{"id":177116,"date":"2022-03-31T16:19:24","date_gmt":"2022-03-31T19:19:24","guid":{"rendered":"https:\/\/noticias.ambientebrasil.com.br\/?p=177116"},"modified":"2022-03-31T16:19:27","modified_gmt":"2022-03-31T19:19:27","slug":"por-que-as-mulheres-sao-as-principais-vitimas-da-inseguranca-alimentar","status":"publish","type":"post","link":"http:\/\/localhost\/clipping\/2022\/03\/31\/177116-por-que-as-mulheres-sao-as-principais-vitimas-da-inseguranca-alimentar.html","title":{"rendered":"Por que as mulheres s\u00e3o as principais v\u00edtimas da inseguran\u00e7a alimentar"},"content":{"rendered":"\n
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Por que as mulheres s\u00e3o as principais afetadas pela inseguran\u00e7a alimentar (Foto: Ron Hansen\/Unsplash)<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

As an\u00e1lises sobre as condi\u00e7\u00f5es de vida e trabalho das mulheres sempre apresentam algum n\u00edvel de desigualdade de g\u00eanero. Nesse cen\u00e1rio, as atividades relacionadas \u00e0 produ\u00e7\u00e3o de alimentos e \u00e0 seguran\u00e7a alimentar n\u00e3o s\u00e3o uma exce\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Alimentar-se \u00e9 um ato marcado por trocas simb\u00f3licas que envolve o compartilhamento, a sociabilidade, as mem\u00f3rias e conhecimentos que nos permitem reconhecer alimentos e saber como prepar\u00e1-los para o consumo; envolve tamb\u00e9m redes de trabalho de agricultoras e agricultores na produ\u00e7\u00e3o e comercializa\u00e7\u00e3o que permitem o acesso aos alimentos. Assim, a comida que chega \u00e0s nossas mesas reflete pr\u00e1ticas culturais e saberes coletivos.<\/p>\n\n\n\n

Quando falamos de alimenta\u00e7\u00e3o discutimos tamb\u00e9m seguran\u00e7a alimentar e nutricional, que, no Brasil, \u00e9 compreendida como uma condi\u00e7\u00e3o que permite assegurar o direito humano \u00e0 alimenta\u00e7\u00e3o adequada. O acesso a alimentos de qualidade de forma regular e permanente, em quantidade suficiente e articulado com pr\u00e1ticas alimentares promotoras de sa\u00fade \u2014 que respeitam a diversidade cultural e que s\u00e3o ambiental, cultural, econ\u00f4mica e socialmente sustent\u00e1veis \u2014 s\u00e3o as premissas que definem os desafios da seguran\u00e7a alimentar e nutricional garantidos pela legisla\u00e7\u00e3o federal (Lei 11.346\/06).<\/p>\n\n\n\n

E esses desafios ultrapassam quest\u00f5es sociais para esbarrar tamb\u00e9m em diferen\u00e7as de g\u00eanero. O Relat\u00f3rio anual da FAO,\u00a0\u201cO Estado da Seguran\u00e7a Alimentar e Nutricional no Mundo\u201d (2021),\u00a0traz importantes alarmes sobre o aprofundamento das desigualdades no contexto da Covid-19 no mundo, afetando particularmente as mulheres, em um cen\u00e1rio em que as mudan\u00e7as clim\u00e1ticas tamb\u00e9m pressionam a produ\u00e7\u00e3o de alimentos e a seguran\u00e7a alimentar.<\/p>\n\n\n\n

Segundo o documento, em 2020, estima-se que a preval\u00eancia global de inseguran\u00e7a alimentar moderada ou grave teve um aumento igual ao dos cinco anos anteriores combinados. Quase uma em cada tr\u00eas pessoas no mundo (2,37 bilh\u00f5es) n\u00e3o teve acesso \u00e0 alimenta\u00e7\u00e3o adequada em 2020.<\/p>\n\n\n\n

Al\u00e9m disso, nesse mesmo ano, em n\u00edvel global, a diferen\u00e7a de g\u00eanero na preval\u00eancia de inseguran\u00e7a alimentar moderada ou grave cresceu ainda mais com a pandemia de Covid-19, mostrando-se 10% maior entre mulheres do que homens. Estima-se tamb\u00e9m que 29,9% das mulheres de 15 a 49 anos em 2019 em todo o mundo apresentaram quadros an\u00eamicos. Na \u00c1frica e na \u00c1sia, a condi\u00e7\u00e3o atingiu mais de 30% das mulheres; enquanto na Am\u00e9rica do Norte e Europa apenas 14,6% foram afetadas.<\/p>\n\n\n\n

