Na ocasião do julgamento, no entanto, foram estabelecidas 19 condicionantes para demarcações de terras indígenas no país. Uma delas, a que proíbe a ampliação de reservas já existentes, ameaça a sobrevivência do povo guarani-caiová, do Mato Grosso do Sul, cujos índices de violência são os mais altos entre todas as comunidades indígenas do país. O motivo principal é a disputa por terras – ou a falta delas. Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), após a conclusão do julgamento de Raposa Serra do Sol, a situação dos guaranis-caiovás é a mais urgente a ser resolvida no país.
Relatório do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) aponta que, em 2008, dos 60 assassinatos de indígenas, 42 foram cometidos contra guaranis-caiovás, que possuem uma taxa de homicídios mais de 20 vezes maior do que a registrada no Estado de São Paulo no mesmo ano. No ano passado, todos 32 suicídios praticados no Brasil por indígenas foram cometidos por caiovás. Em Dourados, maior reserva ocupada por guaranis-caiovás, 24 crianças foram internadas com desnutrição severa e 200 com desnutrição moderada em 2008.
Na raiz dos problemas dos guaranis-caiovás está justamente a escassez de terras para a sobrevivência digna, posição compartilhada por Funai, Cimi, ISA (Instituto Socioambiental), antropólogos, organizações indígenas e representantes Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul(MPF-MS). A expansão do agronegócio no sul do Estado, onde estão os guaranis-caiovás, também se constitui como um elemento de extrema ameaça aos índios da região, segundo as entidades citadas.
De acordo com levantamento do ISA publicado em 2008, o povo indígena guarani-caiová é o quarto mais populoso do Brasil, com ao menos 20 mil pessoas, atrás somente do ticuna (35 mil pessoas), kaingang (28 mil) e macuxi (23.433). No entanto, as 25 terras indígenas ocupadas por guaranis-caiovás – 17 delas homologadas e regularizadas – somam aproximadamente 730 km², valor ínfimo se comparado a reservas situadas na Amazônia Legal, a maioria delas ocupadas por uma população bem menor de índios.
O STF ainda não definiu a aplicabilidade das condicionantes estabelecidas no julgamento de Raposa Serra do Sol, ou seja, se elas valerão somente para a reserva de Roraima, para todas as terras indígenas – inclusive as demarcadas antes do julgamento – ou só para demarcações futuras. Isso será definido em julgamentos futuros envolvendo terras indígenas, vários deles na pauta do segundo semestre.
Em maio deste ano, 130 etnias indígenas que se reuniram no Acampamento Terra Livre, montado na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, definiram como pauta prioritária a demarcação de terras para os guaranis-caiovás. “Reivindicamos do governo Lula o cumprimento do mandato constitucional de demarcar todas as terras indígenas do Brasil, mas de forma urgentíssima dos nossos irmãos guarani-caiová, em Mato Grosso do Sul, submetidos há décadas a um processo vil e criminoso de marginalização, etnocídio e genocídio, nas mãos de latifundiários e distintos entes do Estado brasileiro, seja por ação ou omissão”, afirmam os índios na declaração final da semana.
De acordo com o Cimi, além de concluir os processos de demarcação que já existem, é necessário demarcar 36 novas terras para garantir a sobrevivência digna dos guaranis-caiovás. Esses novos territórios, situados em 26 municípios, foram identificados e reconhecidos, segundo o Cimi, pelos próprios índios como tekohas, que significa, em guarani, “lugar onde realizamos o nosso modo de ser”.
A Funai não sabe dizer quantas terras indígenas serão criadas, nem o território a ser demarcado. Após receber do MPF-MS, em novembro de 2008, um ofício cobrando celeridade na demarcação de novos territórios indígenas no Mato Grosso do Sul, o presidente da Funai, Márcio Meira, assinou um termo de ajustamento de conduta, no qual se comprometeu a iniciar os procedimentos técnicos para as demarcações.
Os estudos das novas demarcações tiveram início no começo do ano, mas, segundo a Funai, foram interrompidos após equipes de técnicos sofrerem ameaças da parte dos fazendeiros e uma antropóloga ter sido sequestrada. “Não incentivamos qualquer tipo de violência, mas os produtores não estão dispostos a deixar técnicos da Funai entrar nas suas propriedades para fazer estudos”, afirma Eduardo Corrêa Riedel, vice-presidente da Famasul (Federação de Agricultura e Pecuária do MS).
