Grande parte da comunidade que trabalha com transplante está focada em libertar os pacientes da imunossupressão, e essa é uma forma de fazê-lo”
Jonathan Nunez tinha 8 meses de idade quando um transplante de fígado salvou sua vida. Três anos depois, seu corpo rejeitou o transplante, atacando-o de forma tão violenta que o órgão foi desgastado e desapareceu, mal deixando rastro.
O resultado, aparentemente um desastre, era exatamente o que os médicos esperavam. Eles tinham, propositadamente, interrompido o remédio antirrejeição porque Jonathan já não precisava mais do órgão transplantado. Seu próprio fígado tinha se regenerado – exatamente como esperado.
Jonathan, um garotinho de 4 anos com um sorriso tímido e apaixonado por dinossauros, faz parte de um pequeno grupos de crianças nos Estados Unidos que passaram por um tipo bastante incomum de cirurgia de transplante, uma operação que – para as poucas pessoas elegíveis – oferece uma vantagem tremenda: uma vida normal, livre de remédios contra rejeição que suprimem o sistema imunológico e aumentam o risco de infecções, câncer e outros problemas. Normalmente, pacientes de transplante devem tomar essas drogas poderosas por toda a vida.
Em transplantes-padrão, o órgão doente é completamente removido e um novo é colocado em seu lugar. A diferença na operação de Jonathan e outras crianças é que apenas uma parte do fígado do paciente é removida, e é substituída por uma parte do fígado do doador. Primeiro, para evitar a rejeição, o paciente toma as drogas usuais.
Depois, os médicos observam e esperam. O fígado tem uma capacidade extraordinária de se regenerar, especialmente em crianças, e a esperança é que, enquanto o transplante faz sua parte, o que resta do próprio fígado do paciente se regenere e comece a funcionar novamente. O processo pode levar um ano ou mais; no caso de Jonathan, levou três anos.
Se o fígado se regenera e cresce o suficiente, os médicos começam a interromper os remédios antirrejeição. O sistema imunológico do paciente se reativa e, na maioria dos casos, destrói gradualmente o órgão transplantado, que já não é mais necessário. A vida volta ao normal, livre do compromisso diário de tomar pílulas e arcar com seus riscos e custos.
“Acho que precisamos promover essa ideia”, diz Tomoaki Kato, cirurgião de Jonathan. Ele trabalha no Hospital Presbiteriano de Nova York e no Centro Médico da Universidade Colúmbia, mas realizou o transplante de Jonathan em 2006 no Jackson Memorial, da Universidade de Miami.
Porém, apenas uma fração mínima dos pacientes de transplante são candidatos à operação: certas crianças com insuficiência hepática aguda – provavelmente menos de 100 por ano nos Estados Unidos, onde 525 pessoas com menos de 18 anos se submeteram a transplantes no ano passado. A operação é difícil. Ela é mais longa e mais arriscada do que o transplante-padrão, e os cirurgiões alertam que os pacientes devem ser cuidadosamente selecionados, pois nem todos podem resistir à cirurgia.
A operação foi realizada pela primeira vez na Europa no início da década de 1990 e mais tarde nos Estados Unidos. No entanto, os resultados foram confusos – o fígado nem sempre se regenerou – e a cirurgia nunca foi realmente aceita (em periódicos médicos, o procedimento é chamado de transplante auxiliar parcial ortotópico de fígado). Kato afirma que os resultados podem ter sido insatisfatórios porque as primeiras tentativas foram feitas com adultos. “Acho que o segredo são as crianças”, diz.
Os melhores candidatos são crianças com insuficiência hepática aguda, uma condição mortal na qual o fígado para de funcionar de repente, muitas vezes por motivos desconhecidos. Embora o fígado possa ser capaz de se recuperar, ele não o faz de forma rápida o suficiente para evitar danos cerebrais e morte pelas toxinas acumuladas. A única forma de salvar a vida de alguém com essa condição é realizando um transplante de fígado – ou metade dele. Esses transplantes parciais não funcionam nos casos de doenças hepáticas crônicas que causam cicatrizes, pois isso impede que o fígado se regenere.
Kato realizou a cirurgia em sete crianças, entre 8 meses (Jonathan) e 8 anos de idade, no Jackson Memorial. Até o momento, o próprio fígado do paciente se recuperou em seis das sete crianças, e elas não precisam mais tomar drogas antirrejeição. Kato espera que a necessidade dos remédios logo seja superada para a sétima criança. Em quatro delas, o órgão transplantado “se derreteu” completamente sozinho, mas em dois outros casos, incluindo o de Jonathan, foi necessário remover um remanescente ou limpar uma infecção.
O primeiro caso desse tipo de transplante realizado por Kato foi em 1997. A criança passou três meses na UTI. “Não achamos que foi um sucesso”, ele conta. Porém, depois de dois anos o fígado se recuperou completamente. “Isso nos fez acreditar que valia a pena”, afirma Kato.
Outros cirurgiões também já tentaram o processo. Alan Langnas, diretor de transplante de fígado do Nebraska Medical Center, afirmou ter realizado a cirurgia em cerca de dez pacientes, a maioria crianças, nos últimos 15 anos. Em alguns casos, o fígado do paciente não se regenerou. Pelo menos um caso exigiu um segundo transplante.
