Uma grande mancha de sangue veio à superfície do mar perto da costa sul das Ilhas Farallon da Califórnia. O biólogo marinho David McGuire apontou para bolinhas amarelas de gordura em meio ao redemoinho vermelho: “é uma foca.” O provável assassino está entre os inúmeros tubarões-brancos que sabe-se que caçam normalmente nas águas da ilha — talvez seja uma das Irmãs, um trio de fêmeas imensas com mais de 5 metros que sempre volta às ilhas, ou Tom Johnson, o mais velho conhecido tubarão-branco, avistado pela primeira vez nas Ilhas Farallon em 1987.
É proibido jogar iscas ou alimentos para atraí-los, então é preciso bastante sorte para observar o comportamento natural de um tubarão-branco caçando na superfície — e mergulhar para chegar mais perto de tubarões vorazes traz grandes riscos.
Contudo, naquele dia, McGuire e o empresário David Lang, ambos Exploradores da National Geographic, estavam otimistas de que conseguiriam, na segurança do barco, uma visão de perto desses arredios predadores que estão no topo da cadeia alimentar. Depois que o capitão pôs o motor em marcha lenta, Lang inclinou-se na lateral e colocou um elegante veículo branco operado remotamente (“remotely operated vehicle” em inglês ou ROV), não muito maior que um notebook bem no meio da água ensanguentada. Ele desenrolou parte de um cabo com cerca de 100 metros, que liga o equipamento a seu piloto e a uma tela de vídeo. Os propulsores do robozinho soltaram zumbidos e borbulhas e o aparelho desapareceu na mancha sangrenta.
As Ilhas Farallon, um arquipélago escarpado de ilhas rochosas a aproximadamente 40 quilômetros da costa de São Francisco, na Califórnia, são um campo de testes ideal para os robôs de Lang. Antigamente os russos caçavam focas nessa região e diversos naufrágios também aconteceram ali, hoje, as ilhas fazem parte de uma área de proteção marinha inacessível ao público. Uma dezena de espécies de aves marinhas e cinco espécies de focas vivem em seus afloramentos rochosos, porém McGuire está animado com o ecossistema abaixo da superfície da água — um mundo dominado pelos tubarões-brancos.
E também extremamente difícil de explorar. McGuire mergulha nos arredores das ilhas há 20 anos e enfrenta diversos desafios além dos tubarões famintos — o mar agitado, rochas que afundam barcos, temperaturas congelantes que limitam o tempo de mergulho. Até práticas rotineiras de conservação, como levantamentos de abalones e ouriços-do-mar, precisam ser feitas em incômodas gaiolas de tubarão. Como resultado, é pequena a quantidade de cientistas que já estudou a vida submarina ao redor das Ilhas Farallon. “Acredito que conheço cada pessoa que já tenha mergulhado aqui mais de uma vez”, conta ele, notando que, para a maioria das pessoas, uma única vez já é considerada o trabalho de uma vida inteira. “Mesmo com equipamentos modernos, é bastante traiçoeiro.”
A água com sangue é outra preocupação totalmente distinta. Ninguém em sã consciência tentaria mergulhar nela por temer que um tubarão o confundisse com a refeição. Ainda assim, é importante observar o comportamento dos tubarões-brancos, uma das espécies-chaves do mar, para decifrar diversos enigmas sobre os animais e seus padrões de migração. Esses estudos, conta McGuire, “revelaram comportamentos nunca esperados.” Por exemplo, os cientistas descobriram só recentemente que os tubarões-brancos mergulham bem mais fundo do que se acreditava — ultrapassando 900 metros — e que eles migram milhares de quilômetros.
Sem uma longa observação, seria impossível tomar decisões esclarecidas de conservação para preservar a espécie, em declínio desde a década de 1970, quando o filme Tubarão vilanizou a espécie em todo o mundo. A União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) considera os tubarões-brancos como ameaçados de extinção, porém afirma que os dados populacionais da espécie precisam de atualização para um retrato mais claro.
Construindo olhos submarinos
Para decifrar os mistérios do tubarão-branco, McGuire precisava de uma nova maneira de visualizá-los.
David Lang e seu amigo Eric Stackpole não tinham em mente tubarões há cinco anos quando fizeram experiências com um robô submersível na garagem de Stackpole. Estavam pensando em ouro. Dizia uma lenda da época da Corrida do Ouro dos Estados Unidos que a Caverna de Hall City, a norte de São Francisco, guarda um tesouro em um poço de águas profundas. Lang, marinheiro autodidata, e Stackpole, engenheiro, queriam construir um ROV acessível que pudesse chegar a locais onde os humanos não conseguiam. “ROVs existem há décadas, porém, até hoje, só foram utilizados pela indústria pesada e pelas forças armadas”, conta Lang. “São grandes, caros e requerem treinamento específico para serem operados.”
