Os problemas ambientais não são todos de igual importância. Uns afetam o país, outros uma região, e muitos são estritamente locais. Uns são determinantes para a vida e para a qualidade da vida de muitos, outros são apenas melhorias dispensáveis. E, também, há problemas ambientais que só existem na cabeça de extremistas.
Acaso pode-se comparar o impacto ambiental multiplicador de uma estrada na mata natural, ou do represamento de um rio, ou de uma grande exploração minerária ou petroleira, com os que ocasionam a ampliação de uma avenida ou a construção de um viaduto em plena zona urbana? Acaso a eliminação de uma árvore velha num parque da cidade ou o barulho que fazem os canários da vizinha podem receber a mesma atenção que a falta de saneamento urbano, a multiplicação de lixões ou a inexistência de coleta seletiva de lixo? A única resposta possível é que não são comparáveis e que toda a prioridade deve ser designada a atender os problemas maiores. Mas, qualquer avaliação do que os três poderes do Estado, nos seus três níveis, gasta em meio ambiente revelará que uma parte substancial, senão a maior parte, vai para atender temas nitidamente menos importantes.
Exemplos:
A saída norte de Brasília ostenta, duas vezes ao dia, engarrafamentos colossais. Anos atrás, o governo decidiu pôr fim a esse gargalo construindo um trevo de triagem. Trata-se de uma obra a ser implantada numa área antrópica, drasticamente alterada desde a época da construção da cidade. Mas isso não foi impedimento para que esteja emperrada em grande medida devido a mil e um detalhes ambientais que, ademais do governo e das suas agências ambientais e de infraestrutura, há involucrado a outras quatro instituições públicas, três dos governos locais, pelo menos três organizações não governamentais e, obviamente, o Ministério Público. Documentos, acusações e declarações vão e relatórios, reuniões e novos prazos vêm. O tempo transcorre, a obra não avança como deve e o mal gasto do tempo de profissionais valiosos é grande. A parte das precauções normais em qualquer obra, as que sem dúvida foram consideradas, não há nada no lugar da obra que mereça tanto esforço “ambiental”. O lamentável é que as mesmas instituições que perdem tempo com esse assunto não conseguem controlar as emissões ilegais de esgotos que chegam aos reservatórios que abastecem a cidade, não evitam a destruição das matas ciliares das nascentes e córregos que servem as barragens, nem freiam invasões e queimadas nas áreas protegidas e, por certo, tampouco conseguem desenhar uma solução para os milhares de automóveis abandonados que criam abrigo para os mosquitos que propagam a dengue ou o zika vírus.
O caso mencionado se repete em todo o Brasil. Por exemplo, com as obras de circunvalação viária de Curitiba ou de Florianópolis, demoradas por motivações ambientais secundárias, supostamente para proteger ambientes naturais que já perderam toda a sua naturalidade décadas atrás, e onde um pouco mais de distúrbio ou um pouco menos não muda nada substancial. Essas demoras são responsáveis por inúmeros acidentes e mortes nas rodovias congestionadas e por elevada contaminação do ar, o que não é posto na balança no momento de estorvar a obra. E nesses mesmos estados os últimos relictos florestais de araucária são transformados em plantações de pinhos e em pastagens, os parques nacionais e estaduais são destruídos lentamente por falta de presença do poder público, e a erosão descontrolada do solo, além do envenenamento dos cultivos e das águas por mau uso de agroquímicos, continua sem freio.
Não há dúvida de que algo está errado na eleição das prioridades do esforço da gestão ambiental, que frequentemente se transformam em entraves para obras urgentes no lugar de serem melhorias. |
A atenção grande e muitas vezes excessiva que se outorga aos aspectos ambientais das obras públicas urbanas se traduz, assim mesmo, em estudos de impacto ambiental detalhados, demorados e custosos que, de qualquer modo são contestados por alguma das tantas partes, no tão só por sua eventual baixa qualidade ou por erros, mas essencialmente pelo exibicionismo de pontos de vista discordantes, porém que com pouca ou nenhuma significância ambiental real. Intervenções humanas no ambiente natural que são muito mais impactantes não recebem tanta atenção. Não há dúvida de que algo está errado na eleição das prioridades do esforço da gestão ambiental, que frequentemente se transformam em entraves para obras urgentes no lugar de serem melhorias.
