Não havia sinalização no deserto, mas Faraj Mahmoud sabia o caminho. Guia veterano da montanha, originário da tribo Jebeleya, ele me acompanhava – em um saltitante 4×4 – pelo Deserto Azul, ao sul do Sinai, no Egito. Fomos chacoalhando pela planície que ganhou esse nome por conta de suas rochas da cor do céu, agora desbotadas, pintadas pelo artista belga Jean Verame, em 1980, para marcar o tratado de paz firmado no ano anterior entre Egito e Israel.
Eu faria parte de um grupo que havia se formado oito dias antes na costa de Nuweiba e cruzado as terras de Tarabin e Muzeina, duas tribos beduínas fundadoras da Trilha do Sinai – a primeira caminhada de longa distância do Egito. Eu começaria por um trecho de 50 quilômetros, guiado por Jebeleya, até o clímax do “Telhado do Egito”, que abrange os picos mais emblemáticos da Península do Sinai e o Mosteiro de Santa Catarina, patrimônio da Unesco.
Depois de uma espera felizmente curta sob o ardente sol do fim da manhã, as silhuetas difusas dos andarilhos surgiram como uma miragem no horizonte.
A trilha do Sinai foi apontada como uma das novas melhores caminhadas do mundo pela revista Wanderlust e premiada em 2016 como a melhor nova iniciativa turística pela organização britânica British Guild of Travel Writers. Embora existam percursos mais longos e difíceis, nenhum é tão rico em história – nem surgiu de laços tão improváveis.
Por muito tempo, as tribos beduínas acompanharam peregrinos de todos os cantos pelo Sinai, desde muçulmanos rumo à Meca a cristãos para Jerusalém. Cada guia percorria um trecho e entregava os visitantes à tribo da fronteira seguinte. “Daí vieram os carros e aviões, e as pessoas esqueceram esse caminho”, lamentou Mahmoud.
Como não puderam continuar trabalhando como guias, muitos beduínos buscaram emprego na cidade. A Trilha do Sinai, uma fusão de rotas antigas de peregrinação, comércio e contrabando, combate essa migração.
O pico de granito do Monte Sinai é o marco mais icônico da trilha, pois foi onde Moisés recebeu os Dez Mandamentos, segundo o Livro do Êxodo, do Antigo Testamento. Foi também onde, muito tempo depois, Ben Hoffler encontrou Mahmoud. O primeiro era um jovem e determinado geógrafo britânico ansioso por desbravar a região; o segundo, um um montanhista mal-humorado décadas mais velho, assistente de documentário da BBC, que conhecia o Sinai como ninguém.
Sem perceber, a improvável dupla abriria caminho para a criação da Trilha do Sinai.
A história do encontro de 2008 é contada pelos dois como imagens sobrepostas. “Num dia, estou no topo do Monte de Moisés (como também é conhecido o Monte Sinai) esperando o sol nascer”, começa Mahmoud. “Percebo um homem tirando várias fotos e sinto que ele tem algo, como algo perdido. E sinto que posso ajudá-lo”.
Mudança de rumo
Não era algo perdido, e sim achado. Pós-graduado pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, Hoffler trabalhara por um ano no Cairo e, mas decidira mudar de rumo, não atraído pelo caminho de comprar uma casa e formar uma família. Daí entra a epifania do Monte Sinai.
“Assim que eu via o sol nascendo, algo despertava em mim”, contou Hoffler. “Precisava voltar e escalar uma montanha diferente. E toda vez que chegava a um novo cume, via outras três montanhas que queria escalar”.
Naquele dia, o guia de Hoffler parecia não querer fazer muito esforço, por isso Mahmoud respondeu a várias perguntas do inglês sobre a paisagem ao seu redor. Trocaram telefones e passaram a se encontrar para caminhar quando Hoffler vinha do Cairo. Depois Hoffler se mudou para Santa Catarina, cidade egípcia que se formou no entorno do mosteiro de mesmo nome, o que cimentou a amizade entre os dois.
