Mais prazo para a inscrição no Cadastro Ambiental Rural

Na véspera do término do prazo para a inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), o presidente da República prorrogou até o último dia deste ano, por decreto[1], a data limite para os proprietários rurais fazerem sua parte, requerendo o registro.

Ou seja, o final do atual governo coincidirá com o prazo para o registro dos imóveis rurais no CAR. Uma análise mais aprofundada da conjuntura que envolve as questões ambientais nos últimos tempos e uma retrospectiva do CAR nos conduzem à evidência de que existe uma motivação por trás da renovação do prazo.

Com efeito, é notório que a bancada ruralista vem colocando forte pressão pelo acolhimento de suas demandas junto ao Congresso Nacional — onde tem representatividade expressiva[2] — e ao Palácio do Planalto, ainda que seus pleitos causem uma série de impactos negativos ao meio ambiente e, consequentemente, à sociedade.

Não é de hoje que os ruralistas conseguem aprovar leis e outras medidas favoráveis ao setor que defendem, sendo exemplo disso o novo Código Florestal, e mais recentemente a Lei da Grilagem[3], que permite, dentre outras medidas, a regularização fundiária de terras griladas em todo o Brasil, com especial destaque para a região da Amazônia Legal, que será amplamente atingida.

Outra proposta que está prestes a ser apreciada pela Câmara dos Deputados é o PL 6.299/02, chamado de “pacote do veneno”. Ele introduz uma série de mudanças tendentes ao enfraquecimento do controle sobre os agrotóxicos no país, deixando exclusivamente a cargo do Ministério da Agricultura a responsabilidade pelo registro desses produtos. Atualmente, também têm poder de veto a Anvisa e o Ibama. Até mesmo o nome dos agrotóxicos é alterado pelo projeto, passando a chamarem-se “defensivos fitossanitários”.

A renovação do prazo para a inscrição no CAR foi comemorada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que divulgou a novidade em seu site logo após a publicação do ato oficial. A CNA imputou a vitória a um pedido de sua autoria e de outras entidades do setor agropecuário. Diz a matéria que a “data final” venceria dia 31/5/2018 e que defendeu a prorrogação por diversas razões, citando expressamente apenas uma, qual seja, a dificuldade de muitos pequenos agricultores e pecuaristas em fazer o registro. Eles teriam como consequências ficar impedidos de operar crédito rural e de comercializar seus produtos[4].

Apesar de constar em vários documentos e notícias um prazo derradeiro ou expressões similares, como a usada pela CNA — “data final” —, o histórico das diversas concessões de mais prazo nos possibilita concluir pela ausência de segurança jurídica no assunto, ao mesmo tempo em que permite a identificação de uma sutil, mas substancial diferença entre as prorrogações.

Na ConJur, encontramos texto datado de 9/5/2016 abordando uma das prorrogações do CAR, e na época o título da coluna foi “Governo prorroga Cadastro Ambiental Rural para pequenos produtores”[5]. Hoje não poderíamos mais publicar a respeito do tema com o mesmo título, pois algo que pode ser tido como um “detalhe” surgiu como importante modificação no curso das prorrogações. Vejamos a sequência delas, o que mudou e quando a alteração ocorreu.

O CAR aparece pela primeira vez no Brasil em 2012, com a aprovação do novo Código Florestal. Segundo o Ministério de Meio Ambiente, em 2016 já era considerado o maior banco de dados de base territorial do mundo[6].

Na redação original do parágrafo 3º do artigo 29 da Lei 12.651/2012, não havia uma data específica de início ou final para registro no CAR, verbis: “A inscrição no CAR será obrigatória para todas as propriedades e posses rurais, devendo ser requerida no prazo de 1 (um) ano contado da sua implantação, prorrogável, uma única vez, por igual período por ato do Chefe do Poder Executivo”.

Embora a lei tenha autorizado uma única prorrogação, elas foram algumas. Mas o ponto central por ora reside no estabelecimento do termo inicial do prazo para inscrição dos imóveis rurais no CAR. Nesse aspecto, o Decreto 7.830/2012 dispôs sobre o CAR, ocasião em que afirmou, no artigo 21, que ato do Ministério de Meio Ambiente estabeleceria a data a partir da qual o CAR seria considerado implantado.

Em 6/5/2014, o Ministério de Meio Ambiente publicou a Instrução Normativa 2, que tratou dos procedimentos para a integração, execução e compatibilização do Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) e definiu procedimentos gerais para o CAR. O artigo 64 da instrução foi claro no seguinte sentido: “Em atenção ao disposto no § 3º do art. 29, da Lei nº 12.651, de 2012, e no art. 21 do Decreto nº 7.830, de 2012, o CAR considera-se implantado na data de publicação desta Instrução Normativa”.

