Catolé do Rocha, município do sertão da Paraíba com quase 30 mil moradores, está ficando ainda mais quente e seco, à medida que a vegetação natural se esvai. Em oito anos, de 2005 a 2013, de acordo com um estudo de pesquisadores de universidades da Paraíba e do Rio Grande do Norte, a área de caatinga rala encolheu 48% e a de caatinga densa, 13,5%, enquanto a agrícola deu um salto de 823%, de 2,45 mil para 22,64 mil hectares. Os autores desse levantamento concluíram que “a vegetação local foi suprimida indiscriminadamente” e houve “um crescimento exorbitante” das áreas ocupadas principalmente com a criação extensiva de bois.
Somando muitas situações como essa, de 1990 a 2010 a Caatinga perdeu 9 milhões de hectares – ou 90 mil quilômetros quadrados (km2), quase a área de Portugal – de vegetação nativa, em consequência do desmatamento e da expansão da agropecuária e do uso de madeiras de árvores nativas como fonte de energia (lenha) em residências e pequenas indústrias, de acordo com um levantamento mais amplo publicado em março na revista Applied Geography. Esse trabalho indica que, nesses 20 anos, a taxa de derrubada da vegetação natural aumentou na Caatinga (de 0,19% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), embora os levantamentos do Ministério do Meio Ambiente indiquem uma queda do desmatamento nesse ecossistema. Para os autores do artigo, a divergência decorre do conceito de paisagem natural – eles preferiram não incluir as áreas cobertas puramente por gramíneas, que o governo federal considerou – e da escala temporal (duas décadas em um caso e quase uma década em outro).
A eliminação da vegetação nativa – ainda mais prejudicial quando feita por meio do uso do fogo, que destrói a matéria orgânica do solo – deixa a terra descoberta, com maior capacidade para absorver a radiação solar, desse modo elevando a temperatura local, acelerando a evaporação da água e diminuindo a resistência à erosão causada pelo vento e pelas chuvas, que arrastam a matéria orgânica e reduzem a fertilidade de solos pouco férteis e a capacidade de reter água. Além disso, alertam os especialistas, a erosão causada pelas chuvas – raras, mas geralmente torrenciais – promove o assoreamento de rios, aumentando o risco de inundações, e expõe as rochas antes cobertas pela terra, dificultando a volta das plantas e mesmo o uso da terra para fins agrícolas. Em Catolé do Rocha, a área exposta de rochas, os chamados afloramentos, aumentou 27%, passando de 578 para 734 hectares, em oito anos.
Na Caatinga, outra ameaça, que se agrava, é a desertificação. “O que mais contribui para desencadear o processo de desertificação é o mau uso da terra, com o desmatamento e muitas vezes o uso do fogo, agravado pelas condições climáticas”, diz Iêdo Bezerra Sá, pesquisador da Embrapa Semiárido. Com sua equipe, ele examinou a região de Cabrobó, no sertão de Pernambuco, um dos núcleos de desertificação do nordeste brasileiro, a 400 km a sudoeste de Catolé do Rocha. Ali, os solos são arenosos, permeáveis e incapazes de reter as águas das chuvas. Seus levantamentos indicaram que a área com grau severo de desertificação, associado à ocupação agropecuária, era já de 100 mil hectares (1 mil km2) e com grau acentuado, em terras ocupadas pela caatinga arbórea, de 519 mil hectares (5 mil km2).
Sá está concluindo um levantamento que indica que 9 das 12 regiões de Pernambuco – ou 122 dos 185 municípios do estado –, principalmente no sertão, estão sujeitas a um risco elevado de desertificação. Um de seus estudos recentes indicou que quase toda a região de desenvolvimento do sertão do São Francisco, onde se cultivam frutas irrigadas, encontra-se sob risco de se transformar em um areal estéril (75% da área encontra-se sob risco moderado e 23% sob risco severo). Ali, ele explicou, o consumo de água para a irrigação das plantações excede a capacidade dos rios, cuja vazão diminui, prejudicando toda a área que percorrem. “A Caatinga é muito frágil”, diz ele. “Em alguns casos, o melhor seria não mexer.”