“Acho que o sucesso sempre foi um pouco confuso”, diz Langnas. “Depende da seleção do paciente e do quão bem seu fígado natural se recupera. Mas é uma opção importante para alguns.”
Simon Horslen, diretor medico de transplante de fígado e intestino do Hospital Infantil de Seattle, que estava no centro de Nebraska quando as operações foram realizadas ali, diz: “Nas mãos certas, é uma técnica maravilhosa.”
Cirurgiões do Kings College, em Londres, também realizaram a cirurgia nos últimos 20 anos, em 20 crianças, de 1 a 16 anos de idade. Dezessete sobreviveram. Uma precisou de um segundo transplante, mas em 14 crianças o fígado se regenerou. Até o momento, 11 puderam interromper a medicação antirrejeição.
Num artigo recente publicado em periódico médico, a equipe do Kings College afirmou que a operação deve ser considerada para crianças que precisam de transplante por causa de uma insuficiência hepática aguda.
Entretanto, Michael Millis, chefe de transplantes do Centro Médico da Universidade de Chicago, diz: “Esse procedimento não tem tido muito sucesso na maioria dos casos que tentamos”. Ele acrescenta: “Até mesmo na série de Kato, o tempo de operação é quase duas vezes maior, então os pacientes devem passar o dobro de tempo na sala de cirurgia, e acho que esse é o verdadeiro tendão de Aquiles (um transplante de fígado geralmente leva cerca de seis horas).”
Operações longas exigem que os pacientes recebam uma quantidade maior de líquido intravenoso, algo que as crianças com insuficiência hepática geralmente não toleram, diz Millis, explicando que o líquido causa um inchaço no cérebro que pode matá-las. “Quando consigo um fígado adequado, elas já estão doentes demais. Elas têm que entrar e sair da sala de cirurgia e voltar para a UTI o mais rápido possível, com o mínimo de líquido.”
Langnas tem preocupações similares: “Às vezes, essas crianças estão tão doentes que, literalmente, têm horas ou um dia de vida. Nessas circunstâncias, não queremos correr riscos.”
Jonathan, cuja família vive em Miami, tinha um caso clássico de insuficiência hepática aguda. Aos 8 meses, ele era perfeitamente feliz e saudável, mas de repente passou a ficar ranzinza e sonolento. Ele chorava demais, comia pouco e começou a vomitar. O menino ficou amarelo, seu estômago e suas pernas incharam. O diagnóstico era insuficiência hepática aguda, causa desconhecida. A única esperança era um transplante.
No Jackson Memorial, Kato sugeriu um transplante parcial. A mãe de Jonathan, Yailin Nunez, afirmou que ela e o marido imediatamente concordaram, porque a cirurgia oferecia pelo menos uma chance de que Jonathan pudesse levar uma vida normal, sem imunossupressores.
Crianças com insuficiência hepática aguda estão no topo da lista, e Jonathan recebeu um transplante um dia depois de entrar na fila de espera. Ele teve uma recuperação bastante difícil, mais do que a maioria dos pacientes de Kato. Episódios severos de rejeição exigiram altas doses de esteróides. Outras complicações o fizeram entrar e sair do hospital durante três meses.
O menino ficou estável, mas seu próprio fígado não parecia estar se regenerando; certo momento, ele até encolheu. Yailin Nunez jamais desistiu de ter esperanças, mas depois de dois anos Kato começou a duvidar que o fígado de Jonathan algum dia se recuperaria. O médico cogitou removê-lo para evitar problemas. Aí o fígado começou a crescer.
Nas mãos certas, é uma técnica maravilhosa”
No último mês de setembro, o fígado de Jonathan já era grande o suficiente para funcionar sozinho. Ele já não precisava mais de transplante. Os médicos começaram a diminuir as doses das drogas antirrejeição e o sistema imunológico de Jonathan se encarregou do resto. Em setembro, o órgão transplantado estava visível em exames de tomografia computadorizada. Em novembro, tinha desaparecido.
Entretanto, o órgão transplantado tinha se atrofiado tão rapidamente que um local onde tinha se conectado ao intestino delgado não teve a chance de se fechar adequadamente. Um abscesso se formou, causando febres e deixando Jonathan bastante doente. Ele precisou tomar antibiótico e passar por um procedimento para drenar a infecção. Dois meses depois, no dia 28 de janeiro, no Hospital Presbiteriano, Kato operou o menino para remover completamente o abscesso. Poucos dias depois, Jonathan e sua família voltaram para casa, em Miami.
“No final de tudo, estou tão feliz”, diz Yailin Nunez. “Sinto que tenho tanta sorte porque o fígado do meu filho se regenerou. As complicações foram uma luta, e não saber o que causou a insuficiência hepática do meu filho me assombra até hoje. Mas ele pode levar uma vida normal, sem imunossupressores. Isso é o que importa. Há esperança mesmo quando se recebe notícias devastadoras.”
“Quando funciona, é ótimo”, avalia Langnas.
(Fonte: ‘New York Times’ / G1)