A hepatite B é considerada uma doença crônica possível de ser controlada com medicamentos. Ao longo do tempo, porém, a terapia tende a selecionar cepas de vírus resistentes às drogas usadas. O problema torna-se ainda mais grave quando o tratamento não é feito de forma regular e de acordo com os protocolos mais adequados.
Com o intuito de investigar a frequência de transmissão dessas cepas resistentes na população brasileira, pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMT-USP) e da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (FMUSP), analisaram amostras de sangue de 702 portadores de hepatite B, de sete estados brasileiros, que nunca haviam sido tratados.
O trabalho foi realizado com apoio da FAPESP durante o doutorado de Michele Soares Gomes Gouvêa. Felizmente, os resultados revelaram a presença de cepas resistentes apenas nas amostras de 11 pacientes – o que corresponde a 1,6% da população estudada.
“Embora a prevalência da resistência primária [quando o paciente é infectado por uma forma já resistente do vírus] tenha sido pequena, o problema existe. Esse fator deve ser considerado caso o paciente não responda imediatamente ao tratamento. E para saber se isso está ocorrendo é preciso realizar análises frequentes da carga viral. No caso da carga viral não reduzir, apesar da aderência ao tratamento, o ideal é que seja realizado o sequenciamento do genoma viral para a pesquisa de mutações de resistência e adequado manejo da terapia”, disse Gouvêa.
Segundo ela, cerca de 80% dos pacientes tratados com a droga lamivudina adquirem resistência em um período aproximado de cinco anos de terapia. Outros medicamentos levam um pouco mais de tempo, mas é um tratamento para a vida toda e o problema, eventualmente, acaba aparecendo.
“Determinadas mutações aumentam a capacidade de replicação do vírus e pode acontecer de o paciente ficar com uma supercarga viral resistente. Queríamos saber se essas cepas estavam sendo disseminadas”, explicou Gouvêa.
O problema da resistência primária é grande em determinadas regiões da África. De acordo com a literatura científica, o problema afeta 20% dos portadores de hepatite B na África do Sul. O índice salta para 50% quando se consideram pacientes coinfectados com o vírus da Aids.
“Os resultados de nosso estudo mostram que a situação brasileira é razoavelmente boa. Isso nos dá certa tranquilidade em relação à circulação de cepas resistentes no país, mas não podemos deixar de fazer um seguimento cuidadoso dos pacientes”, disse a médica do IMT-USP/FMUSP Maria Cássia Jacintho Mendes Corrêa, coordenadora do projeto “Prevalência de resistência primária aos antivirais utilizados no tratamento da hepatite B entre pacientes com infecção crônica pelo vírus da hepatite B não submetidos a tratamento” e orientadora de Gouvêa ao lado de João Renato Rebello Pinho, do Laboratório de Gastroenterologia e Hepatologia Tropical do Departamento de Gastroenterologia da FMUSP/IMT-USP.
“As drogas contra hepatite B precisam ser usadas com muito respeito e critério para não aumentar o problema de resistência primária. A África do Sul é um exemplo do que pode acontecer caso não tomemos cuidado”, afirmou Pinho.
De acordo com os pesquisadores, os medicamentos contra a hepatite B são oferecidos gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS), mas há lugares no Brasil em que são adotados esquemas inadequados de tratamento, seja por dificuldade de acesso a todas as drogas necessárias ou por falta de uma educação médica continuada.
“Um exemplo é a monoterapia com lamivudina, que foi no passado muito utilizada e hoje está totalmente proscrita em todo o mundo por favorecer o aparecimento de cepas resistentes”, comentou Corrêa.
Segundo a médica, outro fator que contribui para o agravamento da resistência viral são os casos de abandono do tratamento. “A hepatite B é, na maioria dos casos, uma doença assintomática. O tratamento é para a vida toda, mas o paciente se sente bem. Alguns acabam desistindo de tomar as drogas ou as tomam de forma irregular. Em algumas regiões o acesso aos medicamentos é mais difícil”, disse.
