No Cerrado, há muitas espécies de árvores e arbustos com glândulas de açúcar para atrair formigas. Essas glândulas, chamadas nectários extraflorais, produzem gotas de açúcar que as formigas coletam.
“Ao fazê-lo, as formigas acabam patrulhando as folhas da planta contra o ataque de outros insetos, como lagartas, por exemplo. Tudo isso é muito comum. Surpreendente é ver um inseto se aproveitando do mutualismo que existe entre plantas e formigas para predar as formigas. É o que uma pequena mosca carnívora faz”, disse Paulo Sergio Oliveira, professor de Ecologia do Departamento de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A mosca à qual Oliveira se refere pertence à família das drosófilas. Enquanto estudava mutualismos de formigas entre 2008 e 2013, a bióloga Mayra Cadorin Vidal, que foi orientada por Oliveira no mestrado, visitou com colegas uma reserva particular de Cerrado dentro de uma fazenda na região de Itirapina (SP).
No local, eles notaram pequenas larvas de insetos presentes em alguns nectários extraflorais de uma árvore muito comum no Cerrado chamada pau-terra (Qualea grandiflora). As larvas – que se alimentavam de formigas – eram de uma espécie desconhecida de mosca da fruta.
A “larva comedora de formigas”, como chamada pelos pesquisadores, acabou sendo descrita por Vidal em 2015, nos Annals of the Entomological Society of America. Recebeu o nome Rhinoleucophenga myrmecophaga, do grego myrmex (formiga) e phaga (comer), ou seja, comedora de formigas.
Em um novo trabalho publicado em julho na revista Environmental Entomology, Vidal descreve o método empregado pelas larvas de R. myrmecophaga para predar formigas do gênero Camponotus, popularmente conhecidas como formiga-de-cupim ou sarassará.
Os pesquisadores observaram que as fêmeas adultas da mosquinha depositavam ovos isolados ao lado dos nectários, onde as larvas eclodiram mais tarde.
“Começamos a investigar como a presença dessas larvas poderia afetar o mutualismo entre formigas e plantas. A princípio, pensamos que as larvas estavam bloqueando o acesso das formigas ao recurso trocado no mutualismo. No entanto, depois percebemos que as formigas estavam presas nos abrigos das larvas”, disse Vidal, atualmente na Syracuse University, em Nova York.
Aquilo que a bióloga presenciou, e que agora ela descreve, é uma estratégia de predação inédita.
“Essa exploração de um mutualismo de formigas é peculiar, por ser o primeiro caso conhecido de um agente que se aproveita de um recurso oferecido por um parceiro do mutualismo para atrair e comer o outro parceiro”, disse.
O trabalho contou comapoio da FAPESP por meio do Programa BIOTA-FAPESP.
Arapuca para formigas
No Cerrado, nos meses secos de inverno, os galhos do pau-terra ficam inteiramente sem folhas. No verão, quando chove, o pau-terra encontra-se repleto de folhas verdes. É quando as formigas do gênero Camponotus exibem sua relação de mutualismo com as árvores e arbustos de pau-terra.
É apenas durante o verão que a planta oferece a insetos gotas de açúcar produzidas em nectários extraflorais. Em troca, o pau-terra se aproveita da agressividade das legiões de formigas que patrulham seus galhos e ramos e atacam toda e qualquer lagarta, besouro, pulgão ou percevejo que se atreva a comer as folhas da planta.
O que a mosca carnívora fez foi se intrometer nessa relação. Ao longo de sua evolução, as larvas de R. myrmecophaga acabaram se adaptando para fazer uso do mutualismo que existe entre o pau-terra e as formigas, e predá-las.
“Quando a larva eclode do ovo, ela sobe em cima da glândula de açúcar e lá constrói um abrigo onde irá se desenvolver até a fase adulta, quando então terá se transformado em mosca. Ocorre que o abrigo não é apenas o local do desenvolvimento larval, é também uma armadilha para pegar formigas. Lá dentro, a larva está sempre à espreita”, disse Vidal.
A pesquisadora conta que o abrigo da larva tem um buraco por onde ela coloca uma gotícula do néctar da glândula da planta. É a isca. A larva fica posicionada bem no meio do abrigo, que é extremamente pegajoso.
Quando as formigas vêm coletar o néctar, ficam grudadas. Ao se debater para tentar escapar, as formigas acabam morrendo de exaustão. Então, a larva utiliza dois ganchos que possui na boca para abrir o exoesqueleto da formiga e devorá-la.
“A larva come a formiga por dentro. Encontramos diversos exemplos de exoesqueletos vazios que permaneciam grudados aos abrigos das larvas. Em alguns poucos casos, as larvas haviam devorado também vespas, besouros e moscas”, disse Vidal.
A bióloga conta que se trata de uma infestação muito comum no Cerrado e que 85% das plantas observadas no estudo estavam infectadas com larvas de R. myrmecophaga. Cada planta tinha em média cinco larvas.
Oliveira destaca que se trata de um caso raro. “Muito poucos bichos são adaptados para comer formigas, que são agressivas. Elas ferroam, esguicham ácido e são insetos sociais. Onde há uma, sempre existem muitas outras. E todas elas irão se unir para combater um inimigo comum, até matá-lo e recortá-lo para servir de alimento dentro do formigueiro”, disse.
Em outro estudo, publicado em 2016 na Ecology , Vidal analisou o efeito da presença de R. myrmecophaga nas árvores de pau-terra. Ela observou que as árvores nas quais as formigas gastavam menos tempo eram aquelas que sofriam maior dano, pois eram as menos protegidas contra herbívoros.
Vidal suspeita que possam existir outros exemplos desconhecidos dessa forma de predação de formigas em plantas do Cerrado.
“Como o Cerrado é rico em formigas e as plantas que contêm glândulas de açúcar são abundantes, as formigas visitam constantemente essas plantas para se alimentar de suas secreções. É possível que outros comedores de formigas especializados ainda venham a ser descobertos”, disse.
O artigo Natural History of a Sit-and-Wait Dipteran Predator That Uses Extrafloral Nectar as Prey Attractant, de Mayra C. Vidal, Sebastián F. Sendoya, Lydia F. Yamaguchi, Massuo J. Kato, Rafael S. Oliveira e Paulo S. Oliveira (doi: https://doi.org/10.1093/ee/nvy097), está publicado em: https://academic.oup.com/ee/advance-article/doi/10.1093/ee/nvy097/5050820.
Fonte: FAPESP