A denúncia partiu dos próprios comunitários. Munidos de aparelhos de GPS (Sistema de Posicionamento Global), mais de 55 pequenos agricultores mapearam os efeitos da expansão da lavoura sobre rios, florestas e a demografia de 121 comunidades, que vivem boa parte delas cercadas de soja.
O mapa é um exemplo de um fenômeno novo na Amazônia: como as tecnologias da informação vêm sendo usadas por populações locais para se contraporem a latifundiários, madeireiros e grileiros – e para se tornarem visíveis ao poder público. Numa época em que até a grilagem de terras é feita com o auxílio de mapas de satélite, os caboclos dão o troco.
“Cada vez mais esses instrumentos estão sendo colocados à disposição deles. O que há cinco anos era caro e complicado hoje é barato, simples e extremamente livre”, diz o agrônomo Ricardo Folhes, do Projeto Saúde & Alegria.
A ONG de Santarém é pioneira em capacitar comunidades locais a produzirem mapas usando imagens de satélite. Seu trabalho ajudou os moradores do extremo oeste do Pará a produzirem uma proposta de destinação das terras da Gleba Nova Olinda, zona de 1,3 milhão de hectares na qual um conflito entre populações tradicionais e madeireiros levou o governo do Estado a decretar o congelamento de toda atividade econômica até que se resolva a questão fundiária.
“Não havia um mapa oficial que mostrasse que tem gente embaixo da floresta naquela região”, diz Folhes. A proposta das comunidades, que inclui a criação de assentamentos extrativistas e até de uma terra indígena, será apreciada pelo governo até 13 de fevereiro.
Contraprova – Inspirado pela experiência, o Greenpeace distribuiu aparelhos de GPS entre os sindicatos de trabalhadores rurais de Santarém e Belterra e treinou os associados a usá-los para mapear a região da soja. “Muita gente não sabia nem usar celular”, disse o geólogo Wayne Silva, do Greenpeace, especialista em georreferenciamento, que organizou oficinas de capacitação nas comunidades debaixo de um pesadelo logístico: como fazer o treinamento sem que os sojicultores soubessem.
Os pontos georreferenciados (ou seja, cujas coordenadas foram obtidas com precisão via satélite, por meio do GPS) incluem 55 desmatamentos, 29 igarapés contaminados ou assoreados e uma dezena de acessos de comunidades às suas áreas de produção bloqueados por fazendas.
O estrago, segundo os pequenos agricultores, teria acontecido principalmente após o ano 2000, quando a multinacional Cargill anunciou a construção de um porto de escoamento de soja em Santarém. Entre 2003, ano em que o porto entrou em operação, e 2005 a área ocupada por grandes propriedades rurais dobrou na região.
Os caboclos denunciam o aumento da concentração fundiária e o êxodo rural causado pela soja. Segundo o Greenpeace, o mapa comunitário é uma “contraprova” ao EIA-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental) do porto. Este afirma que as lideranças que indicaram esses impactos “não puderam apresentar dados que permitissem sua comprovação”.
“Quando a gente fala que tem um acesso bloqueado, um igarapé contaminado ou enterrado, as autoridades acham que a gente está mentindo”, diz José Sebastião Paixão da Costa, diretor regional do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém. “Com o mapa, a gente tem como provar”, afirma.
Na semana passada, a reportagem da Folha visitou comunidades mapeadas, acompanhada de moradores e do Greenpeace. De uma delas, Poço Branco, só restou um cemitério, cercado totalmente pela lavoura. Em outra comunidade, a do Paca, um igarapé foi soterrado pelos fazendeiros. Sobrou só a escola abandonada.
Outro lado – A Cargill afirmou na sexta-feira (16) que não teve acesso ao mapa comunitário da soja divulgado ontem pelas ONGs, mas afirmou que as comunidades rurais e ribeirinhas foram amplamente ouvidas durante a elaboração do EIA-Rima do porto de Santarém. O documento foi finalizado e entregue ao governo do Pará em setembro.
Segundo Afonso Champi, diretor de Assuntos Corporativos da empresa, a consultoria que elaborou o estudo de impacto ambiental visitou 18 comunidades rurais e 9 bairros de Santarém, além de ter ouvido movimentos sociais a respeito da percepção que a população tinha dos impactos da soja na região.
Não foi verificado êxodo rural, disse. Ao contrário: segundo Champi, citando dados do IBGE, a população rural de Santarém cresceu depois da instalação do porto.
Sobre o desaparecimento de comunidades rurais, Champi afirmou que “houve casos que não se configuraram e casos de lugares que desapareceram há mais de dez anos, antes da soja”.
Raquel Carvalho, do Greenpeace, diz que o mapa não data o declínio de comunidades, mas insiste: “Elas desapareceram porque num primeiro momento houve grilagem de terras e em outro momento entrou a soja”.
A contaminação de igarapés, segundo Champi, “não foi escopo” do EIA-Rima. Mas ele questiona a metodologia usada pelo mapa comunitário para dizer se há contaminação ou não. “Se houver, é gravíssimo, é caso de denúncia imediata, não de colocar isso num estudo.” (Fonte: Claudio Angelo/ Folha Online)