Especialistas verificaram que 94% do Nordeste brasileiro, além do norte de Minas Gerais e Espírito Santo, apresenta uma suscetibilidade que varia de moderada a alta à desertificação e indicaram as áreas com maior potencial de se tornarem areais estéreis até o ano de 2040. Nesse levantamento, as áreas mais suscetíveis expandiram-se quase 5%, o equivalente a 83 km2, de 2000 a 2010. “Esse estudo foi o primeiro no Brasil a produzir um diagnóstico a partir da análise integrada dos principais indicadores de degradação e desertificação”, diz Rita Vieira, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e principal autora desse estudo, publicado na Solid Earth. Segundo ela, os resultados foram apresentados à Comissão Nacional de Combate à Desertificação, que orienta a implementação de compromissos internacionais assumidos pelo país.
“Reduzir o risco de desertificação é um processo lento. O primeiro passo é mudar a forma de lidar com a terra e parar de desmatar”, diz Carlos Magno, um dos coordenadores do Centro Sabiá, uma organização não governamental sediada em Recife. Com financiamento do governo federal, o centro está trabalhando com 200 famílias de pequenos proprietários rurais do agreste e do sertão de Pernambuco para recuperar 100 hectares de áreas sujeitas à desertificação com os chamados sistemas agroflorestais, que consistem no plantio de plantas diferentes como milho, feijão, abóbora, batatas, forrageiras e frutas como umbu e cajá em meio à Caatinga.
“Estamos reconstruindo a ideia de que a Caatinga é uma floresta e que precisa ser preservada”, diz Magno.
No dia 16 de abril, ele saiu de seu escritório em Caruaru e viajou 30 km até o município de Bezerros para visitar Maria Idalvonete Julião da Silva, dona de 3 hectares, que participa desse projeto. Motivada pela perspectiva de aumentar a produção de alimentos mesmo em tempos mais secos, Idalvonete separou 1 hectare e plantou palma forrageira e leucena, que servem de alimento para o gado, feijão guandu, mamão e abacaxi. “Além de servir aos animais e às pessoas”, ele argumenta, “os cultivos conservam o solo; a água, quando chega, fica no solo, cheio de raízes, em vez de ir embora”. Em um levantamento com 15 famílias que adotam essa estratégia há mais de 10 anos, ele verificou que “depois das grandes secas e chuvas os sistemas agroflorestais voltam a produzir alimentos mais rapidamente que os sistemas agrícolas convencionais, o que implica uma exploração excessiva do solo da Caatinga.”
Cerrado – No estudo publicado na Applied Geography, a equipe coordenada por René Beuchle, do Joint Research Centre da Comissão Europeia, da Itália, examinou também outro amplo ecossistema brasileiro, o Cerrado, que perdeu ainda mais que a Caatinga. Em 20 anos, a área de Cerrado sofreu uma redução de 26 milhões de hectares – ou 260 mil km2, o equivalente ao dobro da área da Inglaterra, também pela expansão da agropecuária. Outra conclusão é de que a taxa de derrubada da vegetação natural caiu no Cerrado (de 0,79% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), dessa vez concordando com as conclusões do governo sobre o recuo do desmatamento.
Para ver o que se passava na Caatinga e no Cerrado, a equipe coordenada por Beuchle analisou 974 imagens do satélite Landsat, com resolução de 30 metros, que registraram as mudanças na cobertura vegetal do solo em 1990, 2000, 2005 e 2010 em 243 áreas amostrais, cada uma com 10 km por 10 km. Os dois ecossistemas cobrem 35% do território brasileiro e estão entre os ambientes naturais mais ameaçados do planeta devido à conversão de matas nativas para uso agrícola. Hoje a vegetação nativa da Caatinga ocupa 63% de sua área original e a do Cerrado, 47%, de acordo com esse estudo. Levantamentos do governo federal consideram a área remanescente de cobertura vegetal um pouco maior, nos dois casos. Há consenso, porém, de que a área de vegetação nativa preservada por meio de unidades de conservação ainda é muito limitada: 7,5% da Caatinga e 8% do Cerrado.
As transformações nesses ecossistemas não são noticiadas tanto quanto as de outros dois biomas brasileiros, Mata Atlântica e Amazônia, porque, em parte, não é simples detectá-las. Nas imagens de satélite feitas na estação seca – e a maioria das imagens usadas são dessa época, por causa da ausência de nuvens de chuva –, “é difícil separar as árvores sem folhas do Cerrado e da Caatinga de outras coberturas da terra, incluindo as áreas agrícolas”, diz Beuchle. Em contrapartida, as imagens da Mata Atlântica e da Amazônia exibem um claro contraste entre a floresta alta e densa e as áreas desmatadas, mais baixas.