Outra consequência do preciosismo ambiental é a reação dos demais membros da sociedade. Os cidadãos majoritariamente querem seu viaduto ou sua circunvalação para aliviar seus sofrimentos diários. Eles não estão contra o meio ambiente, porém a sucessão de requisitos e obstáculos, muitos dos que são obviamente fúteis, geram uma reação negativa contra a temática ambiental que, lamentavelmente, ressurge quando os problemas são realmente sérios. O termo “ecochato” não é gratuito. Com frequência é bem merecido, mas, é muito prejudicial para a causa ambiental.
Mas, o problema tem faces ainda mais extremas. No dia a dia das agências ambientais e de outras autoridades, entram assuntos muito mais banais. Queixas como a poda ou eliminação de uma ou mais árvores numa rua ou numa praça, reclamações, pois o cachorro do vizinho persegue as corujas ou denúncias de ruído excessivo pode desencadear longos processos burocráticos que implicam visitas, relatórios e, eventualmente, até a intervenção de um procurador e um juiz. São dúzias diárias de casos como esses que, pela legislação vigente, as agências devem atender. Isso em princípio é bom, mas a mesma agência que tem recursos limitados não tem tempo, pessoal, nem dinheiro para atender problemas incomparavelmente mais graves. Assim a única veterinária da agência local deve visitar a proprietária de um papagaio que faz barulho demais, ao invés de procurar resolver a proliferação de capivaras nos parques da cidade – estas que dispersam carrapatos e enfermidades e que ocasionam acidentes com crianças e animais domésticos – ou desenvolver um programa para controlar a multiplicação de cães sem donos nos lixões.
Uma explicação:
Parte da distorção no uso dos recursos humanos e orçamentários para assuntos ambientais deriva-se do fato que eles se concentram nos centros urbanos. É especialmente no meio urbano e no seu entorno imediato que se produz com mais frequência a mencionada prioridade de atenção para os assuntos ambientais menos importantes. A realidade é que os problemas ambientais urbanos não são mais, nem menos, graves que os rurais. Os problemas ambientais urbanos afetam a muitas pessoas de modo direito, são muito palpáveis. No entanto, os rurais afetam com igual gravidade ao mesmo tanto ou até a mais gente, mas, em geral, isso ocorre de modo indireto e mais sutil.
De certa forma, é normal que obras que estão sob o escrutínio de milhares de vizinhos e de organizações locais da sociedade civil estejam sujeitas a mais crítica e controvérsia que as que só poucos veem. Ademais, é elogiável que a sociedade esteja atenta a evitar danos ao meio ambiente, por mais ínfimos que estes sejam. Mas, embora esse fato revele maior consciência ambiental, também demonstra que a cultura ambiental da cidadania está deformada. Os mesmos que protestam veemente pela poda ou derrubada de um eucalipto ou de uma mangueira e pelo distúrbio ocasionado a um ninho de passarinhos comuns, em geral, não expressam nenhuma sensibilidade pela derrubada de centenas de milhares de hectares na Amazônia ou nos seus próprios estados, nem pela extinção de espécies nativas ou pela destruição dos recifes de coral e dos manguezais. É verdade que o cuidado ao meio ambiente começa “em casa”, é dizer pelo que está ao alcance dos sentidos (“olhos que não veem, coração que não sente”), mas ainda assim, nesta era da informação massiva isso assinala que algo não está bem.
O que pode ser observado, reitera-se, é a desproporção do investimento em problemas mínimos versus o que se dedica a resolver problemas ambientais graves |
Não pode, nem deve, se criticar que uma cidade ou localidade dedique muito esforço, mais que outras, para seu próprio ambiente e que, nisso, seja detalhista e meticulosa. É de seu direito. O que pode ser observado, reitera-se, é a desproporção do investimento em problemas mínimos versus o que se dedica a resolver problemas ambientais graves.