Se não tratada adequadamente, a inflamação no fígado causada pelo vírus da hepatite B (HBV) pode evoluir para hepatite crônica, cirrose hepática e câncer de fígado. É possível prevenir a infecção – que ocorre por via sexual, contato com sangue e secreções contaminados, parto ou amamentação – por meio de uma vacina também disponível na rede pública de saúde.
Instituições parceiras – O trabalho realizado durante o doutorado de Gouvêa contou com a parceria de pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (PA), da Santa Casa de Misericórdia do Pará, do Centro de Pesquisa Clínica do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), do Serviço de Gastro-Hepatologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Unidade de Referência de Tratamento de Doenças Infecciosas e Preveníveis (URDIP) da Faculdade de Medicina do ABC (UFABC), do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP, do Ambulatório de Hepatites da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, da 15ª Regional de Saúde de Maringá (PR), do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (RS), e Serviço Municipal de Infectologia do Centro Especializado de Saúde de Caxias do Sul (RS).
As amostras coletadas em cada um dos centros foram enviadas para análise no Laboratório de Gastroenterologia e Hepatologia Tropical do IMT-USP. “Foram coletadas 779 amostras e encontramos carga viral detectável e/ou conseguimos amplificar a região de interesse do genoma viral em 702 amostras. Fizemos então o sequenciamento do genoma do HBV e analisamos a região que codifica a proteína da polimerase [enzima usada no processo de replicação do vírus], pois é onde ocorrem as mutações de resistência”, contou Gouvêa.
De acordo com Gouvêa, mutações de resistência já conhecidas foram encontradas em pacientes do Pará, Maranhão, São Paulo e Minas. Em cinco pacientes do Maranhão também foi detectada evidência de infecção pelo vírus da hepatite D, que se acreditava existir apenas na região da Amazônia. Desses cinco pacientes, três apresentavam replicação ativa do vírus detectada pela presença genoma viral no soro. Esses resultados foram divulgados em artigo publicado na revista Virus Research.
“O vírus da hepatite D infecta apenas portadores de hepatite B. Quando essa associação acontece o resultado é desastroso. A evolução da doença é muito ruim e o tratamento, pouco eficaz. O paciente acaba desenvolvendo câncer ou doença hepática avançada rapidamente”, explicou Corrêa, a coordenadora do projeto.
Segundo Gouvêa, um dos cinco casos de hepatite D detectados no Maranhão foi importado da região amazônica, o que foi concluído com base em dados epidemiológicos e análises filogenéticas. “Os outro dois com carga viral detectável apresentavam um vírus com genótipo mais semelhante ao encontrado na África. Acreditamos que se trate de uma introdução antiga, ocorrida na época do tráfico de escravos. Nossa teoria é que existam mais casos no estado e isso deu origem a um outro estudo que está em andamento para avaliar a situação epidemiológica no Maranhão”, disse.
Diversidade genética – O sequenciamento genético do HBV permitiu aos pesquisadores também investigar as interações entre diferentes linhagens (ou genótipos) virais que circulam no país.
“São conhecidos dez diferentes genótipos do HBV: A, B, C, D, E, F, G, H, I e J, e alguns desses genótipos são divididos em subgenótipos. Com esse mapeamento mostramos que também há vários subgenótipos no Brasil e que a diversidade é muito maior do que a imaginada. Esse é um resultado relevante num momento em que se discute a importância de se considerar o genótipo viral no seguimento do paciente, pois há possibilidade de isso influenciar na evolução da doença e na resposta a determinadas drogas”, afirmou Gouvêa.
Parte dos resultados sobre a diversidade genética do HBV foram divulgados em artigo publicado na revista Infection, Genetics and Evolution.
A hepatite B afeta mais de 400 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, de maneira geral, afeta menos de 1% da população, mas há regiões em que a prevalência pode chegar a 20%, como na Amazônia, no Espírito Santo e no Oeste do Paraná e Santa Catarina. (Fonte: Agência FAPESP)