Com a chegada do verão, as praias da ilha Corolla, na Carolina do Sul, Estados Unidos, ficarão repletas de carros e banhistas, mas na baixa estação o terreno é deixado para os cavalos selvagens. Pequenos, com uma coloração que varia entre o castanho e o preto, eles passeiam por entre as casas de veraneio em manadas de cinco ou seis.
Milhares desses cavalos já perambularam por todos os Outer Banks da Carolina do Norte, e eles são os prováveis descendentes das montarias que pertenceram aos exploradores espanhóis, cinco séculos atrás. Mas, agora, seu número diminuiu para umas poucas centenas de animais, das quais os mais conhecidos vivem na reserva federal de Shackleford Banks.
Contudo, a maior manada, que recentemente chegou a quase 140 garanhões, ocupa mais de 3.000 hectares de um terreno estreito que se estende do fim da Rodovia 12, em Corolla, até a divisa com a Virgínia, 11 quilômetros ao norte. Sem predadores naturais e presos pelas cercas que se lançam sobre o Atlântico agitado, o endocruzamento da manada é tão intenso que seus defensores temem que um colapso genético ocorra em questão de algumas gerações.
Seus apoiadores estão realizando uma campanha para salvar a manada de Corolla, e eles têm aliados poderosos no Congresso. Em fevereiro, a Câmara aprovou uma lei que mantêm a manada em cerca de 120 indivíduos e que permite a importação de novas éguas de Shackleford para introduzir genes frescos.
Conservacionistas da vida selvagem afirmam que a questão não é tão simples. As praias, pântanos, pradarias e florestas próximas de Corolla são uma parada para bandos de aves migratórias ameaçadas de extinção, e são o lugar onde as tartarugas marinhas põem seus ovos. Grande parte da área ocupada pelos cavalos pertence ao Refúgio Nacional de Vida Selvagem Currituck, e os defensores do habitat nativo temem que o atual tamanho das manadas sobrecarregue o ecossistema.
O futuro dos cavalos levanta questões mais amplas, como a de se um animal pode ser preservado em detrimento de outro – e quem deve decidir isso.
“Estamos falando sobre valores”, afirmou Michael Hutchins, diretor executivo da Wildlife Society, que representa biólogos e gestores da vida selvagem que se opõem à medida aprovada pela Câmara. “Eu gosto de cavalos; acredito que eles sejam animais fascinantes. Mas eu também valorizo profundamente o pouco que restou de nossas espécies nativas e de seus habitats.”
Ambos os lados invocam a ciência para defender sua causa. Mas os dados são esparsos e um estudo amplo sobre o impacto dos cavalos não deve ficar pronto antes do ano que vem.
Na arena dos sentimentos públicos e políticos, os cavalos ganham com facilidade. A ligação entre cavalos e seres humanos existe há séculos; esse é o animal que puxou os arados, que carregou os exércitos e os colonos em nome da civilização.
“Deus colocou essa coisa tão linda aqui – como podemos não querer protegê-la?”, afirmou Betty Lane, de 70 anos, que vive na região há mais de 40 anos, enquanto dirigia seu furgão como parte da patrulha civil que protege os cavalos. (Ela parou depois de confundir o repórter com um turista que tentava se aproximar demais dos cavalos, contrariando a lei da cidade.) Ela usava um colar com o nome Spec, em homenagem a um garanhão que foi atropelado por um motorista na praia.
A dedicação aos cavalos selvagens é algo tão arraigado nesta e em outras regiões, que muitos de seus apoiadores chegam a se irritar quando dizem que os animais “não são nativos”, citando fósseis que comprovam que cavalos viveram na América do Norte há mais de 11.000 anos, antes de serem extintos juntamente com outras criaturas do Pleistoceno, como os mastodontes.
Os cavalos selvagens de Corolla não surgiram aqui. Eles são animais domesticados que perderam sua domesticidade. Ainda que alguns céticos questionem se os cavalos são realmente espanhóis, uma pesquisa realizada pelo Grupo de Conservação das Raças Pecuárias dos Estados Unidos, além de outros grupos, observou as costas curtas dos cavalos, suas caudas baixas e outras características que os diferenciam dos demais animais norte-americanos. Uma análise de DNA, publicada em fevereiro na revista Animal Genetics, também aponta para uma origem comum entre esses cavalos, sugerindo que eles possam ser uma relíquia viva de uma variedade ibérica que não existe em nenhuma outra parte.