Logo, em maio de 2015, encerrou-se o prazo estabelecido pelo Código Florestal para que todos os imóveis rurais estivessem inseridos no CAR. Todavia, em 4/5/2015, a ministra do Meio Ambiente prorrogou por um ano esse prazo, o que fez pela Portaria 100/2015.

Findo esse período, não era mais possível nova prorrogação, já que a Lei 12.651/2012 havia permitido apenas uma única vez. A saída do governo foi editar uma medida provisória concedendo mais um ano para a inscrição[7].

O diferencial desse ato do presidente da República está no fato de que a prorrogação alcançou tão somente as pequenas propriedades ou posses rurais familiares, ou seja, aquelas com até quatro módulos fiscais que desenvolvam atividades agrossilvipastoris, bem como as terras indígenas e as demais áreas de povos e comunidades tradicionais que façam uso coletivo do seu território.

Na exposição de motivos da MP, foi dada ênfase à limitação do ato de renovação do prazo apenas para os mais necessitados, ficando claro o alcance social da decisão presidencial. Frisou-se ainda que as propriedades atingidas pela ampliação temporal para a inscrição no CAR detêm cerca de 85% do número de imóveis rurais no país, e na data perfaziam apenas 47% dos imóveis cadastrados. De outro lado, a totalidade desse grupo de imóveis representa apenas em torno de 15% da área a ser cadastrada, o que evidenciaria que a medida não afetaria significativamente o montante total a ser recuperado.

A Medida Provisória 724/2016 foi convertida na Lei 13.335, de 14 de setembro de 2016, a qual, por sua vez, disciplinou outro assunto. Antes, porém, o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.295, de 14 de junho de 2016, alterando o parágrafo 3º do artigo 29 do Código Florestal, que passou a contar com a seguinte redação: “A inscrição no CAR será obrigatória para todas as propriedades e posses rurais, devendo ser requerida até 31 de dezembro de 2017, prorrogável por mais 1 (um) ano por ato do Chefe do Poder Executivo”.

Em um artigo, o Congresso estendeu para todos os proprietários e posseiros rurais do Brasil o prazo para a inscrição no CAR e permitiu que o presidente da República renovasse até 31/12/2018 o “prazo final” do registro.

Como a “possibilidade” de mais uma renovação corresponde a “dever” na terra onde o poder econômico e político imperam sobre todos os demais interesses, sobreveio o Decreto 9.257, de 29 de dezembro de 2017, prorrogando até 31 de maio de 2018 o prazo, e no último 30 de maio o Decreto 9.395 dilatando até 31 de dezembro de 2018 o “termo final” para inscrição no CAR.

Um editorial do Estadão, sob o título “Segurança jurídica e ambiental”, tratou recentemente do julgamento das ações de constitucionalidade e inconstitucionalidade que tramitam no STF acerca do Código Florestal de 2012. Sem adentrar no mérito da opinião do periódico, ao abordar a importância do CAR e do Programa de Regularização Ambiental (PRA), ele sintetiza algo relevante no contexto da legislação florestal em vigor:

A ordem na ocupação do campo, por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), e a preservação do meio ambiente e da biodiversidade, garantida pela execução, no âmbito dos Estados, do Programa de Regularização Ambiental (PRA), dois grandes avanços trazidos pela Lei 12.651/12, estão entre os mais relevantes interesses nacionais[8].

O novo Código Florestal nos impôs uma série de regras completamente contrárias à proteção florestal brasileira, consistindo em um evidente retrocesso social, infelizmente não reconhecido pelo STF.

Os benefícios aos produtores rurais aliados a prejuízos ambientais são incontáveis. Para exemplificar, citaremos quatro deles: a possibilidade de extinção da punibilidade criminal de que trata o artigo 60 se atendidas as obrigações assumidas no termo de compromisso do PRA, de tal modo que o transgressor da lei fique impune; a diminuição da reserva legal para nada ou quase nada em áreas consolidadas, nos termos do artigo 67; a possibilidade de redução das APPs de 30 para 5 metros quando adotado o sistema da “escadinha” (artigo 61-A e parágrafos); e a alteração do ponto de medição da mata ciliar (APP), passando do leito maior do curso de água para a borda da calha do leito regular (artigo 4º, I), o que pode resultar em APP negativa.

Por outro lado, os proprietários ou possuidores de imóveis rurais deveriam assumir algumas obrigações, dentre as quais se destacam a inscrição de seu bem no CAR e a adesão ao PRA, se necessária a regularização da área.

O CAR é um registro público eletrônico autodeclaratório, obrigatório para todos os imóveis rurais, e sua finalidade é integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, formando-se uma base de dados para controle, monitoramento, planejamento e recuperação da área nos limites das normas ambientais incidentes.

