Depois de vasculhar 1.700 quilômetros do Madeira e de seus afluentes durante dois anos, um grupo de pesquisadores bateu o martelo. Trata-se do rio com o maior número de espécies de peixes do mundo: cerca de 800.
Dessas, umas 40 equivalem a espécies ainda desconhecidas da ciência, disse à Folha a pesquisadora Carolina Dória, coordenadora do Laboratório de Ictiologia e Pesca da Unir (Universidade Federal de Rondônia).
Dória e seus colegas estão realizando o levantamento há dois anos, como parte das contrapartidas ambientais para a construção da usina hidrelétrica de Santo Antônio, nos arredores de Porto Velho (o rio Madeira corta a capital de Rondônia).
O gigantismo da obra tocada pela empresa Santo Antônio Energia permitiu um financiamento invejável para o estudo: R$ 6 milhões, usados para bancar uma equipe de quase 70 pessoas.
Lambaris e bagres – Com o novo inventário, a quantidade de espécies registradas para o Madeira e seus tributários dobrou. Quase todas as espécies novas ainda precisam passar pelo processo formal de descrição e “batismo” com nomes científicos em latim.
Predominam as diversas formas de lambaris, piabas e cascudos. Mas há também grandes e vistosas arraias, peixes ornamentais, como os acarás, e esquisitos peixes elétricos das profundezas.
Para obter amostras dos vários tipos de ambiente fluvial, a equipe empregou puçás (peneiras para capturar peixes pequenos), redes de arrasto e as chamadas “trawl nets”, redes que varrem a parte mais funda do rio.
Além de realizar o mapeamento de espécies, os pesquisadores também identificaram os locais de desova dos principais peixes de interesse comercial da região, como a dourada e o filhote, o que deve ajudar em ações de conservação e planejamento de pesca no Madeira.
Embora o consumo de peixe seja elevado entre as populações que vivem perto do rio, não há pesca industrial.
Para Paulo Buckup, ictiólogo do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que não esteve envolvido com a pesquisa, o número de 800 espécies “parece razoável”, mas os dados deveriam ser comparados a outros lugares, como o rio Solimões, na fronteira do Brasil com o Peru.
Outros fortes candidatos a campeões mundiais de diversidade de peixes são o Xingu, o Tapajós e o Tocantins, diz Buckup – todos contam em torno de 500 espécies, pelo menos. A posição desses rios no pódio também depende da intensidade e da amplitude da amostragem neles.
Como esforços tão intensos quanto o da equipe da Unir no Madeira ainda não foram feitos para outros rios amazônicos, a posição de campeão pode mudar.
Corredeiras – Segundo os autores do levantamento, uma das surpresas foi a baixa quantidade de espécies endêmicas (ou seja, exclusivas de um determinado lugar) nos chamados pedrais do Madeira.
São áreas de corredeiras, onde é comum haver muitos tipos únicos de peixes, adaptados à forte correnteza e ao fundo de pedras (para isso, dispõem de artifícios como órgãos adesivos, corpo achatado e nadadeiras especiais).
Como essas áreas são destruídas pela barragem das hidrelétricas, a perda das espécies endêmicas é uma das principais críticas à construção das usinas no Madeira e do possível empreendimento de Belo Monte, no Xingu.
Willian Ohara, colega de Dória, argumenta que o baixo endemismo no Madeira teria, em parte, a ver com o fato de que as cachoeiras ali não são grandes o suficiente para isolar populações de peixes, impedindo que elas se separassem e acabassem formando novas espécies.
Além disso, diz Ohara, a diversidade de peixes dos pedrais é favorecida em rios de águas claras, onde a luz penetra o suficiente para o crescimento de plantas aquáticas que servem de alimento. Esse não seria o caso do Madeira.
Buckup se diz cético quanto a isso. Para ele, é muito difícil coletar bem as espécies dos pedrais, em especial as que ficam coladas às rochas, o que causaria a falsa impressão de baixa diversidade. (Fonte: Reinaldo José Lopes/ Folha.com)