O estudo também confirma os medos de que o endocruzamento entre os cavalos esteja se tornando perigosamente grande. “Há manadas selvagens com pouca diversidade, mas não muitas”, afirmou Gus Cothran, especialista em genética equina na Universidade Texas A&M e principal autor do relatório. Ele afirma que uma manada de 60 animais seria capaz de sobreviver, desde que novas éguas fossem introduzidas no grupo a cada geração (cerca de oito anos). A lei federal estipula manadas de 110 a 130 animais, segundo Cothran, o número mínimo poderia diminuir a velocidade da erosão genética, caso os animais fossem mantidos isolados.
“Não estamos pedindo centenas de cavalos”, afirmou Karen McCalpin, diretora da Fundação Corolla de Cavalos Selvagens, que protege e cuida dos cavalos, realizando projetos de conscientização pública a seu respeito. O cerne do desentendimento com os conservacionistas da vida selvagem está no número de cavalos que o habitat é capaz de suportar. “Caso eles fossem prejudiciais ao meio ambiente”, afirmou, “isso já não seria evidente a essa altura?”.
Se não fosse pelas pessoas, essa questão seria mais fácil de responder. Outras manadas de cavalos dos Outer Banks vivem em áreas praticamente livres da presença humana. Mas os cavalos de Corolla vivem quase exclusivamente das terras e das paisagens humanas. Promotores de turismo gostam de mostrar cavalos brincando na areia e na arrebentação, com suas crinas balançando majestosamente ao vento. Contudo, é igualmente provável que esses animais sejam avistados pastando próximos às calçadas.
Além da genética, os turistas representam um perigo para as manadas: seja por colisões com motoristas distraídos, ou porque visitantes em busca de boas fotos burlam as regras do local, que criminalizam o ato de alimentar ou de se aproximar a menos de 15 metros de um cavalo, No último verão, um potro de duas semanas morreu por consequência de uma obstrução intestinal após comer cascas de melancia dadas a ele por visitantes.
Conforme Corolla se torna mais desenvolvida, os cavalos podem se afastar cada vez mais para terrenos dos santuários da vida selvagem. Preocupado com uma espécie de pássaro chamada açanã-preta, Mike Hoff, o diretor do refúgio, cercou uma faixa de 55 hectares de terreno pantanoso, no verão passado, depois de notar que o capim estava esgotado há diversas estações. “Isso não significa que queríamos excluir os cavalos porque não gostamos deles”, afirmou.
Um dos poucos estudos que examinam o impacto direto dos cavalos foi publicado em 2004 na revista The Journal of Range Management. Pesquisadores da Universidade da Carolina do Leste escreveram que, em geral, as plantas de Corolla se recuperaram no início do verão seguinte, após servirem de pasto por uma estação. Mas os dados foram colhidos em 1997, quando a população de cavalos estava estimada em 43 animais espalhados por 4.600 hectares. Atualmente, a área é quase 1.600 hectares menor, e a manada mais que triplicou de tamanho.
Os atuais estudos a respeito dos animais selvagens, financiados pelo Serviço de Peixes e Vida Selvagem e pela Universidade Estadual da Carolina do Norte, têm o objetivo de medir os efeitos causados por suínos e veados, além dos cavalos. Destacar o impacto dos cavalos “é uma questão difícil”, segundo o líder da pesquisa, Chris DePerno, mas ele acrescentou que “acreditamos que compusemos um estudo excepcional”.
Nesse caso, a política e a ciência podem estar funcionando em ritmos diferentes. O senado pode aprovar a lei antes que o estudo de DePerno esteja completo. McCalpin lamentou o fato de que os cavalos já estejam apresentando sinais de falência genética, com potros que nascem esporadicamente com um tamanho incrivelmente pequeno, ou com joelhos traseiros que travam, ao invés de dobrar.
“O tempo está se esgotando”, afirmou, acrescentando: “Eles estiveram aqui nos últimos cinco séculos. Eu fico triste em pensar que não estarão aqui nos próximos”. (Fonte: Portal iG)