Uma onça-pintada preguicenta — animal que costuma se dissimular na mata — exibe-se sobre dutos da Petrobras, indiferente aos olhares a sua volta, perto de uma planta industrial no coração da Amazônia. A visita faz parte da rotina na Província Petrolífera de Urucu, que em 2018 completa 30 anos. São torres metálicas, tanques e esferas gigantes no meio da selva para produzir, por dia, 38 mil barris de petróleo, 13 milhões de metros cúbicos de gás natural e o equivalente a 115 mil botijões de 13 quilos de gás de cozinha (GLP). Uma superestrutura que, apesar de ser a maior produtora terrestre de óleo no país, desaparece na imensidão verde que a cerca, impondo à operação, essencial à Região Norte e a parte do Nordeste, desafios descomunais.
A começar pela odisseia logística para manter as engrenagens desse confim do Brasil, nas entranhas do estado do Amazonas. Em linha reta, as cidades mais próximas são Carauari e Tefé, a 170 e 180 quilômetros de distância, respectivamente. Do centro do município de Coari, onde o território está localizado, são outros 285 quilômetros. E da capital, Manaus, 650 quilômetros. Por recomendação de cientistas na época da construção do polo, não há estradas que liguem Urucu a lugar algum, com o intuito de não estimular o adensamento populacional da região. As únicas que existem estão dentro do complexo da Petrobras e dão acesso a alojamentos, portos e parte dos 65 poços de produção.
Para chegar a esse rincão, todo trabalhador — são cerca de 1.070 simultaneamente, em regime de escalas — aterrissa num avião turboélice, com capacidade para 47 passageiros, em voos diários de aproximadamente uma hora e meia de Manaus, ou três vezes por semana de Carauari. O restante, da alface das refeições a caminhões, válvulas e sondas, vai de barco. A viagem leva de sete a dez dias pelo Rio Solimões e, a partir de Coari, pelo sinuoso Rio Urucu, que se torna estreito e raso no período de vazante na Amazônia. Um complicador, sobretudo de agosto a outubro, que exige mão de obra local qualificada para não deixar encalhar as balsas, com calado de apenas 60 centímetros, nessa época do ano.
“É como navegar numa piscina. Uma pessoa baixa consegue atravessar o rio sem ficar submersa, o que aumenta o isolamento do lugar. Não estamos numa plataforma marítima. Mas o mar em nosso entorno é verde. Não é à toa que, nos dias de trabalho em Urucu, dizemos estar embarcados. Hoje, brinco que o lugar parece um hotel cinco estrelas. No início, no entanto, dormíamos em balsas, andávamos de trator por caminhos de lama, não havia telefone, nada”, contou o paraense Marques Cavalcante, gerente de suporte operacional da Petrobras que aportou na província antes mesmo do início da exploração, há 31 anos.
Grande parte da capital do Amazonas — cidade de mais de 2 milhões de habitantes, a sétima mais populosa do Brasil — tampouco tem a dimensão de quão crucial esse interior se tornou para sua sobrevivência. Desde 2009, há 663 quilômetros de gasoduto que cortam a selva, de Urucu até a Refinaria de Manaus (Reman). Das quatro Unidades de Processamento de Gás Natural existentes na floresta, na segunda semana de agosto partiram 5 milhões de metros cúbicos de gás, quase 90% para a geração de energia nas termoelétricas da capital.
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O resto é levado para toda a Região Norte, o Maranhão, o Piauí e parte do Ceará. Também há dutos que conduzem o petróleo e o GLP até Coari, de onde são transportados por via fluvial a outras áreas.
A petroleira russa Rosneft também faz prospecções na região de Carauari e Tefé, depois de ter obtido os direitos de exploração de 16 blocos na Bacia do Solimões que pertenciam à PetroRio, antiga HRT. A questão é que adquirir expertise na selva pode consumir anos a fio. Em Urucu, os poços se espalham por uma área de 350 quilômetros quadrados, maior que 44% dos municípios brasileiros. E alguns são remotos, ou seja, não têm acesso por estrada, às vezes a mais de 50 quilômetros da base. Os helicópteros são usados para carregar de tudo até lá, por içamento com cabos. O transporte de uma única sonda de perfuração, desmontada, pode requerer até 500 viagens.