Trata-se de um relevante instrumento inserido pela Lei 12.651/2012, que possibilitará uma gestão mais eficiente das terras localizadas em áreas rurais do país. Para tanto, é essencial que seja primeiramente implantado e, em um segundo momento, que sejam adotadas medidas de gestão a fim de que a base de dados seja efetivamente aproveitada.

Como ele é autodeclaratório, à autoridade pública competente para administrar o CAR incumbirá a tarefa de conferir paulatinamente a veracidade do que nele constar, adotando severas medidas frente àquelas situações em que constatada a prestação de informações falsas. Se necessário, o órgão ambiental deverá fazer vistoria de campo, conforme expressamente define o parágrafo 3º do artigo 7º do Decreto 7.830/2012.

Várias questões essenciais previstas no Código Florestal dependem da implantação do CAR. A inscrição nele é condição obrigatória para adesão ao PRA (artigo 11 do Decreto 7.830/2012). Consequentemente, enquanto não esgotado o prazo para cadastro no CAR, nem sequer se inicia o prazo para apresentação do PRA.

Na planta georreferenciada que estabelecerá o perímetro do imóvel, o CAR contemplará a informação dos remanescentes de vegetação nativa, das APPs, das áreas de uso restrito, das áreas consolidadas e da localização das reservas legais (artigo 5º do Decreto 7.830/2012). Então, no mapa digital do CAR estarão inseridos os ativos e os passivos ambientais.

Para demonstrar o enlace do CAR com a implantação efetiva de diversos instrumentos e institutos de preservação florestal no Brasil, anotamos exemplificativamente que a localização da reserva legal estará presente no CAR. Por sua vez, o artigo 14 do Código Florestal estabelece que a localização da área de reserva legal deverá considerar, dentre outros, o critério da formação de corredores ecológicos com outra reserva legal, APP, unidade de conservação ou outra área legalmente protegida.

Logo, se um vizinho colocou sua reserva legal distante daquela que o lindeiro estabeleceu na divisa entre as propriedades, o órgão ambiental poderá/deverá desaprovar a localização da reserva legal inserida no CAR. A análise técnica levará em conta a importância de manter a proximidade das reservas legais para a formação de espaços de abrigamento adequado da fauna.

Mas nada disso poderá ser exigido por ora, na medida em que o prazo final para a inscrição no CAR segue em aberto. E quem garante que, em dezembro de 2018, no apagar das luzes deste turbulento ano e em final de governo, não será editado mais um ato normativo estendendo o prazo por mais um ano, prorrogável?

Aliás, pelo que se vê, os grandes latifundiários aproveitaram a motivação para a renovação do prazo do CAR instituída pela MP 724/2016 e passaram a se beneficiar disso. Quanto a eles, não se pode alegar que faltaram condições financeiras ou técnicas para a inclusão de suas propriedades no CAR. Logo, o retardamento na implantação definitiva do sistema não acontece por interesse dos mais necessitados. Não são eles que dominam as bancadas parlamentares e têm influência nos meandros do poder da capital federal.

Enfim, muitos sustentaram quando do julgamento das ações que questionavam a constitucionalidade do Código Florestal perante o STF que era necessária a confirmação do código para garantir segurança jurídica.

Porém, é hora de questionar: que segurança existe na área ambiental se os prazos para o cumprimento de obrigações em prol do meio ambiente não são levados a sério, tanto que muitos já nem os cumprem por saberem de antemão que, ao final, eles serão reabertos? Toda essa sistemática só tende a produzir mais “espertos” no Brasil, demonstrando aos que cumprem as leis que nada ganham com isso, ou, ao contrário, que muitas vezes saem perdendo, como se vê na área ambiental, em que leis acabam por consolidar as ilegalidades e anistiar os transgressores do sistema normativo.

[1] Decreto 9.395, de 30 de maio de 2018.
[2] Segundo matéria da BBC Brasil, os ruralistas comandam 46% da Câmara dos Deputados e mais de um quarto do Senado (http://www.bbc.com/portuguese/brasil-42702042, acesso em 5.jun.2018).
[3] Lei 13.465/2017.
[4] http://www.cnabrasil.org.br/noticias/governo-atende-cna-e-prorroga-prazo-de-adesao-ao-car. Acesso em 7.jun.2018.
[5] https://www.conjur.com.br/2016-mai-09/governo-prorroga-cadastro-ambiental-rural-pequenos-produtores. Acesso em 5.jun.2018.
[6] http://www.oeco.org.br/noticias/senado-aprova-prorrogacao-do-car-para-todos-os-proprietarios-rurais/. Acesso em 5.jun.2018.
[7] Medida Provisória 724/2016.
[8] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,seguranca-juridica-e-ambiental,70002005320. Acesso em 7.jun.2018.

Fonte: Conjur, Eduardo Coral Viegas