As 3 teses que tentam explicar como a febre amarela rompeu fronteiras da Amazônia e atingiu o Sudeste

Cientistas se debruçam sobre três teses que tentam explicar o fenômeno. A partir do ano passado, o número de casos da doença alcançou níveis sem precedentes nos últimos 50 anos, provocando correrias a postos de saúde – inclusive de pessoas que não se encontram em áreas de risco.

Segundo o Ministério da Saúde, desde o início de 2017 foram confirmados 779 casos, 262 deles resultando em mortes – o maior surto de febre amarela silvestre (ou seja, transmitida em área de floresta) da história. Outros 435 registros ainda estão sob investigação.

Casos de pessoas infectadas no Sudeste começaram a ser registrados no início dos anos 2000, afirmam especialistas, e já havia a indicação de que a doença estava progressivamente migrando para o litoral leste do país. O que pegou alguns pesquisadores de surpresa foi a rapidez com que o vírus se espalhou.

De acordo com uma das teorias que tentam explicar essa migração, um humano infectado na Amazônia teria se deslocado em seguida para alguma região de Mata Atlântica, possivelmente em Minas Gerais, e sido picado lá por outros mosquitos, que teriam depois espalhado a doença.

Uma segunda hipótese é a de que insetos que adquiriram o vírus na Amazônia foram se deslocando progressivamente para o sul do país, por meio de corredores de floresta e rios, passando por Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro. A estimativa é que um mosquito seja capaz de voar por cerca de 3 km por dia.

Uma terceira teoria aponta desequilíbrios ambientais causados pelo rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), como fator responsável por multiplicar casos de contaminação por febre amarela. Segundo essa teoria indica, o desastre ambiental eliminou predadores dos mosquitos, aumentando a população desses insetos.

Descobrir o que provocou a chegada do vírus ao Sudeste e o aumento inesperado de casos é importante, segundo especialistas, para detectar por onde a doença ainda deve passar e adotar medidas de prevenção contra novos surtos, com campanhas de vacinação e de eliminação de focos de mosquito.

Como tudo começou…

O vírus da febre amarela existe no Brasil desde os tempos coloniais.

Os navios portugueses vindos da África no século 17 e 18 não trouxeram ao Brasil somente africanos escravizados e mercadorias. Dois inimigos silenciosos do homem vieram junto – o vírus da febre amarela, presente no corpo dos passageiros, e o mosquito Aedes aegypti, que também transmite dengue, chikungunya e zika.

As consequências foram uma série de surtos de febre amarela urbana no Brasil, com milhares de mortos. Diferentemente do que ocorre hoje, a doença predominava nas cidades, não nas florestas, e era transmitida pelo Aedes aegypti, não por mosquitos silvestres (que vivem em matas).

No século 20, campanhas de erradicação do Aedes aegypti conseguiram acabar com a febre amarela urbana. Mas o vírus já tinha migrado – pelo trânsito de pessoas infectadas – para zonas de floresta na região Amazônica, e passou a ser transmitido apenas por mosquitos silvestres de duas categorias, HaemagogusSabethes.

“A partir da febre amarela urbana, as pessoas, entrando na mata, introduziram o vírus no ambiente silvestre. O fato é que, na Amazônia, o vírus ficou até hoje. Na Mata Atlântica, ficou até 1940, quando se extinguiu o ciclo silvestre na região”, explica Falqueto.

No início dos anos 2000, alguns casos de febre amarela começaram a ressurgir em áreas da Mata Atlântica, segundo o pesquisador Ricardo Lourenço, do Instituto Oswaldo Cruz. A partir de dezembro de 2016, o número de infectados explodiu em algumas regiões de Minas Gerais e Espírito Santo, caracterizando um surto. E, entre 2017 e 2018, registros de febre amarela cresceram rapidamente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Teoria 1 – vírus trazido pelo homem

Alguns pesquisadores argumentam que o vírus desceu do Norte para o Sudeste do país porque um ser humano infectado na Amazônia foi para a Mata Atlântica e acabou sendo picado por outros mosquitos silvestres que espalharam a doença.

“A minha teoria é o elemento urbano. Muitas pessoas migram para a Amazônia sem tomar vacina. Uma pessoa pegou o vírus na Amazônia e entrou na Mata Atlântica depois, possivelmente na altura de Montes Claros, em Minas Gerais, onde surgiram casos de macacos e pessoas infectadas”, defende o professor Aloísio Falqueto, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

O pesquisador destaca que, uma vez na Mata Atlântica, o vírus se espalhou rapidamente, já que lá havia uma grande quantidade de alimentos para os mosquitos – sangue de macacos. E os primatas dessa floresta estavam vulneráveis – não tinham desenvolvido anticorpos, uma vez que o vírus havia desaparecido da região na década de 1940.

Os mosquitos Sabethes Haemagogus, atuais transmissores da febre amarela, moram na copa das árvores e preferem o sangue dos macacos. Essa preferência vem de um processo de adaptação genética, ao longo de anos de evolução das espécies.