As onças não são os únicos animais a frequentar as instalações industriais. Em 2014, um avião colidiu com uma anta na decolagem da pista de Urucu. Quando a área do aeroporto foi cercada, vários homens tiveram de fazer força para carregar sucuris que habitavam o matagal. Recentemente, durante uma inspeção numa torre de telecomunicações, os técnicos encontraram outra cobra no alto da estrutura. Já os morcegos obrigaram a empresa a fazer adaptações na linha de produção de energia, que já parou por causa de um bicho-preguiça.
A diversidade de aves é outro cartão de visitas. O canto dos japiins, pássaro amarelo e preto que é nome de um bairro de Manaus, dá as boas-vindas a quem desembarca na província. Jacarés e veados volta e meia dão o ar da graça. E é esperado que eles apareçam, pois são indicadores de qualidade da gestão ambiental na base. Num santuário como esse, aliás, nada pode sair errado, sob pena de um enorme prejuízo à Floresta Amazônica e, por consequência, à Petrobras.
Para mitigar os impactos da atividade na selva, se a supressão de trechos da mata é inevitável, a empresa é obrigada a reflorestar áreas como jazidas e poços desativados. Numa dessas clareiras, está sendo criado um bosque de árvores protegidas, com seringueiras e copaíbas. Para a missão, a base conta com um viveiro de plantas nativas, com 55 mil mudas, um bromeliário e um orquidário, com uma das espécies ainda não identificada pelos botânicos.
Outro ponto sensível, num lugar que opera materiais altamente poluentes, é o lixo e o esgoto. Só no último mês de julho, foram geradas 150 toneladas de resíduos. Sem sua própria Central de Tratamento de Resíduos, essa cidade perdida se inviabilizaria num ambiente tão protegido. Na instalação, os restos de alimentos — uma média de 900 quilos por dia — são misturados com a madeira de pallets descartados e transformados em 1 tonelada diária de adubo, usado no reflorestamento.
A cada sete dias uma embarcação deixa Manaus com alimentos em contêineres, totalizando 100 toneladas de comida por mês — nenhum alimento é produzido ou recolhido da mata na província, onde também é proibido caçar e pescar. Numa semana comum, o cardápio tem sempre opções de carne, arroz, feijão, legumes, frutas e, às vezes, iguarias do Norte, como suco de cupuaçu, vatapá amazonense e farofa com farinha do Uarini, mais grossa e crocante que a tradicional.
O que não é preciso trazer de fora é produzido na base de operações, como o calçamento de vias e a energia elétrica, suficiente para abastecer uma cidade de 50 mil habitantes e que serve os processos de produção e os alojamentos de Urucu. O principal, o Vitória Régia, acomoda 980 pessoas em quartos equipados com ar-condicionado para enfrentar o calor local.
À noite, o lugar tem ares de vilarejo do interior. Os pátios fazem as vezes das pracinhas, onde as pessoas se encontram para bater papo, caminhar e, às vezes, comandar uma roda de samba, um forró ou carimbó. Cercado pela mata, pode parecer também um hotel de selva — com menos luxo do que os lodges de Manaus ou Anavilhanas, claro. Há dois restaurantes, área de jogos, academia de ginástica, cabines de telefone e auditório para palestras e cerimônias religiosas. E ainda quatro salas de TV, uma delas feminina, onde as mulheres têm prioridade na escolha da programação. Uma novidade num ambiente majoritariamente masculino.
As mulheres somam apenas 10% dos trabalhadores de Urucu. E só chegam a esse percentual porque muitas delas estão em atividades como limpeza e hotelaria. Envolvidas na produção e na gestão, elas são poucas, mas dispostas a mudar esse quadro.
