Mais um capítulo dramático da desastrosa relação entre índios e brancos na nossa sociedade. A Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e o Instituto Raoni divulgaram notas de repúdio, denunciando que o Encontro Nacional da Agricultura Indígena, convocado pelo deputadoNilson Leitão (PSDB/AM) para acontecer dia 18 de outubro em Brasília, não foi previamente combinado com eles.Se não houve o contato prévio, fica muito claro para os povos indígenas que eles também não serão ouvidos durante o Encontro. Faz sentido a preocupação.
Outro problema, nada irrelevante, é que o convocador do Encontro não traz boas lembranças aos indígenas. Entre outras coisas, porque o deputado presidiu a comissão especial da PEC 215, que propõe passar para o legislativo o poder de definir as demarcações de terras indígenas, “com a clara finalidade de frear o reconhecimento dos territórios tradicionais dos povos indígenas”, diz o texto da carta de repúdio divulgada ontem pela ATIX. Ele chegou mesmo a propor a extinção da Funai e é vice-presidente da comissão especial que analisa o Projeto de Lei que dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas.
Além disso, Nilson Leitão usou palavras que não agradaram nada aos indígenas na hora de se declarar, em Plenário, a favor de um debate sobre a produção agrícola indígena:
“Nós vamos trazer lideranças indígenas para Brasília, a fim de debater a produção dos índios em suas comunidades. Vamos debater o direito de eles explorarem suas terras e também o minério. Muitas aldeias indígenas estão em cima de jazidas – da esmeralda, do ouro, da prata. Muita gente está enriquecendo com isso, menos o índio”, afirmou Leitão segundo o site “O Livre”.
Mas não é essa a visão dos povos indígenas que assinaram a carta de repúdio que pode ser lida aqui, na íntegra, no site da Apib, que congrega seis outras articulações:
“Se esses deputados estivessem realmente interessados em ajudar os índios, buscariam recursos para apoiar as atividades econômicas que nós já realizamos. Os xinguanos vendem produtos orgânicos de qualidade como o “Mel dos Índios do Xingu”, as pimentas secas e moídas e o óleo de pequi. Nunca ouvimos esses deputados elogiarem nossas iniciativas produtivas ou falarem em aumentar os investimentos nesses produtos que vendemos para o mercado. Eles só pensam em monoculturas, exploração de minérios e construção de estradas, ferrovias, portos e outros empreendimentos que apenas os beneficiam, causando fortes impactos socioambientais sobre nós. Eles não admitem nenhuma outra forma de produzir e viver nesse país. Por isso, repudiamos veementemente qualquer tentativa dos deputados ruralistas em fingir que são parceiros dos povos indígenas. Eles querem apenas aumentar os seus lucros explorando os nossos recursos naturais”, diz a carta.
Já para os indígenas que estão junto ao Instituto Raoni, a atitude de Nilson Leitão corrobora a sensação de que ele não está disposto a dialogar com eles, mas a validar as propostas do setor de agronegócio e da mineração.
“Aproveitamos a oportunidade para informar a todos que SIM, nós produzimos em nossas terras, produzimos nossos alimentos através de nossas roças tradicionais, utilizamos nossos rios para nos deslocar dentro dos nossos territórios e das nossas florestas para obter nossas caças/alimentos, além de realizar coleta de produtos da biodiversidade, como sementes de cumaru, pequi, óleo de copaíba, coleta de remédios tradicionais e de mataria prima para produção de nossos artesanatos tradicionais. E que para isso, não necessitamos destruir nossas riquezas naturais. Deixamos bem claro que em nossas terras não exploramos e não permitiremos a exploração de nenhum recurso natural, que não seja de forma sustentável. Queremos manter nossos territórios para manter nossa cultura e nosso modo de vida”, diz o texto da carta, divulgada no dia 11 de outubro.
O resultado é que os indígenas não vão comparecer ao Encontro.Trata-se de uma atitude que pretende marcar a posição de revolta contra os fatos. Por outro lado, o campo estará aberto para que os desenvolvimentistas avancem com suas lógicas ancestrais sobre progresso, geração de renda, emprego etc, etc.
O final desse roteiro já se conhece de sobra. Vai haver muita luta e disputa e ganhará o mais forte, ou seja, a bancada parlamentar que conseguir mais votos para anular a Constituição. Lá está escrito, de forma clara, que os indígenas precisam dar a última palavra a qualquer tipo de empreendimento que vá ser feito em suas terras. Mas, como se sabe, nem sempre o diálogo acontece, não, pelo menos, da maneira como os indígenas gostariam.
Poderíamos sugerir novas fontes de consulta para a questão, outras possibilidades que não precisassem utilizar os mesmos argumentos econômicos de sempre para justificar o injustificável, quer seja, a degradação de terras protegidas. Não há respostas simples para assuntos que envolvem progresso versus preservação do meio ambiente. Há chance de se conseguir algum caminho que possa respeitar a sabedoria de povos tradicionais, que desde há muito têm uma relação pouco agressiva com o ambiente. Certamente não será dizendo que eles deveriam se beneficiar “também” do esquadrinhamento da terra onde vivem em nome do progresso que os não índios querem.
Nesse sentido, quero propor a leitura de “Economia selvagem – Ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebêngôkre” (Ed. Unesp), de Cesar Gordon. Uma análise antropológica sobre o tema em questão, ou seja, a relação dos indígenas com o Estado e a economia capitalista dos não-índios. Gordon fez uma pesquisa intensa, conviveu durante muito tempo com as duas etnias que se propôs a estudar e, com base em dados, reflete sobre essa importante mudança na vida de quem precisou conviver, de uma hora para outra, com os bens industrializados, o dinheiro, dos brancos.
Esse tipo de reflexão poderia ser, ao menos, um bom começo de conversa no Encontro que pretende levar adiante o debate. Senão, o que vai se ver é a repetição do mesmo. E isso, francamente, já não se suporta mais.
Fonte: G1