É o que afirma um grupo de mais de 600 cientistas e acadêmicos – entre eles oito relatores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, do nome em inglês) – em uma carta enviada ao Parlamento Europeu (PE), que votou uma série de emendas ao texto nesta quarta-feira, abrindo caminho para a negociação final com as demais instituições europeias.
A proposta, elaborada pela Comissão Europeia (braço Executivo da UE), prevê aumentar para entre 27% e 35% a proporção de fontes renováveis exigida no consumo total de energia do bloco em 2030, o dobro da meta atual, fixada em 2009.
O problema, segundo os cientistas, é a existência de uma “falha grave” no texto.
Entre as fontes consideradas como energias renováveis se inclui a madeira, de maneira genérica, o que permite que indústrias e centrais elétricas que abatem árvores para produzir calor ou eletricidade se beneficiem de incentivos e subsídios europeus para a produção de energias limpas.
Preferência
Resíduos resultantes da fabricação de papel ou móveis, por exemplo, são amplamente utilizados como biomassa na produção de energia na UE há anos, uma prática aprovada pelos cientistas.
No entanto, eles temem que a maior demanda por energias renováveis incentivaria a indústria a cortar árvores especificamente para produzir biomassa, em lugar de usar apenas madeira residual.
Mais barata e simples que a produção de energia eólica ou solar, a energia a partir de biomassa também é uma alternativa para as centrais elétricas movidas a carvão, alvo de uma campanha de extinção na UE, que podem se beneficiar de ajudas públicas para reconversão e usar suas instalações para produzir energia com a queima de madeira.
A preferência europeia pela biomassa na produção de energia renovável está relatada em um estudo realizado pela própria Comissão Europeia em 2016 sobre o impacto ambiental dessa demanda sobre os Estados Unidos, principal fornecedor de madeira granulada para o bloco.
Segundo o documento, as importações europeias dessa matéria procedentes dos EUA cresceram de 530 mil toneladas em 2009 para 3,89 milhões de toneladas em 2014.
Bruxelas estima que em 2020 a biomassa responderá por 42% das energias limpas consumidas na UE.
“Estima-se que a bioenergia será, sozinha, a maior fonte de novas demandas por madeira no futuro próximo, e isso deverá causar um aumento nas plantações de pinos, em detrimento das áreas agrícolas e de florestas naturais”, agrega o estudo. “A conversão de florestas naturais em florestas plantadas é uma preocupação e a demanda projetada de exportação de madeira granulada e bioenergia doméstica sugere que a prática continuará”.
Desmatamento
A nova demanda europeia superaria a capacidade das florestas locais e causaria um “grande impacto sobre as florestas mundiais e a biodiversidade”, afirmou à BBC Brasil Jean-Pascal van Ypersele, professor da Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), co-presidente do IPCC entre 2008 e 2015.
“Para fornecer só um terço da energia renovável adicional exigida em 2030 a UE teria que queimar uma quantidade de madeira muito superior a sua produção total atual. As importações europeias de madeira aumentariam consideravelmente, ameaçando as florestas brasileiras.”
Segundo o professor, “só a demanda europeia por madeira já degradaria as florestas mundiais, mas se outros países decidirem seguir o exemplo da UE e também começarem a usar madeira para produzir energia o impacto seria catastrófico”.
Se 3% do consumo mundial de energia fosse gerado a partir de madeira, o volume de árvores abatidas comercialmente duplicaria, exemplifica.
“Em lugar de incentivar Indonésia e Brasil a preservar suas florestas tropicais, o que esse projeto de lei está dizendo é basicamente ‘está bem cortar suas florestas se for para produzir energia’.”
Sustentabilidade
O Executivo europeu afirma que “o argumento de que a bioenergia sólida na Europa incentiva o desmatamento em países como o Brasil não tem base”, já que atualmente 95% da energia desse tipo consumida no bloco é produzida a partir de matéria-prima local.
Também destaca que a proposta de lei inclui uma série de critérios de sustentabilidade para o uso de biomassa com o propósito de proteger a biodiversidade e prevenir o desmatamento global.
Entre eles, determina que a energia produzida a partir de biomassa deve gerar emissões pelo menos 80% inferiores às de combustíveis fósseis e usar matéria-prima fornecida por florestas com modelos de administração sustentável.
Van Ypersele considera essas salvaguardas insuficientes. Na carta enviada aos deputados europeus, ele e seus colegas pediram que o projeto de lei seja emendado de maneira que a definição de biomassa sólida que pode ser usada na produção de energia renovável seja limitada a “resíduos de madeira”, uma proposta também defendida por organizações ambientalistas.
“Ninguém está contra este projeto de lei. O que queremos é que fique claro que não se pode cortar árvores para produzir energia. Isso é um absurdo e vai contra a própria noção de luta contra a mudança climática”, afirmou à BBC Brasil Alex Mason, especialista em energias renováveis na WWF.
No entanto, a emenda defendida pelos ambientalistas e cientistas, apresentada pelo grupo Verde do PE, foi rejeitada na votação desta quarta-feira, em um movimento que Mason atribui ao “lobby pesado” da indústria florestal europeia.
Lobby
A Associação Europeia de Biomassa (AEBIOM), que representa 120 associações e empresas ligadas à produção de biomassa, argumenta que a produção europeia de madeira aumentou em 5 bilhões de metros cúbicos nos últimos 25 anos e que a indústria não utiliza mais que 63 por cento do aumento anual, apesar de o consumo de energias renováveis na UE ter dobrado de volume nos últimos quinze anos.
Ademais, assegura que as centrais europeias de energia de biomassa não utilizam madeiras inteiras e não poderiam competir com os preços oferecidos para essa matéria pelas indústrias de móveis e construção.
“Afirmar que o desenvolvimento de bioenergia sólida na Europa incentiva o desmatamento em países como Indonésia ou Brasil é incorreto. As importações de bioenergia são estáveis e limitadas”, defende a associação, em um artigo assinado por seu secretário geral, Jean-Marc Jossart.
Eficiência
Além da ameaça para as florestas mundiais, os cientistas afirmam que a produção de energia a partir de madeira é também ineficiente e contraprodutiva para a luta contra o aquecimento global.
“A madeira que é queimada emite mais carbono que o carvão por cada unidade de energia gerada e queima a uma temperatura inferior, produzindo menos eletricidade. Transformar a madeira em grânulos aumenta a eficiência, mas é um processo que usa energia e gera emissões adicionais”, explica Van Ypersele.
Segundo os cientistas, as emissões de CO2 de uma central elétrica à base de madeira granualada são em média 50% superiores à de uma central à base de carvão e pelo menos 3 vezes superiores à de uma central à base de gás natural.
“Nossa estimativa conservadora é de que o uso de madeira deliberadamente abatida (para produzir energia) no lugar de combustíveis fósseis emitiria pelo menos duas vezes mais CO2 por kw/h em 2050”, advertem os cientistas na carta enviada aos deputados europeus.
Levaria “décadas ou séculos” para que o crescimento de novas florestas e a redução no uso de combustíveis fósseis fossem capazes de zerar o saldo de CO2 na atmosfera.
Fonte: BBC