O que era apenas um interesse em montanhas se transformou em fascínio pelos caminhos nômades dos beduínos, e Hoffler passou uma década percorrendo 10 mil quilômetros pela península (o que resultou no livro-guia da região Sinai – The Trekking Guide). Mahmoud fez boa parte do percurso em sua companhia ou indicou conhecidos para orientá-lo. “Não sei bem por que Faraj me ajudou”, confessa Hoffler, com vergonha de perguntar. “Talvez ele tenha achado que éramos parecidos de alguma forma”.
Após a Primavera Árabe, iniciada em 2011, o turismo do Sinai entrou em colapso, o que preocupou a dupla. Mahmoud sentiu que os guias beduínos deveriam se unir para sobreviver. E Hoffler lembrou do sucesso de trilhas de longa distância, como a Trilha da Jordânia, uma rota de 650 quilômetros pela nação árabe. Eles então decidiram reunir esforços em um único percurso, agregando as comunidades em seu entorno.
Mahmoud, um respeitado líder Jebeleya na península, abordou as duas tribos próximas à Trilha do Sinai e selecionou representantes para fazer as coisas andarem. “Ele é o herói desconhecido da Trilha do Sinai”, disse Hoffler, que é cofundador (mas não recebe o crédito) do site da Trilha do Sinai. Mahmoud tem o crédito, mas é reticente sobre seu papel.
Eu tive que pressioná-los a contar a história da fundação da trilha, pois ela não aparece em lugar algum.
A trilha foi inaugurada em 2015, semanas antes de terroristas abaterem um avião russo sobre o Sinai, o que acabou aumentando os problemas já existentes ali (a região ainda figura na lista vermelha da maioria dos governos). Mas os prêmios trouxeram esperança – impulsionada pelos aventureiros do Cairo, que com suas fotos de viagem abriram uma trilha virtual que acabou gerando um tráfego real de andarilhos.
Juntar-me aos 16 excursionistas, que em comum só tinham bolhas nos pés, era desorientador para mim. Mas logo fui absorvido pela paisagem rochosa implacável que começava a também se chocar com meus sapatos. A primeira noite, a 1.670 metros, nos reunimos ao redor de uma fogueira em um vale varrido pelo vento e coberto de estrelas.
A rotina rapidamente foi estabelecida para os três dias seguintes: acordar ao nascer do sol, caminhar por quatro horas ou mais, encolher-se sob as escassas sombras para o almoço – comíamos wraps de queijo feta e salada, enquanto gotas de azeite e suco pingavam sobre as pedras escaldantes – e, em seguida, tirar um cochilo.
Histórias e fogueira
Após várias horas extenuantes de caminhada, nós nos aproximávamos dos camelos que carregavam nosso material de acampamento, jantávamos e ouvíamos histórias ao redor da fogueira contadas pelo carismático guia da tribo Jebeleya, Nasser Mansour. Fechávamos nossas tendas quando ainda eram 20h.
Há 20 anos que Mansour tem mostrado a visitantes o quintal da Jebeleya (seus antepassados chegaram na região no século 6º para proteger o mosteiro). Ao tirar a responsabilidade logística de suas mãos, seu trabalho na trilha ficou bem mais fácil. “Queria que isso tivesse sido feito há dez anos”, disse.
Com a cultura beduína se perdendo, os contos noturnos de Mansour, transmitidos por seus antepassados, pareciam testemunhos. “As pessoas precisam conhecer nossa história”, disse Mansour. “Apenas ver não é suficiente; você tem de ouvir”.
Embora pudesse identificar outras tribos à distância, eles pouco se comunicavam antes da Trilha do Sinai. Agora, correm como um time de revezamento. “Quando trabalhamos juntos, somos mais fortes”, comentou.
“Yalla bina“, Mansour chegou gritando enfadonhamente pela manhã. “Vamos”.
Num almoço, acampamos próximo à Bacia de Elias e nos banhamos em um dos poucos poços da área usando uma lata de azeite de Creta (Grécia). Naquela noite, acima de nossas tendas, minha tocha iluminou um par de olhos. Congelei de horror, mas foi o camelo que me encarou sem entusiasmo com seus longos cílios: a cena não era novidade para ele.