“Aqui é um barril de pólvora. A força de transmissão é muito maior, porque já havia o vetor – mosquitos que moravam na Mata Atlântica – e uma diversidade ampla de macacos vulneráveis à febre amarela que nunca tinham desenvolvido anticorpos”, afirma Falqueto.

Nos últimos meses, macacos têm sido mortos não apenas em decorrência da febre amarela, mas também por seres humanos que temem contrair a doença. Mas pesquisadores alertam que o massacre desses bichos é um “tiro no pé”: se muitos macacos começarem a morrer, a tendência é que cresça a chance de contaminação de humanos.

Sem ter primatas para picar na copa das árvores, os mosquitos buscarão alimento em outras localidades – e o homem vira a próxima opção como fonte de sangue. Como o homem é um animal que se assemelha ao macaco, naturalmente se torna alternativa para o mosquito da febre amarela, que buscará instintivamente um bicho geneticamente próximo.

Teoria 2 – viagem do mosquito

Outros pesquisadores argumentam que os mosquitos silvestres que transmitem a febre amarela se deslocaram do Norte do país para o Sudeste aos poucos, voando ao longo de rios e corredores de mata.

Conforme foram picando macacos na Mata Atlântica, e esses bichos foram morrendo, os mosquitos teriam se deslocado mais ao sul, passando de Minas Gerais e Espírito Santo para São Paulo e Rio de Janeiro.

“É possível que (a migração do vírus) tenha sido causada por mosquitos que voaram entre manchas de mata. Os mosquitos se dispersam por dois motivos: para achar lugar para colocar ovo e para achar fonte de alimentação sanguínea”, explica o pesquisador Ricardo Lourenço, do Instituto Oswaldo Cruz.

“Se começa a morrer macaco, o mosquito começa a buscar sangue em outro lugar. E ele vai voar distâncias maiores para colocar seus ovos. O deslocamento dessas espécies de mosquito pode alcançar 3 km por dia.”

Tanto o homem quanto o macaco, quando picados, só carregam o vírus da febre amarela em quantidades suficientes para infectar outros mosquitos por cerca de três dias. Depois disso, o organismo passa a produzir anticorpos, e a concentração do vírus diminui. Em cerca de dez dias, primatas e humanos terão morrido ou se curado da doença, ficando imunes a ela.

Já o mosquito permanece com o vírus da febre amarela para sempre, segundo Ricardo Lourenço. Eles podem até passar o vírus para os ovos e, consequentemente, para os filhotes que nascerem.

Teoria 3 – rompimento da barragem em Mariana

Já o professor da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Massad, que também leciona na London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, acredita que o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), em 2015, teve papel relevante na disseminação acelerada da doença no Sudeste do país.

Essa tese aponta que a destruição do habitat natural de diferentes espécies, além da morte de peixes e outros animais, pode ter reduzido os predadores naturais dos mosquitos. Ao mesmo tempo, a tragédia ambiental pode ter afetado o sistema imunológico dos macacos, tornando-os mais suscetíveis ao vírus da febre amarela.

“A grande surpresa foi a velocidade com que a doença se espalhou no Sudeste. Tenho quase certeza de que esse surto se iniciou como resultado do desastre em Mariana, em Minas Gerais, quando houve um grande desequilíbrio ecológico e algum fator causou o espalhamento rápido da doença no macaco”, diz Massad, que é infectologista.

Segundo o professor, da USP, em um ano – de janeiro de 2017 a janeiro de 2018 – houve um volume de casos comparável ao registrado em um período de 30 anos.

E para onde o vírus anda vai?

E a “viagem” da febre amarela não deve terminar em São Paulo. O professor Aloisio Falqueto, da Ufes, prevê que o vírus continuará seguindo por corredores de mata e chegará ao Sul do país.

“A essa altura já devíamos estar vacinando as populações de determinadas áreas do Paraná e de Santa Catarina”, diz. A “migração” do vírus até o Sul, segundo o pesquisador, ocorrerá a partir do voo dos mosquitos silvestres que transmitem a doença e que transitam por áreas de floresta em busca de alimentos.

Para Falqueto, o número de pessoas infectadas pela febre amarela desde que os casos começaram a aumentar rapidamente, em 2016, poderia ter sido menor se governo estaduais tivessem planejado melhor a imunização de zonas rurais, conforme o mapeamento dos “caminhos” possíveis do vírus.

É possível, segundo ele, prever o trajeto levando em conta corredores de floresta a existência de populações de macacos. “Temos clamado desde o início do ano passado para vacinarem a população das áreas rurais em contato com a Mata Atlântica. Eles despejaram muitas vacinas nas áreas urbanas quando não precisava. E faltou vacina para quem estava exposto”, diz Falqueto.

O professor Eduardo Massad, da USP, diz que elaborou, em 2014, um plano de imunização para o Estado de São Paulo depois que 11 pessoas morreram vítimas de febre amarela em Botucatu, em 2009.

Mas, segundo ele, a Secretaria Estadual de Saúde não implementou a campanha de vacinação nas áreas onde havia risco de chegada do vírus.

“Eu fiz cálculos matemáticos para determinar qual seria a proporção da população nas áreas não vacinadas que deveria ser imunizada, considerando os riscos de efeitos adversos da vacina”, conta.

