Quinze anos após o desaparecimento dos urubus dos céus de Mumbai, na Índia, a comunidade pársi pretende construir dois aviários em um dos locais mais sagrados da cidade para que os grandes carniceiros possam voltar a devorar corpos humanos.
A construção deverá começar em abril, afirmou Dinshaw Rus Mehta, presidente do Bombay Parsi Punchayet. Se tudo ocorrer conforme o planejado, os urubus voltarão a consumir os cadáveres da comunidade pársi a partir de janeiro de 2014.
“Sem os urubus, um número cada vez maior de pársis está escolhendo a cremação”, afirmou Mehta. “Preciso trazer os urubus de volta para que o sistema volte a funcionar, especialmente durante as monções.”
O plano é resultado de seis anos de negociações entre os líderes pársis e o governo indiano, com o objetivo de reavivar uma tradição secular que busca proteger os elementos da natureza – ar, terra, fogo e água – da poluição do enterro e da cremação. Dessa forma, ambos os lados esperam contribuir para proteger duas espécies de urubus próximas da extinção. O governo irá fornecer as primeiras aves.
Estima-se que o custo da construção dos aviários e da manutenção dos urubus seja de US$ 5 milhões ao longo de 15 anos, um valor considerado baixo, já que os animais terão grandes quantidades de alimento à disposição. “Boa parte dos aviários de urubus gastam muito dinheiro com a compra de carne, mas para nós isso sai de graça, já que alimentaremos as aves com cadáveres humanos, com nossos próprios corpos”, afirmou Mehta.
Assim como os urubus, os pársis estão desaparecendo. Sua religião, o zoroastrismo, já dominou o Irã, mas os praticantes foram expulsos do país pelos muçulmanos. No século X, um grande grupo de zoroastristas fugiu da perseguição no Irã e se instalou na Índia. Atualmente, há menos de 70.000 pársis, a maioria vivendo em Mumbai, antigamente conhecida como Bombaim, onde possuem imóveis de alto valor comercial, adquiridos em grupo séculos atrás.
Entre as áreas mais nobres incluem-se 22 hectares de bosque na colina de Malabar, um dos bairros mais exclusivos de Mumbai. Nessa área encontram-se as três Torres do Silêncio, onde os pársis deixaram seus cadáveres durante séculos.
As torres de pedra são uma espécie de auditório ao ar livre com três anéis concêntricos feitos de lajes de mármore – no anel externo são colocados os corpos de homens, no seguinte os das mulheres mortas e mais ao centro os das crianças. Durante séculos, os corpos deixados sobre as lajes eram consumidos em questão de horas pelos urubus da região e os ossos eram deixados sobre o solo para se transformarem em adubo.
A modernidade afetou essa antiga tradição de muitas maneiras. Isso inclui a construção de arranha-céus nos arredores das torres, de onde pessoas de outras religiões viam de perto as cenas terríveis. Mas a verdadeira ameaça ao bem estar dos urubus foi o desastre ecológico que os dizimou nos últimos anos.
A população indiana de urubus já chegou a 400 milhões de aves, um grupo numeroso que vivia da abundante carne da maior população bovina do mundo, cujo consumo era proibido aos seres humanos. Quando as vacas morriam, eram rapidamente consumidas por grandes grupos de urubus que deixavam o couro e os ossos para os mercadores. Até os anos 1980, os menores vilarejos possuíam enormes populações de urubus.
Uso de medicamentos atingiu aves – Mas as coisas começaram a mudar com a introdução do diclofenaco, um analgésico comum, utilizado em hospitais para aliviar a dor dos pacientes. Vendido com o nome de Voltaren, entre outros, o diclofenaco é similar ao ingrediente ativo do Advil e do Aleve e foi liberado para uso veterinário na Índia em 1993. Logo depois, bandos inteiros de urubus começaram a morrer em consequência da irreversível falência renal causada pelo medicamento.
O uso veterinário do diclofenaco foi banido desde então, o que parece estar resolvendo o problema. Um estudo recente revelou que, pela primeira vez desde a introdução do medicamento, a população de urubus da Índia deixou de diminuir no ano passado.
Ainda assim, o número de animais das três espécies diminuiu para poucos milhares, uma fração das antigas populações. Com tão poucos urubus, a comunidade pársi foi obrigada a colocar espelhos nas Torres do Silêncio, criando fornos solares que aceleram a decomposição dos cadáveres.
Mas os espelhos são ineficazes durante as monções. Por isso, um número cada vez maior de pársis está optando pela cremação, uma prática considerada abominável por muitos sacerdotes pársis, uma vez que o fogo é sagrado e os corpos são ímpios.
Desesperados para manter um de seus mais importantes rituais, líderes pársis criaram planos detalhados para construir aviários próximos às Torres do Silêncio, abrigando 76 urubus cada. Os líderes pársis estão apenas esperando a aprovação dos membros da comunidade, de médicos e sacerdotes antes de iniciarem a construção. Acredita-se que as aprovações serão emitidas nas próximas semanas.
Mas Homi B. Dhalla, presidente da World Zarathushti Cultural Foundation, prometeu combater os planos. Ele foi responsável pelo desenvolvimento dos coletores solares e afirmou que sua estratégia está funcionando muito bem. Além disso, o líder pársi está preocupado com a possibilidade de que as aves dadas pelo governo sirvam de pretexto para que burocratas desapropriem as terras. “Por que colocar nossas propriedades em risco?”, questionou Dhalla. “Quem irá lutar contra o governo?”
Outra preocupação é convencer os pársis a deixarem de utilizar diclofenaco. Quase todos os 800 corpos trazidos todos os anos para as torres vêm de dois hospitais pársis, onde médicos e familiares serão obrigados a se certificarem de que os mortos não tenham recebido diclofenaco nos três dias anteriores ao falecimento.
Não existem testes simples para detectar a presença do medicamento e o governo prometeu interromper o projeto caso os urubus do aviário morram em consequência do envenenamento por diclofenaco após consumirem cadáveres pársis. Líderes médicos da comunidade pársi fazem comentários cautelosos a respeito do programa. “Enquanto hospital”, afirmou o Dr. S.K. Dhingra, superintendente do B.D. Petit Parsee General Hospital, “não podemos dizer aos pacientes que não podem receber esse ou aquele medicamento”.
Khurshed Dastoor, um dos cinco altos sacerdotes pársis, afirmou que não sabia ao certo se os membros da comunidade aceitariam deixar de usar o diclofenaco. “Há dez anos venho tentando convencer a comunidade a desligar os celulares antes de entrar nos sagrados templos do fogo, mas até agora a campanha não deu resultado”, afirmou. “Dá para acreditar que a comunidade vai deixar de usar diclofenaco em poucos meses?”
Entretanto, outros líderes pársis afirmam que darão continuidade à ideia, pois querem restaurar a tradição. “Resta apenas esperar pelo melhor”, afirmou Mehta. (Fonte: G1)