Essa desigualdade de g\u00eanero \u00e9 paradoxal, considerando que alimentar \u00e9 uma das atividades de cuidados que atravessa o trabalho dom\u00e9stico, realizado majoritariamente por mulheres. Quando deslocamos o olhar da cidade para o campo, vemos a horta, as fruteiras, as cria\u00e7\u00f5es de pequenos animais mais pr\u00f3ximas \u00e0s casas e sob a responsabilidade das mulheres. Na divis\u00e3o dos trabalhos entre mulheres e homens, a elas t\u00eam sido incumbido o servi\u00e7o dom\u00e9stico, sempre caracterizado como de menor valor e reconhecimento social. Assim, parte da produ\u00e7\u00e3o de alimentos que chega \u00e0s mesas \u00e9 trabalho n\u00e3o pago e n\u00e3o reconhecido de mulheres.<\/p>\n\n\n\n

Nesse mesmo racioc\u00ednio, geralmente cabe \u00e0s mulheres e meninas a execu\u00e7\u00e3o de tarefas que exigem mais “cuidado”, como \u00e9 o caso da produ\u00e7\u00e3o de mudas em sementeiras, plantio de hortali\u00e7as, cuidado com animais de pequeno porte etc. Contudo, elas tamb\u00e9m desempenham as demais fun\u00e7\u00f5es no ciclo produtivo das propriedades, mas s\u00e3o invisibilizadas, ante a l\u00f3gica que as associa aos afazeres dom\u00e9sticos.<\/p>\n\n\n\n

As mulheres trabalham muitas vezes em \u00e1reas cedidas, alugadas ou que pertencem a seus maridos, o que se traduz em um contexto permanente de inseguran\u00e7a para elas, al\u00e9m de reduzir seu acesso a pol\u00edticas p\u00fablicas e assist\u00eancia t\u00e9cnica rural. Por vezes, por n\u00e3o terem autonomia para compartilhar o gerenciamento da propriedade com esposos, parceiros, pais, filhos, ou outros homens de seu ciclo de relacionamento, acabam por n\u00e3o compreender a import\u00e2ncia e representatividade de seu trabalho para a manuten\u00e7\u00e3o de seu n\u00facleo familiar.<\/p>\n\n\n\n

No Brasil, dados do Censo Agropecu\u00e1rio de 2017 demonstram que, dos 5 milh\u00f5es de estabelecimentos agropecu\u00e1rios existentes, apenas 19,7 % s\u00e3o dirigidos por mulheres. Na Am\u00e9rica Latina, embora 70% das mulheres rurais tenham acesso \u00e0 terra para produzir alimentos, apenas 30% det\u00eam a posse da terra, segundo o estudo \u201cEllas alimentan al mundo\u201d de 2021, um esfor\u00e7o conjunto de pesquisadores latino-americanos.<\/p>\n\n\n\n

Nos pa\u00edses em desenvolvimento, as mulheres formam 43% da m\u00e3o de obra agr\u00edcola, de acordo com o \u201cGuia para integrar equidade de g\u00eanero \u00e0 conserva\u00e7\u00e3o\u201d da The Nature Conservancy (2020). E, caso elas tivessem acesso equitativo a recursos agr\u00edcolas, tais como melhores sementes, cr\u00e9dito ou servi\u00e7os de extens\u00e3o agr\u00edcola, a colheita em suas propriedades aumentaria de 20% a 30%.<\/p>\n\n\n\n

Nos 34 pa\u00edses em desenvolvimento que disp\u00f5em de dados sobre mulheres agricultoras e subnutri\u00e7\u00e3o, h\u00e1 uma estimativa de que, se as mulheres tivessem acesso a recursos agr\u00edcolas tal como os homens, o n\u00famero de pessoas que passam fome diminuiria de 12% a 17%.<\/p>\n\n\n\n

Fica claro, assim, porque o acesso \u00e0 terra para as mulheres rurais, em especial as ind\u00edgenas e afrodescendentes, \u00e9 uma condi\u00e7\u00e3o fundamental para a produ\u00e7\u00e3o da vida sustent\u00e1vel, para o seu empoderamento e autonomia econ\u00f4mica e para assegurar seu direito \u00e0 alimenta\u00e7\u00e3o e combate \u00e0 fome e \u00e0 pobreza.<\/p>\n\n\n\n