Além disso, diferentemente da Mata Atlântica e da Amazônia, a Caatinga e o Cerrado não foram reconhecidos como patrimônios naturais. O Ministério do Meio Ambiente observa, em seu site: “Devemos reconhecer que a Caatinga ainda carece de marcos regulatórios, ações e investimentos na sua conservação e uso sustentável”. Segundo o ministério, uma das medidas fundamentais nesse sentido seria a aprovação da proposta de emenda constitucional que transforma a Caatinga e o Cerrado em patrimônios nacionais, o que poderia facilitar a implantação de medidas voltadas à conservação desses ambientes.
Edson Sano, pesquisador da Embrapa Cerrados que trabalhou com Beuchle nessa análise, concluiu que a redução de áreas de vegetação nativa, principalmente no Cerrado, reflete a expansão agrícola do final da década de 1990, “quando a terra no Centro-Oeste ainda era barata e a produção no Sul e Sudeste já estava saturada”. Segundo ele, a partir do ano de 2000, porém, essa expansão desacelerou, por causa da elevação do custo da terra, do aumento da fiscalização (hoje os fazendeiros têm de obter autorização de órgãos federais ou estaduais para cortar a vegetação nativa, sob o risco de perder o direito de uso da área) e dos ganhos de produtividade proporcionados por novas tecnologias de cultivo. “Agora a tendência é de redução”, diz ele.
No estado de São Paulo, de acordo com o mapeamento mais recente, de 2010, o Cerrado ocupa 847,4 mil hectares, o equivalente a 8,5% da área original, de 9,9 milhões de hectares, e apenas 25,9 mil hectares estão protegidos por algum tipo de unidade de conservação. Matas desse tipo de vegetação ainda podem ser vistas nas regiões de Ribeirão Preto, Franca, São José do Rio Preto, Bauru, Sorocaba e Campinas, entre outras, acossadas pelas plantações de cana-de-açúcar. “Para atingir as metas de recuperação de acordos internacionais, que propõem a recuperação de 17% da área original terrestre de cada bioma, teríamos de plantar cerca de 800 mil hectares de Cerrado em São Paulo”, informa Marco Aurélio Nalon, pesquisador do Instituto Florestal e um dos coordenadores do Inventário Florestal da Cobertura Vegetal Nativa do Estado de São Paulo.
Com os números e os mapas à mão, Nalon tem se reunido com outros especialistas de órgãos ambientais do estado com o propósito de repor o que for possível das matas perdidas. Não é só São Paulo que está se mobilizando. Em janeiro deste ano, o Ministério do Meio Ambiente apresentou para debate público a versão preliminar do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa, elaborado com base na Lei de Proteção da Vegetação Nativa, de 2012, para incentivar o plantio de espécies nativas, a restauração de áreas degradadas e as práticas agropecuárias que favoreçam a recuperação de pelo menos 12,5 milhões de hectares de vegetação nativa nos próximos 20 anos, por meio do plantio ou da restauração de áreas degradadas.
Já existem técnicas agrícolas que evitam o esgotamento do solo e reduzem a necessidade de outras terras para cultivo ou pastagens. Sano destaca duas. A primeira é o rodízio de plantio: uma parte da área de pastagem é ocupada com um cultivo agrícola, que nos anos seguintes ocupa outras partes da propriedade, alternadamente. A segunda é o plantio de árvores comerciais nas pastagens: as árvores oferecem sombra para o gado e depois podem ser vendidas. “Nada impede que em uma mesma fazenda exista uma integração entre lavoura, pecuária e floresta”, diz ele.
A área de vegetação nativa a ser recuperada, de acordo com a meta do plano do governo federal, corresponde a mais da metade dos 21 milhões de hectares que representam o déficit nacional de vegetação nativa no país, medido pela soma das áreas de matas nativas que os proprietários rurais devem, por lei, manter em suas terras ou nas proximidades de rios e córregos. “A recuperação da vegetação nativa é muito importante, principalmente em áreas de nascentes”, ressalta Sano. “Se não preservarmos as nascentes, em alguns anos poderemos não ter mais água nem para beber.” (Fonte: Revista Pesquisa Fapesp)