“Somos minoria, porém fortes. Derrubamos os outros 900”, disse Roberta Viana. Oriunda de Quixadá, no sertão do Ceará, ela ocupa atualmente um dos mais altos cargos de Urucu. Outra nordestina, Carolina da Silva, do Recife, Pernambuco, comanda uma equipe de homens no centro de operações do polo, onde se monitora toda a província com dados de câmeras e sensores que detectam qualquer sinal de risco à operação. E, pela primeira vez em três décadas, há oito meses Urucu tem uma “prefeita”, Selma Fontes, de Aracaju, capital de Sergipe.
De fala mansa, mas certeira, seu cargo oficial é gerente de base, num regime de 14 dias em Urucu e 21 em casa. Carolina da Silva revelou que, quando Fontes está prestes a chegar, todos tratam de pôr a casa na mais perfeita ordem. “Não é linha-dura, mas justa”, dizem os colegas. Em campo, o rádio é companheiro inseparável da sergipana, solicitada para resolver todo tipo de demanda, dos aspectos da produção à convivência entre os trabalhadores. Acorda assim que o sol surge no horizonte — o café da manhã em Urucu é servido das 6 horas às 7 horas — e só para de noite, numa jornada de trabalho de pelo menos 14 horas.
“Preciso manter a cidade funcionando. É cansativo, mas não tem rotina. A parte mais fácil é trazer as pessoas para Urucu, o que já é bastante difícil. Temos o petróleo com a produção mais barata da Petrobras, com muito rigor no que se faz e se gasta. As pessoas e o ambiente ajudam. Fico muito surpreendida com o fato de ser um local de confinamento onde o nível de animosidade é muito baixo. Talvez porque estejamos na selva, com mais espaço que nas plataformas.”
Além de impor restrições naturais a seus “moradores”, Urucu tem regras rígidas. Assim que descem do avião, por exemplo, os celulares dos trabalhadores são lacrados, por motivo de segurança da informação, já que imagens da base só podem ser feitas com autorização. O uso da internet fica limitado a notebooks — que em tempos atuais também são os porta-retratos para matar a saudade da família — e a uma sala de autodesenvolvimento, novidade implementada por Fontes, onde há computadores para acesso a redes sociais, sites de notícias e cursos à distância.
Os cuidados com a segurança do trabalho também são rígidos — um acidente grave pode significar uma superoperação de transferência até Manaus. Para os demais atendimentos, ao lado do Vitória Régia há um ambulatório com uma infraestrutura que a maioria das cidades do interior do Amazonas não tem. São enfermarias, sala de emergência, espaço para pequenas cirurgias, consultórios e salas de isolamento. Urucu é livre, por exemplo, de malária, mas às vezes aparecem casos de trabalhadores que chegam doentes de suas casas.
Apesar de distantes, as cidades do entorno, no centro do Amazonas, também dependem da Província. De Carauari, com seus aproximadamente 28.300 habitantes, vêm 750 trabalhadores. Já Coari recebeu, no ano passado, R$ 52 milhões em royalties do petróleo e gás produzidos em seu território. Uma riqueza que ainda não se traduziu numa significativa melhoria de qualidade de vida no município, com cerca de 84 mil moradores numa área maior que o estado do Rio de Janeiro.
Com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) — 0,586, numa escala de 0 a 1 —, Coari vive assombrada por escândalos políticos e pelo tráfico. É uma realidade que pouco lembra a de Urucu, a província instalada em seu território. A cidade virou ponto central da passagem de armas e drogas vindas de países como Peru e Colômbia pela rota do Solimões, o que gera ondas de violência. Um dos crimes de maior repercussão aconteceu em setembro de 2017, quando a atleta britânica Emma Kelty, que viajava de caiaque pela Amazônia, foi morta com tiros de espingarda e jogada no Solimões, depois de ser atacada por piratas no rio.
Fonte: RAFAEL GALDO – Época – O Globo