A experi\u00eancia da Cooperativa Mista de Agricultores de Trememb\u00e9 e Regi\u00e3o – Coomatre, localizada no estado de S\u00e3o Paulo, traz um rico exemplo. Gerida por mulheres, a cooperativa tem atuado com sistemas agroflorestais mobilizando redes de comercializa\u00e7\u00e3o com cestas de produtos agroecol\u00f3gicos e, mais recentemente, articulando uma frente de coletores de sementes, com forte participa\u00e7\u00e3o das mulheres.<\/p>\n\n\n\n

A coleta de sementes modificou a rela\u00e7\u00e3o com os territ\u00f3rios: as mulheres passaram a criar trilhas marcadas pelas \u00e1rvores, reconhecer quando estas florescem, mapear os passos dados. A coleta de sementes fortaleceu o cuidado e prote\u00e7\u00e3o com o meio ambiente e estabeleceu uma nova fonte de renda para as mulheres.<\/p>\n\n\n\n

Al\u00e9m da produ\u00e7\u00e3o, o preparo de alimentos \u00e9 um pilar importante na seguran\u00e7a alimentar e nutricional, de forma a garantir o melhor uso do que \u00e9 produzido, com esfor\u00e7os que garantam variedade de nutrientes e de sabores. Observamos nas \u00faltimas d\u00e9cadas processos de homogeneiza\u00e7\u00e3o de h\u00e1bitos alimentares incentivados pelas din\u00e2micas de mercados, que retiram do cotidiano alimentos e pr\u00e1ticas de subsist\u00eancia locais, a mem\u00f3ria de como preparar diversos alimentos, estabelecendo-se uma ruptura com tecidos sociais, redes comunit\u00e1rias e tradi\u00e7\u00f5es locais que se firmavam pelo alimentar-se.<\/p>\n\n\n\n

A homogeneiza\u00e7\u00e3o alimentar prop\u00f5e um modelo pr\u00e1tico, r\u00e1pido, que envolve menos conhecimento sobre seu preparo, marcado por uma intensa presen\u00e7a de aditivos alimentares. N\u00e3o reconhecer e n\u00e3o saber preparar um alimento reduz a capacidade de seguran\u00e7a alimentar de comunidades e povos. Aqui as mulheres incidem como guardi\u00e3s.<\/p>\n\n\n\n

Na experi\u00eancia das mulheres ind\u00edgenas do Povo M\u1ebdb\u00eang\u00f4kre Xikrin, no Par\u00e1, a ro\u00e7a \u00e9 circular e sua import\u00e2ncia dialoga com v\u00e1rios n\u00edveis da cosmologia ind\u00edgena. O centro da planta\u00e7\u00e3o s\u00e3o as batatas, plantadas pelas mulheres que as visitam diariamente, cuidam dos cultivos, at\u00e9 colherem os tub\u00e9rculos e process\u00e1-los em alimento. Ir ao ro\u00e7ado \u00e9 momento para as conversas particulares, uma forma de assembleia ambulante. As variedades de batatas assumem maior presen\u00e7a na alimenta\u00e7\u00e3o desse povo e s\u00e3o preparadas de formas diversas.<\/p>\n\n\n\n

O preparo dos alimentos envolve esfor\u00e7os coletivos e, em geral, se concentra na cozinha da matriarca. A cozinha e o comer s\u00e3o atividades coletivas que atribuem sentidos comunit\u00e1rios para a alimenta\u00e7\u00e3o; integram-se ao processo de alimentar, conhecimentos, pr\u00e1ticas, cuidados, e partilhas entre gera\u00e7\u00f5es. Esses processos s\u00e3o indissoci\u00e1veis da produ\u00e7\u00e3o e transmiss\u00e3o dos valores e dos saberes associados \u00e0s plantas cultivadas. A comida que vai \u00e0 boca \u00e9 mem\u00f3ria, trabalho e conhecimento social, patrim\u00f4nio cultural e biol\u00f3gico.<\/p>\n\n\n\n

Ao guardarem sementes, lutarem pelo acesso a terras f\u00e9rteis e \u00e1gua, utilizarem pr\u00e1ticas agroecol\u00f3gicas e manterem a mem\u00f3ria de preparos de alimentos, as mulheres agricultoras constroem estrat\u00e9gias de empoderamento, de exerc\u00edcio de liberdades que se relaciona com um projeto de subsist\u00eancia com a natureza. Esses exemplos nos mostram que a equidade de g\u00eanero tem se provado um caminho necess\u00e1rio\u00a0\u2013 e urgente \u2013 para a produ\u00e7\u00e3o da vida e a sustentabilidade da nossa sociedade.\u00a0<\/p>\n\n\n\n

Fonte: Galileu<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"