Os dois nunca encontraram o tesouro, mas, durante a construção de um robô durável e manobrável o bastante para superar os desafios do mergulho em cavernas, eles criaram uma nova ferramenta para a pesquisa submarina.
Estabelecidos agora em um armazém em Berkeley, o experimento deles se transformou em uma empresa: a OpenROV, que fabrica a última versão do robô de operação remota deles, o Trident. É pequeno o suficiente para levar em uma mochila e capaz de mergulhar a uma profundidade de quase 500 quilômetros ao mesmo tempo em que transmite ao vivo vídeos de alta definição para a superfície. A versão mais barata custa US$ 1,5 mil, uma fração do preço de um grande ROV comercial. Ao contrário de mergulhadores humanos, o Trident pode ficar nas profundezas por horas, sem preocupação com o nível baixo de oxigênio ou os efeitos fisiológicos possivelmente fatais causados quando se volta à superfície rápido demais. Além disso, ele não tem medo de tubarões.
Da mesma maneira que drones baratos e fáceis de operar estão mudando a forma pela qual se exploram paisagens terrestres, Lang e Stackpole acreditam que uma nova categoria de ROVs pode ajudar a transformar a exploração dos oceanos. O mergulho com cilindro, uma tecnologia que Jacques Cousteau aperfeiçoou entre as décadas de 1940 e 1950, mudou o modo pela qual víamos os oceanos, mas continua sendo caro e demandando recursos sofisticados para a exploração submarina. Além disso, traz muitos riscos e fornece acesso fácil apenas nos primeiros 160 quilômetros abaixo da superfície do mar. Consequentemente, muitas comunidades costeiras praticamente desconhecem a vida submarina abaixo dessa profundidade, o que conteve a coleta de dados básicos, a conservação e o manejo de recursos durante anos.
Com o avanço tecnológico de Lang e Stackpole, diversas áreas de proteção marinha ao longo da costa da Califórnia passaram a usar os robôs deles para monitorar uma série de projetos, desde o crescimento de plantas marinhas no Condado de Orange até a recuperação da garoupa-gigante em Catalina. Um cientista da Universidade de Boston que trabalha na Área de Proteção das Ilhas Fênix no sul do Pacífico, uma das regiões submarinas mais intocadas do planeta, está utilizando Tridents para monitorar a saúde dos recifes. O Planetário Adler de Chicago tem um programa que permite que os alunos utilizem Tridents para procurar meteoritos no Lago Michigane, em outro lago em Yukon, uma equipe de exploradores amadores empregou o equipamento para localizar um avião perdido há meio século.
Esses projetos estão prestes a passar por uma expansão. Em 15 de outubro, a National Geographic anunciou que estava se associando com a OpenROV para doar mil Tridents a cientistas, pesquisadores e alunos de todo o mundo com o intuito de promover projetos semelhantes. “Temos a oportunidade de levar essa ferramenta à vanguarda da conservação e dar autonomia àqueles que mais precisam dela”, disse Lang. “Este é um convite para fazer parte de uma nova geração de exploradores.”
Explorando a área de caça
Voltando ao sul das Ilhas Farallon, o sangue estava se dispersando. Um piloto guiou o ROV em uma busca metódica, porém infrutífera, na área de caça atrás de uma carcaça da foca ou algum tubarão. Ao que parece, foi uma refeição bem rápida.
O robô continuou a enviar imagens em tempo real enquanto a equipe explorava a região, inclusive o banco de areia Hurst, uma área muito perigosa para mergulho por ser longe demais da costa para escapar de tubarões. McGuire me contou que, apesar de suas duas décadas de exploração das Ilhas Farallon, ele nunca tinha visto essa parte das águas das ilhas. “Não conheço ninguém que já mergulhou tão longe. Fica-se totalmente exposto”, conta.
Com o passar da tarde, a tela mostrou um mundo nunca visto antes e McGuire ficou extasiado ao observar o ecossistema saudável pela primeira vez. Aqui, viam-se brilhantes anêmonas vermelhas, estrelas-do-mar verdes e vermelho-escuras e ouriços-do-mar roxos espalhados pelo fundo do mar rochoso e peixes de todos os formatos e tamanhos disparando entre pedras enormes e fendas escuras. Em pouco tempo, a equipe avistou uma pálida e enrugada cabeça de enguia-lobo à espreita em sua toca, aguardando a próxima refeição. Ela observou atentamente o ROV.
Durante a tarde, McGuire avistou diversas espécies que não se sabia que existiam tão longe da costa, como o ling, o China rockfish (Sebastes nebulosus) e um greenling (peixe do gênero Hexagrammos) de tamanho extravagante — mas ele não deixou de procurar sinais de tubarões-brancos. As Irmãs e Tom Johnson estavam lá em algum lugar e, como ele agora estava equipado com os olhos submarinos novos de Lang, ele não ia parar de procurá-los.
Fonte: National Geographic