Humanidade já consome metade da energia do planeta, diz livro

Existem muitos jeitos de examinar o complicado sistema que os cientistas chamam de biosfera, a camada de vida que reveste a Terra. Um deles é perceber que esse conjunto funciona como um conversor de energia ridiculamente grande: o processo começa com a luz que vem do Sol e com os organismos que conseguem usá-la como bateria, e atravessa todas as formas de vida que precisam comer ou parasitar outros organismos.

Fazer a conta de como essa Itaipu de dimensões planetárias converte tanta energia em matéria viva pode parecer missão impossível, mas o biólogo britânico Stuart Pimm, da Universidade Duke (Estados Unidos) encarou o desafio em seu livro “Terras da Terra”, lançado recentemente no Brasil. O resultado da conta, ainda que provisório, não é nada bom: a ação de uma única espécie, a humana, está perigosamente próxima de monopolizar a conta de luz do planeta. Nem é preciso dizer que, num caso desses, a multa pelo consumo excessivo de energia está além do que a humanidade pode pagar.

De calculadora na mão, Pimm faz um tour pelos ecossistemas terrestres e marinhos do planeta para estimar, em cada caso, que fatia do bolo energético da Terra o homem anda mordendo. A somatória incessante é um dos poucos entraves à leitura do livro – ainda mais porque quase não precisava, brinca o biólogo.

É que, sem querer e fazendo piada, Pimm atinou com a resposta certa. Ele conta que outro biólogo, Paul Ehrlich, da Universidade Stanford, fez a pergunta fatídica durante uma viagem da dupla ao Havaí. “Que percentual do crescimento anual das plantas terrestres nós consumimos, direta ou indiretamente?”, questionou Ehrlich. Debochando do amigo, Pimm teria retrucado “A resposta é 42%”. Um parêntese para o leitor não-nerd: 42 é a resposta dada pelo Deep Thought, o computador mais potente do cosmos, para “a pergunta definitiva, sobre a vida, o Universo e tudo o mais”, na série de ficção científica “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, de Douglas Adams.

Pimm achou menos graça na piada quando Ehrlich soltou um palavrão e disse: “Levamos meses para obter essa cifra. Como você conseguiu seu número assim tão rápido?”. De fato, a conta de Ehrlich e companhia realmente ficava muito perto de 42% – para ser mais exato, 45%.

Usar a produtividade total das plantas, no caso dos ambientes terrestres, é bastante razoável porque são elas que convertem a energia solar numa forma utilizável pelas outras formas de vida, que podem então comer a biomassa vegetal (no caso dos herbívoros) ou se alimentar da biomassa herbívora. Continuando com a metáfora energético-econômica, é como se as atividades humanas engolissem quase metade do “juro” produzido pela conta biológica do planeta por ano. Pimm resume a conta em linguagem de manchete sensacionalista: “O homem come o planeta! Dois quintos já se foram!”.

Perigo em alto mar – A contabilidade terrestre ocupa boa parte do livro e viagens aventurescas da Polinésia ao Brasil, mas a situação dos mares da Terra também ganha destaque – não por acaso. No último século, as frotas pesqueiras do planeta suaram um bocado para provar que Thomas Huxley (1825-1895), naturalista britânico e defensor número um de Charles Darwin, tinha falado bobagem. Numa palestra em 1883, ele declarara: “Acredito… que todos os grandes pescados marinhos são inexauríveis”. Mais de 120 anos depois, é difícil achar uma espécie de peixe muito apreciada comercialmente que não esteja sob risco de extinção.

Há muitas razões para essa situação alarmante, além da capacidade industrial dos atuais barcos de pesca. Uma delas é que os recursos do mar, na verdade, são surpreendentemente escassos, apesar da vastidão oceânica. Boa parte do mar é estéril: a vida se concentra em lugares como as plataformas próximas dos continentes ou em “montanhas” submersas, onde há nutrientes. A região perto dos continentes e as poucas manchas com riqueza de vida em alto-mar, assim, são sistematicamente saqueadas, explica Pimm.

Há, porém, outro problema: o uso da biomassa marinha pelo homem consegue ser ainda mais perdulário do que o que acontece em terra. Quando se olha a cadeia alimentar oceânica, que começa com o minúsculo fitoplâncton (“plantas” microscópicas) e vai subindo até predadores que comem vários outros predadores, como os atuns, o impacto humano se exerce sobre quem está no alto dela. É como se os restaurantes estivessem servindo filé de leão ou tigre no lugar de carne bovina. O desperdício é quantificável: “Na próxima vez que você comer um delicioso filé de espadarte, digamos um quarto de quilo grelhado na manteiga”, escreve Pimm, “pense que um quarto de tonelada de fitoplâncton foi morto pelo zôoplancton para tornar possível tal situação”.

E que tal acabar com todo esse desperdício de níveis tróficos (como os cientistas chamam os degraus da cadeia alimentar) e ir direto à fonte, por assim dizer? A ex-União Soviética bem que tentou. Em meados da década de 1980, conta Pimm, barcos soviéticos capturavam mais de 400 mil toneladas anuais de krill, um camarãozinho herbívoro e extremamente abundante da Antártida.

Acontece que os bichos adquirem gosto de capim quando estão se alimentando, além de estragar depressa. As máquinas descascadoras das caudas dos crustáceos estragavam cerca de três quartos da colheita. O principal produto derivado dos camarões, batizado de “Okean”, não passava de proteína coagulada. Compreensivelmente, ninguém na Rússia pós-comunista (aliás, no mundo) quer comer krill com catupiry no almoço de domingo. O mesmo vale para quase todas as espécies que ainda são abundantes no mar: não são fáceis de explorar comercialmente nem saborosas.

A grande crise – Tamanha voracidade humana, alerta o pesquisador, está cobrando seu preço. Está cada vez mais difícil negar que o planeta passa pela pior crise de extinções de espécies dos últimos milhões de anos. Os cálculos mais recentes, embora imprecisos, falam numa taxa de desaparecimento de espécies entre mil e 10 mil vezes maior que a registrada em condições normais (na qual uma ave se extinguiria a cada cem anos). (Reinaldo José Lopes/ Folha Online)