Não adianta procurar um Myctophydae na peixaria do mercado. Mesmo que peça pelo nome popular – peixe-lanterna -, não dará certo. Com 5 a 10 centímetros de comprimento e uma coisa em comum com os vaga-lumes – o corpo coberto por órgãos que produzem luz -, os representantes dessa família de peixes vivem durante o dia em águas profundas, de até 1.500 metros, ao longo da costa brasileira. À noite, migram para a superfície, em cardumes. É quando são devorados por peixes grandes como os atuns, estes sim uma alternativa para a refeição, com 2 a 3 metros de comprimento.
Hoje se sabe muito mais sobre os peixes-lanterna como resultado de dois empreendimentos complementares, ambos financiados pelo MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia: um ligado ao Pronex – Programa de Apoio a Núcleos de Excelência, que começou há cinco anos para avaliar a diversidade da fauna de peixes do país, e o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), iniciado em 1997 com a meta de propor formas de exploração que não ameacem a sobrevivência das espécies mais exploradas comercialmente.
O livro Peixes da Zona Econômica Exclusiva da Região Sudeste-Sul do Brasil, publicado pela Editora da USP (Edusp) com os achados da equipe do Revizee, trouxe dados inéditos sobre 185 espécies de peixes de profundidade que foram incorporados ao Catálogo das Espécies de Peixes Marinhos do Brasil, editado pelo Museu de Zoologia da USP. Com esses dois trabalhos, o número de espécies conhecidas de peixes marinhos brasileiros mais que dobrou. Se eram 578 em 1941, data do levantamento anterior, hoje são 1.297 espécies, listadas uma a uma no catálogo.
À primeira vista, os peixes da costa nacional chamam a atenção pelo contraste de portes – dos minúsculos e coloridos gobiídeos, com menos de 1 centímetro de comprimento, encontrados em recifes de corais, ao tubarão-baleia (Rhincodon typus), com até 10 metros. Vivem ao longo dos 8 mil quilômetros do litoral em costões rochosos, recifes de corais, nas regiões de alto-mar mais próximas à superfície ou nas profundezas sem luz, como os peixes-lanterna, estudados minuciosamente por Andressa Pinter dos Santos, aluna de pós-graduação do Instituto Oceanográfico da USP e uma das autoras do livro Peixes da Zona Econômica Exclusiva, coordenado por José Lima de Figueiredo, do Museu de Zoologia da USP.
“Os peixes-lanterna são os vertebrados mais abundantes dos oceanos”, diz ela, após estudar 37 das 77 espécies encontradas no litoral brasileiro. Representantes da família Myctophydae são hoje reconhecidos como de alto valor ecológico por estarem na base da teia alimentar – em outras palavras, por servirem de alimento a espécies de valor comercial, a exemplo do atum (família Scombridae) e da lula (Illex argentinus), ou mesmo para as baleias.
Há outras regiões do planeta com menores dimensões territoriais e uma diversidade de espécies ainda maior, como os arquipélagos do Havaí, mas é respeitável a quantidade de espécies endêmicas – exclusivas – do litoral brasileiro: são 123, o equivalente a 10% do total de espécies. Esse conjunto inclui até mesmo peixes de grande porte descobertos recentemente, como a raia Dasyatis marianae. Com 1 metro de diâmetro, essa espécie vive sobre fundos de recifes ou cascalho, em águas rasas, de no máximo 30 metros de profundidade, e foi descrita apenas em 2000.
Foi também há três anos que biólogos do Museu de Zoologia e do Instituto Smithsonian, dos Estados Unidos, relataram a descoberta da espécie Clepticus brasiliensis, um peixe bastante peculiar, também endêmico no país. A nadadeira caudal dos machos, mais comprida que o próprio corpo, de cerca de 30 centímetros, apresenta longos filamentos de função desconhecida. O C. brasiliensis é um catador seletivo de plâncton, conjunto de minúsculos organismos que flutuam na superfície do mar e se encontram na base da cadeia alimentar marinha – outras espécies de peixes que também se alimentam de plâncton nadam com a boca aberta e filtram a comida.
O mais intrigante é que esse Clepticus é hermafrodita seqüencial: nascem fêmeas e uma parte delas – não se sabe ainda qual a proporção – se transforma em macho depois de adultas. Se morre um dos machos dominantes do grupo, apenas uma fêmea vira macho, assume o posto, pára de produzir óvulos e começa a produzir espermatozóides. Entre os achados ainda mais recentes estão os novos representantes do gênero Apionichthys, guardados sem identificação há cerca de 30 anos no acervo do Museu de Zoologia e de outros museus até serem estudados por Robson Tamar da Costa Ramos, aluno de doutorado e Naércio Aquino Menezes, coordenador do catálogo.
Ramos descobriu três espécies, descritas este ano: Apionichthys menezesi, A. rosai e A. seripierriae, que vivem hoje em rios da Bacia Amazônica, mas descendem de antepassados marinhos. São peixes que, como os linguados, dos quais são aparentados, têm os olhos e o colorido do corpo de um lado só – e assim conseguem se camuflar: “Vivem enterrados ou semi-enterrados na areia e os predadores não os enxergam”, relata Menezes. Vistos de cima, mesmo quando estão nadando, os Apionichthys confundem-se com o fundo dos rios, por causa da cor escura do lado superior do corpo.
Paradigma desfeito
Antes, por falta de informações detalhadas sobre a diversidade de peixes marinhos, pensava-se que a fauna nacional de peixes de recifes fosse praticamente idêntica à do mar do Caribe, por serem ambas áreas tropicais e vizinhas. Essa tese naufragou de vez em 2002, quando Rodrigo Moura terminouseu doutorado no Instituto de Biociências da USP, mostrando as diferenças entre os peixes que vivem em recifes de corais no litoral do Brasil e os do Caribe, antes vistos como idênticos, principalmente por causa do padrão de cores do corpo.
“Os níveis de endemismo nos recifes aqui são quatro vezes maiores que os do Caribe, onde estão 95% dos recifes do Atlântico”, afirma Moura, co-autor do catálogo, que hoje trabalha em Caravelas, litoral da Bahia, como biólogo da Conservation International Brasil.
Se uma idéia morreu, outra ganhou força: está mais claro que o rio Amazonas separa as populações de peixes marinhos por jogar água doce a mais de 100 quilômetros além da foz. “O Amazonas funciona como uma barreira efetiva para a dispersão de peixes”, comenta Moura. Segundo ele, não é impossível atravessar esse obstáculo, mas muitas espécies devem vencê-lo num ritmo lento, o que permite a diferenciação de espécies ao sul e ao norte da foz.
Os resultados do Revizee deixam claro: é impossível aumentar de forma significativa – e não-predatória – a quantidade de pescado marinho. “A costa do Brasil é pobre em espécies comerciais, diferentemente do Peru, que conta com amplos estoques de anchoveta, devido às correntes marítimas frias que se aproximam do continente”, diz Menezes. “E o pior é que os estoques das espécies mais exploradas estão exauridos.”
Segundo ele, hoje são raros os cardumes de sardinha (Sardinella brasiliensis), que antes se constituíam num dos principais recursos pesqueiros do país, em decorrência da pesca predatória somada às variações ambientais locais. O peixe-sapo (Lophius gastrophysys), antes desprezado na pesca comercial, começou a ser pescado intensamente há poucos anos devido à carne considerada deliciosa, e hoje as populações dessa espécie estão em franco declínio. (Pesquisa Fapesp)