Mas ninguém desdenhou, horas antes, quando três cabras selvagens apareceram no meio trajeto dos 750 torturantes “Passos do Arrependimento”, no final do Monte Sinai, inaugurados por um monge pecador do século 6º. Andávamos na ponta dos pés até que elas fugiram, e logo fomos consolados pelo cume, que formava sobre nós uma sombra em forma de Toblerone.
Caminhando rumo ao Monte Santa Catarina, pegamos uma antiga rota deixada pelos bizantinos – os primeiros patronos do mosteiro – que queriam pagar suas dívidas à santa. A construção supostamente abriga a Sarça Ardente – o arbusto em chamas de onde Deus se revelou a Moisés.
“As pessoas dizem que não há mais lugares como este no mundo”, orgulha-se Mansour. Novamente caminhando pelas ardentes encostas atrás dos camelos, chegamos e nos empilhamos em um estreito cume, o mais alto de todo o Egito.
Uma cabana de tijolos vazia com um telhado de metal semiaberto para as estrelas abrigou nosso último jantar: sopa de lentilhas quente, massa com vegetais e um queijo inesquecível. Depois de uma história da santa sobre cuja montanha nos sentamos (monges encontraram seu corpo após um sonho), uma pessoa do grupo perguntou a Mansour se ele tinha um sonho. “Sim”, respondeu, sem elaborar. E finalmente: “De continuar a viver nas montanhas, da mesma forma que hoje”.
E parece que seu sonho se tornará realidade. Três semanas depois, no início de maio, a Trilha do Sinai foi expandida de 220 para 550 quilômetros, com outras cinco tribos beduínas se unindo à cooperativa. Os fundadores quiseram ampliar os benefícios do projeto e fazer justiça aos lendários pontos turísticos do Sinai. Ao reviver a chamada Aliança Towarah, uma milenar união de oito tribos ao sul do Sinai, a trilha abriu uma rota de viagem que não era percorrida há mais de um século, segundo Hoffler. E reforçou a herança beduína, mudando a perspectiva negativa que o visitante tinha da região.
Nossa caminhada seria a última na trilha original; agora, é possível cruzar em 42 dias toda a Península do Sinai, do Golfo de Aqaba a Suez. O primeiro grupo organizado para percorrer a nova rota – que é a opção mais viável para quem viaja sozinho – está programado para a próxima sexta-feira (26/10). O programa terá duração de 24 dias, com a opção de começar na metade da rota. Já a caminhada da trilha completa está prevista para 2019.
“As pessoas parecem diferentes quando chegam do deserto”, Hoffler tinha me dito atentamente, e aquela romântica proposição se instalou na minha cabeça. Agora, como um eco, ouço Mahmoud: “Para algumas pessoas, o Sinai é como remédio, pode resolver seus problemas”, afirmou. “Quarenta e dois dias no deserto não são fáceis (é mais tempo do que Moisés passou em sua jornada), mas algumas pessoas precisam disso, eu acho”.
Para mim, quatro dias não foi suficiente. Eu voltaria e, na próxima vez, faria a trilha longa.
As opções de percursos
Fora de grupos de caminhada organizados, indivíduos podem caminhar qualquer trecho dos 550km, de um a 42 dias, em qualquer período. Um guia é obrigatório. Estas três caminhadas são as que guardam paisagens mais belas da trilha:
-Jebel Serbal (3-4 dias; 25km)
Com cumes imponentes e depressões profundas, Jebel Serbal tem a reputação de ser a montanha mais bonita do Sinai – e, há muito tempo, foi considerado o verdadeiro Monte Sinai descrito na Bíblia.
-Serabit el-Khadem e El Ramla (4-5 dias; 65km)
Uma trilha acidentada de uma antiga área de mineração de turquesas – que abriga o único templo faraônico remanescente do sul do Sinai – ao maior deserto de areia da região.
-Jebel el-Gunna e Jebel Hazeem (4-5 dias; 75km)
Estes dois planaltos altos e varridos pelo vento são ideais para observação de estrelas e fazem parte de uma terra remota onde, como diz no Êxodo, Moisés e seu povo se perderam por 40 anos.
Fonte: BBC