De acordo com a Funai, contudo, os levantamentos serão retomados em agosto e os técnicos e antropólogos serão acompanhados por policiais federais. Caso o Supremo decida que as condicionantes serão válidas não só para Raposa/Serra do Sol, e sim para todas as novas demarcações, esse processo ficará comprometido, já que, de acordo com a própria Funai, grande parte das novas terras que devem ser demarcadas o serão de forma contínua com outras que já existem, o que pode ser interpretado como ampliação das terras atuais.
O presidente da Funai foi procurado pelo UOL Notícias, mas o órgão afirmou que ele não se manifestará sobre as questões envolvendo os guaranis-caiovás.
“No julgamento da Raposa/Serra do Sol, o STF simplesmente decidiu o óbvio (a demarcação contínua) e impôs restrições que até então não existiam. Na minha avaliação, a decisão do STF foi um retrocesso. Os índios saíram perdendo”, afirma Roberto Liebgott, filósofo e vice-presidente do Cimi.
Colonização do MS – A ocupação por fazendeiros e produtores rurais teve início no Mato Grosso do Sul no começo do século passado e se intensificou nas décadas de 40, 50 e 60. “Nesse período, os índios, que estavam na região desde o século 17, possuíam poucas garantias e foram retirados praticamente à força de suas terras originárias pelos colonizadores e confinados pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em pequenas propriedades, que possibilitavam somente a sobrevivência e reprodução imediata”, afirma Rogério Batalha Rocha, assessor jurídico do Cimi.
Antes da Constituição Federal de 1988, a concepção do Estado era de que os índios seriam “incorporados à sociedade branca”. Logo, o Estado demarcava a terra apenas onde os índios tinham a casa fixada, segundo Ana Paula Souto Maior, advogada do ISA.
“Em 88, foi reconhecido o direito dos índios de manter a própria cultura, levando em consideração quatro critérios: o local onde os povos residem, os recursos naturais necessários para atividades produtivas, os elementos necessários para a reprodução populacional e a garantia de preservação dos aspectos naturais e culturais”, diz Ana Paula.
O sul do Mato Grosso do Sul, região onde a Funai estuda fazer novas demarcações, possui 21,48% da área total e 28,06% da população do Estado. A região é responsável, segundo relatório da Famasul, por 60,9% da soja, 65,7% do milho e 40,3% da cana-de-açúcar produzidos no Mato Grosso do Sul e concentra aproximadamente um quarto do PIB (Produto Interno Bruto), mais de um terço das exportações e um quinto da mão-de- obra empregada no Estado.
Entidades ligadas a produtores rurais da região já se manifestaram de forma contrária a novas demarcações. Em março, a declaração final de um encontro de fazendeiros em Dourados (MS) foi “tolerância zero para demarcações indígenas e para a infração dos direitos do produtor rural”. No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, há 87 processos envolvendo conflitos entre fazendeiros e índios, cujo problema central é a disputa de terras.
“Entendemos que a política indígena tem que evoluir com o trabalho da Funai para um modelo de assistência, de integração do índio ao sistema capitalista”, diz Riedel. “O cone sul é o ‘filé-mignon’ do Estado, onde estão as terras mais férteis. E eles querem criar um enclave guarani, uma nação guarani na região”, acrescenta Josiel Quintino dos Santos, assessor da Famasul para assuntos indígenas.
“Os brancos muitas vezes dizem que estão na terra há muito tempo, mas não se dão conta que os índios estão há milênios”, afirma o indigenista e ex-presidente da Funai, Sydney Possuelo.
De acordo com a Funai, quando uma área é expropriada para a demarcação de uma terra indígena, os antigos ocupantes recebem indenização somente pelas benfeitorias de boa fé – ou seja, por tudo aquilo que foi construído na propriedade -, mas não recebem pela terra em si. Entretanto, dadas as especificidades da questão no Mato Grosso do Sul, existe a possibilidade de os produtores serem indenizados também pela terra limpa, que será avaliada pela Advocacia-Geral da União (AGU), segundo a Funai.
No fim de junho, a pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Jorge Armando Félix, chefe de gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, viajou ao Mato Grosso do Sul para observar de perto a situação dos índios. Por conta do mau tempo, Félix suspendeu a visita a Dourados, mas deve voltar à região em breve. (Fonte: Guilherme Balza/ UOL Notícias)