Efraim Rodrigues (*)
O desmatamento no arco de fogo na Amazônia continua muito bem, obrigado, e parece obedecer mais aos ciclos de para/anda da economia brasileira, do que aos sempre renovados programas de fiscalização de desmatamento e queimadas. Quer saber quanto se desmatou no ano passado? Olhe para o PIB, não para a imagem de satélite. O recém saído valor do PIB, negativo, mostra que a coisa deve ter sido menos ruim em 2003. Com a economia parada, não se desmata. Ou seja; estivemos pobres mas parcialmente reconfortados pela redução das taxas de desmatamento.
Além do PIB, outra coisa que andou virada em 2003, pelo menos no sul-sudeste, foram as chuvas. Digo virada, porque assim como com a economia (que enriqueceu os ricos e empobreceu os pobres) choveu onde não tinha que chover. Não choveu nos reservatórios paulistanos, que estão secos, mas choveu nas cidades. Não choveu na agricultura no interior, mas choveu no litoral, para acabar com o feriado de todos.
Os que quiserem colocar a culpa nos desígnios divinos, que o façam e economizem o tempo de terminar de ler esta coluna.
No caso de São Paulo, a chuva que alaga a rua, mas não enche o reservatório, é uma praga criada pelos próprios paulistanos. Desde 1984, a Dra Magda Lombardo, da Geografia da USP, vem falando sobre a formação de ilhas de calor em grandes cidades como São Paulo. O efeito estufa local causado pela poluição, somado às grandes extensões de asfalto e concreto, fazem com que a coisa ferva, especialmente nos bairros menos arborizados.
Lá naqueles idos dos anos 80, eu trabalhava para um mutirão de construção de casas no Jardim Ângela, pertinho de onde um menino chamado Cafu deveria estar jogando futebol. As fotos do lugar parecem ainda piores que as que chegam de Marte. Um calor infernal. Freqüentemente, eu ia almoçar na casa dos meus pais, já em um lugar mais arborizado, alguns quilômetros longe, e a mudança de temperatura era radical.
Pois bem. A brisa marítima que entra em São Paulo encontra o ar aquecido do centro da cidade. Este ar marítimo carregado de água é empurrado para cima, e lá, estando mais frio, a umidade se condensa como no copo de cerveja, causando as imagens tão queridas aos jornais televisivos paulistanos ao cair da tarde. Ao sul, onde estão os reservatórios, é menos urbanizado, e não chove.
A coisa está virada também na região norte. Historicamente, as queimadas pequenas, coivaras, eram feitas logo antes das chuvas, para que as cinzas junto com a água, criassem as condições para um bom crescimento de plantas como mandioca e milho no verão. Isto foi no tempo da coivara. Os grandes desmatamentos com tratores de esteira e correntão queimam biomassa suficiente para manter aeroportos fechados por dias a fio, e dão uma cara cinzenta para a região durante a época de queimadas, e pior do que isto, como se publicou na revista Science nesta semana, bagunçam o regime de chuvas.
As gotas de chuva se formam quando o vapor de água se agrega ao redor de Núcleos de Condensação de Nuvens. É como um sogro, ao qual mais e mais genros vão se agregando até que o peso é tão grande, que o coitado cai em queda livre. Em regiões de cultivo de maçã, por exemplo, se espalham Núcleos de Condensação para que as gotas sejam menores e reduzam o prejuízo das chuvas de granizo. É como se espalhassem sogros por aí, para dividir o peso dos genros. Na região norte, as queimadas aumentam tanto a quantidade de núcleos de condensação, que não chove. Os núcleos não agregam o vapor de água necessário para cair.
Com queimada e sem chuva a coisa fica preta (desculpem o humor irremediavelmente negro). Não há vegetação para manter o fluxo constante de água para a atmosfera, e não há água de cima para umedecer o solo.
Deixo vocês e vou tentar beber meu copo horário de água, enquanto isto é ainda possível.
* É Ph.D. em Ecologia pela Harvard University, professor adjunto de Recursos Naturais da UEL e autor do Livro Biologia da Conservação.