A solução a este problema, que em grande medida é universal, é complexa e requer mudanças na legislação, na institucionalidade e na gestão, assim como na educação ambiental. A legislação deve ser menos detalhista e, no lugar de exigir, sob pena de sanção, que demandas sem importância sejam atendidas com a mesma urgência que outras, deveria brindar a possibilidade de usar a discernimento apropriado a cada caso. Uma lei só, a de crimes ambientais, tem grande parte da responsabilidade pelas demandas de intervenção pública para assuntos de pouco monta ambiental. Da mesma forma, problemas ambientais “secundários” não deveriam ser atendidos por agências ambientais, mas sim por outras dependências municipais, que não requeiram profissionais de alto nível – estes deveriam ser reservados exclusivamente para os assuntos importantes. Por outro lado, as agências ambientais devem planejar melhor suas atividades em função da importância dos problemas que enfrentam, ajustando-se aos seus orçamentos anuais. E esse planejamento deve ser bem conhecido pelo público. As obras e os temas ambientais que correspondem à agência devem ser classificados de modo a que os recursos e o pessoal mais competente se dedique aos principais. Cada problema novo, como as obras que devem ser licenciadas, deveria receber uma nota que indica sua prioridade de atenção. Na verdade, muitas agências já devem estar fazendo isso, mas possivelmente não conseguem esclarecer isso ante o público que reclama nas suas portas. A autoridade deve falar alto e claro, o que raramente ocorre.
Mas a solução depende essencialmente da sociedade, do público em geral, já que são os cidadãos comuns os que originam grande parte dessas reclamações e queixas. São reclamações, nas suas escalas, justas e razoáveis; até elogiáveis. Mas, não vão acompanhados de uma ponderação das implicações das suas queixas. E, frequentemente, os que se queixam são ao mesmo tempo culpáveis de muitos outros pequenos atentados ao meio ambiente, dos quais nem têm consciência. Outro grupo de atores importantes neste acúmulo de problemas ambientais secundários são muitas das organizações não governamentais de atuação local, vicinal, que cheias de boa vontade muitas vezes iniciam processos por assuntos triviais e os levam até as últimas consequências, distraindo o Ministério Público de problemas realmente importantes.
Por isso é que a educação ambiental deve desempenhar um papel central. Deve ser mais integral, sair do detalhe acessório para apontar o verdadeiro fator limitante no ambiente do indivíduo ou da sociedade, ou seja, focar no problema que mais os afeta e, por isso, ser mais tolerante. O cidadão que protesta e involucra até o Ministério Público para defender uma árvore da sua rua deve pensar no tempo que tira dos funcionários que ele movimenta. Só a educação ambiental pode ajudar o indivíduo bem-intencionado a diferenciar.
Finalmente:
Não é fácil estabelecer o justo equilíbrio entre o grave e o supérfluo. Nada é tão relativo como esses conceitos. Numa sociedade rica e avançada, o nível de atendimento dos problemas ambientais é elevado e meticuloso, pois os problemas mais importantes já estão resolvidos. Algumas cidades e municípios brasileiros já estão quase nesse patamar. Mas são poucos e mesmo assim estes não atendem por igual o meio urbano e o meio rural, ou natural. Nas sociedades desenvolvidas, ambos são atendidos no mesmo nível, como deve ser para o bem geral.
Também pode se supor que a melhor qualidade da vida é produto da solução de muitos problemas ambientais pequenos e grandes e que, por isso, todos devem ser tratados por igual. Mas, somando os danos ambientais de todas as obras de mobilidade urbana em andamento do país não se equipara o impacto ambiental de uma obra só, como no caso de uma estrada nova na Amazônia ou a barragem de resíduos mineiros da Samarco, nas que com certeza se gastou menos em estudos e em supervisão pública que num único trevo urbano em construção. Ou seja, pode e deve se definir prioridades. Mais ainda quando a economia nacional anda mal.
Fonte: O Eco (Marc Dourojeanni)