“Infelizmente a Secretaria de Saúde não adotou essa estratégia. Os casos estão acontecendo exatamente nas áreas onde eu havia recomendado a vacinação. A Secretaria está correndo atrás do prejuízo.”

Desde julho de 2017, foram contaminadas mais de 100 pessoas em São Paulo – mais de 40 pessoas morreram.

Vacinar ou não vacinar?

Por sua vez, o chefe da Coordenadoria de Controle de Doenças do Estado de São Paulo, Marcos Boulos, também infectologista e professor da USP, argumenta que teria sido “irresponsabilidade” vacinar moradores em áreas que, na época, não era consideradas foco do vírus da febre amarela.

Boulos afirma que a vacinação também traz riscos e, portanto, deve ser promovida com cautela. “Em Botucatu tivemos 11 mortos pela febre amarela e 4 mortos por efeitos colaterais de vacina. Quando você usa a vacina em regiões onde não tem epidemia, você só aumenta os riscos.”

Ele também afirmou que, a partir dos primeiros casos de febre amarela no Estado, em 2017, a Secretaria de Saúde promoveu vacinação em áreas onde se previa que o vírus iria passar.

“No ano passado, vacinamos com cuidado, seguindo as rotas de macacos e corredores de floresta. De cinco milhões de vacinas, tivemos dois efeitos com morte.”

Ele argumenta que houve mais casos de febre amarela em Mairiporã e Atibaia porque tratam-se de cidades repletas de moradias em meio a florestas. Além disso, acrescenta, o aumento do reflorestamento criou novos corredores de floresta entre Minas Gerais e São Paulo, possibilitando novas rotas de migração do vírus.

“A entrada foi por área de reflorestamento. Houve 16% do aumento de florestas e se formou continuidades de mata. A entrada por Campinas foi por reflorestamento na fronteira com Minas Gerais”, disse.

“Sabíamos que um dia poderia chegar próximo ao litoral, mas se acreditava que seria em mais sete ou 14 anos, e que daria para vacinar progressivamente. Estávamos visitando as casas e vacinando.”

‘Decisão difícil’

O pesquisador Ricardo Lourenço reconhece que não é fácil tomar a decisão de promover campanhas de vacinação em áreas onde ainda não há alerta de febre amarela, já que, embora considerada segura, a vacinação sempre gera alguns riscos.

A vacina contém uma dose ativa, porém enfraquecida do vírus, e estimula o corpo a produzir anticorpos contra a doença. Em alguns casos, pessoas desenvolvem os sintomas mais leves da febre amarela, como febre baixa e dor no corpo. Em casos mais raros, há o aparecimento dos sintomas graves – icterícia (amarelamento da pele e dos olhos), inflamação dos rins e fígado, hemorragias e, eventualmente, falência múltipla dos órgãos.

Uma dose imuniza a pessoa para a vida toda, conforme a Organização Mundial da Saúde. A dose fracionada adotada atualmente dura, segundo o Ministério da Saúde, por pelo menos oito anos.

A conclusão do tempo de duração da dose fracionada vem, segundo Lourenço, de um estudo feito com 700 pessoas que tomaram essa dose menor e que vêm sendo monitoradas há oito anos.

“Se a cada um milhão de pessoas vacinadas, uma pode ter uma infecção com doença grave, para que arriscar? Essa é a pergunta que se faz. Mas o aviso de que a febre está se aproximando está ocorrendo há muito tempo”, diz Lourenço.

“Se a febre amarela tivesse sido controlada há mais tempo, se tivesse sido feita uma avaliação e um estímulo maior para vacinar a população limítrofe das últimas epidemias em Minas e em São Paulo, não teríamos tantas pessoas infectadas hoje. Muita gente nasceu em áreas sem febre amarela e morreu disso, porque era tarde demais”, defende.

Para o pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, os governos locais “não foram sensíveis e rápidos para comunicar e perceber o início da epidemia. E o governo federal não produziu a campanha no tempo necessário.”

O Ministério da Saúde defende as ações de imunização adotadas. Em nota, a pasta afirmou que, “desde 2016, os Estados e municípios vêm sendo orientados para a necessidade de intensificar as medidas de prevenção.”

“Foram reforçados os estoques de vacinação nas áreas atingidas – só no ano passado, o ministério enviou aos Estados 45 milhões de doses da vacina – e realizadas videoconferências com os gestores das regiões afetadas para programar ações para contingência e a realização da maior campanha de vacina fracionada do mundo, agora em curso”, diz o Ministério da Saúde.

“É importante lembrar ainda que a estratégia de vacinação já faz parte da rotina de 21 Estados brasileiros e também é recomendado para pessoas de outras regiões que vão se deslocar para áreas de mata nessas localidades. O Ministério da Saúde, ao longo de décadas, vem mantendo os estoques de vacina e ampliando as áreas de vacinação conforme a necessidades apontadas pelo monitoramento constante”, afirmou a pasta na nota enviada à BBC Brasil.

A orientação é de que pessoas em áreas de risco se vacinem.

Fonte: BBC