Choveu durante a noite, mas já havia pegadas no chão. O fino pó de neve havia coberto o perímetro de pinheiros e salgueiros e já estava começando a derreter nos galhos mais altos quando comecei minha expedição. Em frente a mim estava uma bacia desnuda e congelada de cordilheiras com neve e declives suaves.
O barulho da cidade havia sumido e, quando dei meus primeiros passos em direção ao planalto, seguindo o contorno da terra, foi substituído pelo ritmo da neve rangendo sob os meus passos. Foi só o que ouvi pelos próximos 10 minutos. O gemido abafado de neve contra areia. Depois disso, alcancei meu destino. Eu havia cruzado o que muitos acreditam ser o menor deserto do mundo.
Essa foi minha introdução a um dos fenômenos geológicos mais bizarros da América do Norte, o deserto Carcross, em Yukon, o mais ocidental e o menor dos três territórios federais do Canadá. À primeira vista, não parecia grande coisa. É difícil reconhecê-lo como um deserto: ele tem apenas 600 metros de largura, pode ser medido na contagem de passos de uma extremidade a outra, estava coberto de neve e a areia só ficava aparente entre rachaduras na crosta de gelo e neve derretidos. Mas uma inspeção mais minuciosa revelou um reino em miniatura de areias finas, um raro habitat para plantas, animais de casco e espécies de insetos que podem ser novas para a ciência.
Paralelo 60
Quando cheguei ao portão à beira da estrada com os dizeres “Carcross Desert”, me pareceu estar passando por um momento surreal. Eu havia visto dunas de areia em Omã, Marrocos, Namíbia, Chile, Arábia Saudita, Índia, Mongólia e Egito, mas há poucos lugares nessa latitude norte – no 60º grau – do planeta onde você encontrará a palavra ‘deserto’ estampada numa placa dando nome a um local. Desertos correspondem a um terço da superfície da Terra, mas o que está próximo ao vilarejo de Carcross é totalmente diferente do cenário oferecido pelo Saara ou pelo Rub’ Al Khali, na Península Arábica.
Comparado a estes, o Carcross é uma caixinha de areia. É insignificante. Mede apenas 2,59 km quadrados, é um dos poucos sistemas de dunas da América do Norte.
“O deserto é um enigma há muito tempo para nós locais”, diz Keith Wolfe Smarch, membro da população indígena que mora em Carcross, com 301 habitantes. O entalhador de madeira que vê as dunas a partir de sua oficina, usa a vista como inspiração para seu trabalho.
“Há muita vegetação rara na beira do rio Carcross, mas um dia o deserto irá engoli-la. Ele determina a forma de nossa cidade.”
Segundo Wolfe Smarch, a cidadezinha de Carcross foi fundada há 4.500 anos no ponto em que os lagos Bennett e Nares se encontram. Esse acidente geográfico criou uma ponte natural de terra que, por sua vez, se tornou uma passagem improvisada durante migrações. “Grupos enormes de caribous (renas) cruzavam esse caminho”, diz Wolfe Smarch. “Como povos nômades, tanto a tribo tlingit quanto a tagish acampavam ao lado do rio Natasaheen para caçar – então o nome da cidade vem de um mistura de caribou com crossing [‘atravessar’ em inglês]”.
Conforme Carcross foi crescendo, o número de visitas ao deserto único de Yukon foi aumentando.
Originalmente chamada de Naataase Heen (que literalmente significa ‘água descendo por caminhos estreitos’), Carcross era o tipo de cidade que passa batido. Há igrejas pintadas de branco, um armazém que vende os mais variados artigos e cabanas enfeitadas com machados enferrujados e alces, restos da era Klondike, quando mineiros eram transportados de trem para as minas de ouro perto da cidade de Dawson e Atlin. Mas hoje a história está mudando.
Paraíso esportivo
Amantes de vários esportes aproveitam das areias do deserto todo final de semana. No verão, dunas expostas são usadas como pistas por quadriciclos, sandboard e caminhadas, além de abrigarem ovelhas, cabras e veados. Conforme a neve cai, o deserto se torna algo completamente diferente, as dunas são tomadas por snowboarders, esquis e tobogãs.
“Eu trago minhas crianças para descer de tobogã aqui, elas amam”, diz Jennifer Glyka, uma mulher que encontrei no restaurante da cidade. “Eu cresci em Yukon, mas ainda acho estranho descer uma duna de areia coberta de neve. Eu nunca havia ouvido falar desse lugar quando era criança.”
Mas o deserto Carcross leva uma vida dupla. Ele também é o território de cientistas canadenses e geólogos que querem desvendar seus segredos, descobrir como ele surgiu.
Um desses especialistas é a geóloga Panya Lipovsky do Yukon Geological Survey. Ela tornou sua missão pesquisar a história do deserto e entende suas contradições melhor que a maioria das pessoas. “Eu estudo sujeira”, disse ela, aliás, quando nos encontramos no prédio do governo de Yukon em Whitehorse. “Eu também estudo desabamentos e depósitos de superfícies. E isso inclui desertos”.
O deserto arrasou tudo
De acordo com Lipovsky, a gênese única do deserto de Carcross é o resultado de 10 mil anos de ação natural. O território de Yukon foi coberto de gelo na era conhecida como glaciação Wisconsiana McConnell, explica ela, há entre 11 mil e 24 mil anos atrás. “Carcross tinha 1 km de gelo de cobertura”, diz ela. “Você simplesmente não consegue imaginar.”
Conforme o gelo começou a derreter, pedaços começaram a vagar para o sul, deixando a parte mais ao sul de Yukon com vales cheios de frestas. Lipovsky compara esses vales a canteiros de demolição, depois que “o gelo arrasou tudo”. Com o tempo, enormes lagos foram formados nessas frestas e, quando o gelo condensava, o nível das águas caía, criando praias e costas de areia entre os vales. Depois, a areia foi sugada por ventos fortes e empurrada para noroeste, dando origem a um dos mais inusitados desertos do mundo.
“Há uma ideia errada de que é o resultado de um lago que secou, mas isso não é verdade”, diz Lipovsky. “Ventos fortes continuam a assolar o lago Bennett hoje, soprando grãos de areia fina nas dunas. Então a combinação de vento, água e era do Gelo criaram uma gama distinta de circunstâncias.”
Outra inconsistência é a questão da classificação. Para ser categorizado, cientificamente, como um deserto árido, é preciso ter menos de 250 mm de precipitação anual; desertos semiáridos têm entre 250 mm e 500 mm. Essa é a categoria na qual o deserto Carcross se encaixa, apesar da sombra chuvosa das montanhas que o cercam.
“Você certamente pode chamá-lo de deserto úmido”, diz Lipovsky. “Mas com tanta areia e sedimentos soprados para cá, a vegetação não tem chance de se regenerar. É um sistema realmente dinâmico.”
Apesar de tantas contradições, o que não é debatido é o espanto e a incredulidade que o deserto inspira. Conforme você entra nele, o mistério se aprofunda, com silhuetas fantasmagóricas de areia. E há sempre surpresas à espreita. Plantas como junco e tremoceiro florescem no verão. Moscas e mariposas cruzam os céus. Cinco novas espécimes de gnorimoschema, uma espécie da família das mariposas, foram descobertas. E a probabilidade é que existam mais.
Toda essa beleza em um dos ambientes mais complexos e impiedosos do planeta é difícil de imaginar. Este não é o Saara, o Gobi ou o Kalahari. Mas cada passo em suas dunas faz você perceber que este deserto tem seu próprio mundo de enigmas dentro de si.
Fonte: BBC