercado nacional, agricultura familiar desempenha papel fundamental na alimenta\u00e7\u00e3o dos brasileiros<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

J\u00e1 o programa Um Milh\u00e3o de Cisternas, absorvido posteriormente pelo \u00c1gua Para Todos, sofreu cortes de 95%. Em 2020, no governo Bolsonaro, foi registrado o patamar mais baixo de constru\u00e7\u00e3o de cisternas pelo programa desde sua cria\u00e7\u00e3o, h\u00e1 17 anos, com apenas 8.310 unidades. <\/p>\n\n\n\n

“Na vida de uma mulher que precisava acordar cedinho para ir buscar \u00e1gua longe todos os dias, ter uma cisterna do lado de casa \u00e9 como ganhar na loteria”, comenta Gizelda Beserra. A agricultora de 47 anos integra o Polo da Borborema, que re\u00fane 13 sindicatos rurais e 150 associa\u00e7\u00f5es comunit\u00e1rios no munic\u00edpio de mesmo nome. <\/p>\n\n\n\n

No semi-\u00e1rido do Cariri paraibano, o grupo articulado h\u00e1 25 anos se fortaleceu pelas pol\u00edticas p\u00fablicas destinadas \u00e0 agricultura familiar e a assessoria prestada pela Articula\u00e7\u00e3o Nacional de Agroecologia.<\/p>\n\n\n\n

“Os programas de apoio \u00e0 agricultura familiar permitiram ter um excedente maior de produ\u00e7\u00e3o e a sustentabilidade das fam\u00edlias. A gente conseguiu reestruturar nossas propriedades, de modo que o jovem n\u00e3o precisava ir embora para cidades como S\u00e3o Paulo ou Rio de Janeiro. De repente, a gente sai desse cen\u00e1rio e vai para um governo que s\u00f3 fortalece o agroneg\u00f3cio”, afirma Gizelda.<\/p>\n\n\n\n

De acordo com o Censo Agropecu\u00e1rio 2017-2018, a queda na gera\u00e7\u00e3o de receitas pela agricultura familiar foi acompanhada por uma redu\u00e7\u00e3o de 9,5% no n\u00famero de estabelecimentos rurais classificados dessa forma e 17,6% no total de pessoal ocupado em atividades desse segmento.<\/p>\n\n\n\n

O impacto do abandono de pol\u00edticas p\u00fablicas exitosas no campo foi mencionado em um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim sobre a seguran\u00e7a alimentar no Brasil.<\/p>\n\n\n\n

“O enfraquecimento destas pol\u00edticas, reconhecidas mundialmente como a\u00e7\u00f5es exitosas que contribuem para a meta de erradica\u00e7\u00e3o da fome, sendo importantes impulsionadoras da sa\u00edda do Brasil do Mapa da Fome da FAO, em 2014, dificulta que os indiv\u00edduos mais pobres tenham acesso a alimentos”, afirmam os autores.<\/p>\n\n\n\n

Ao mencionar os “retrocessos institucionais e or\u00e7ament\u00e1rios na agenda da seguran\u00e7a alimentar e nutricional\u201d, os pesquisadores citam a\u00a0extin\u00e7\u00e3o do Conselho Nacional de Seguran\u00e7a Alimentar e Nutricional (Consea), uma das primeiras medidas do governo de Jair Bolsonaro.<\/p>\n\n\n\n

PL da Grilagem e acesso \u00e0 terra<\/h2>\n\n\n\n

Dentre as v\u00e1rias dificuldades enfrentadas pelos produtores rurais, uma das mais estruturais e antigas \u00e9 o acesso \u00e0 terra. Sem nunca ter passado por uma reforma agr\u00e1ria, o Brasil tem 45% de sua superf\u00edcie agr\u00edcola concentrada em 1% dos estabelecimentos rurais, de acordo com a organiza\u00e7\u00e3o internacional Oxfam.<\/p>\n\n\n\n

Especialistas veem um risco acentuado de aumento da concentra\u00e7\u00e3o de terras com a tramita\u00e7\u00e3o do PL 2.633, aprovado na C\u00e2mara dos Deputados, conhecido como “PL da Grilagem” por ambientalistas. Entre outros pontos, a proposta permite que m\u00e9dias propriedades consigam a posse de terra sem vistoria presencial.<\/p>\n\n\n\n

As mudan\u00e7as s\u00e3o criticadas pelo ge\u00f3grafo Ricardo Gilson, professor da UNIR, que enxerga um desvio de finalidade na atua\u00e7\u00e3o do Instituto Nacional de Coloniza\u00e7\u00e3o e Reforma Agr\u00e1ria (Incra) nesse processo.<\/p>\n\n\n\n

“No \u00e2mbito do Minist\u00e9rio da Agricultura, comandado pelo agroneg\u00f3cio, o Incra apoia o PL da Grilagem, que o enfraquece, e se resume a uma institui\u00e7\u00e3o cartorial para legitimar e ampliar a grilagem. H\u00e1 um esvaziamento total de suas finalidades e a perda da perspectiva de reforma agr\u00e1ria e fun\u00e7\u00e3o social da terra”, afirma.<\/p>\n\n\n\n

Fonte: Deutsche Welle<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"