No romance Cem Anos de Solidão, o escritor Gabriel García Márquez descreve Macondo como um lugar tão novo que as coisas careciam até de nome e precisavam ser apontadas com o dedo. Pois no Brasil do começo do século 19, a situação não era muito diferente, pelo menos em relação à exuberante natureza, até então praticamente inexplorada.
Nesse cenário, dois naturalistas bávaros, o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e o zoólogo Johann Baptist von Spix (1781-1826) desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, em 1817, justamente com essa missão: estudar e dar nome às coisas. No caso, a natureza brasileira, cujo inventário estava praticamente inteiro por fazer. E conseguiram. Durante três anos, entre 1817 e 1820, eles percorreram mais de 14 mil quilômetros pelo interior do país naquela que é considerada a maior expedição científica de exploração da fauna brasileira até hoje.
Mais de 22 mil espécies de plantas foram coletadas, estudadas e catalogadas. Segundo especialistas, é quase a metade de todas as espécies da flora brasileira conhecidas até hoje. Os estudos de von Martius e von Spix foram tão completos que devemos a eles a divisão natural do território brasileiro em cinco biomas como conhecemos até hoje: Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga, Cerrado e Pampa.
“Von Martius foi decisivo para a botânica brasileira. Além da maior classificação da flora da nossa história, ele foi o responsável pela primeira organização fitogeográfica do país, que hoje chamamos de biomas e são utilizados, por exemplo, nos estudos do IBGE”, explica o historiador Pablo Diener, que, junto com a também historiadora e esposa, Maria de Fátima Costa, lançaram recentemente o álbum Martius (Editora Capivara, 376 páginas, R$ 195).
No livro, os autores contam em detalhes os preparativos para a expedição de von Martius e Spix, em Munique, no então reino da Baviera, em 1815, onde viviam e eram ligados a instituições dedicadas às ciências naturais, como a Real Academia das Ciências da Baviera e o Real Jardim Botânico de Munique. Na época, governantes europeus tinham interesse em enviar expedições ao Brasil, então Reino Unido de Portugal e Algarves, por razões científicas e políticas.
“Tratava-se de um projeto com o qual o Estado bávaro buscava mostrar-se ao mundo como uma nação culta e fortalecida, através de um grande feito científico: uma expedição”, diz um trecho do livro. “Buscava-se conhecer e explorar um país com famosas riquezas naturais, porém ainda envoltas em auréolas misteriosas, e sobre as quais as informações eram cobiçadas pelas grandes instituições europeias.”
Mas um projeto desses não era fácil de executar e tampouco barato. Apesar de contarem com o apoio do rei da Baviera Maximiliano José I, a viagem só foi concretizada em 1817, ainda assim porque Maximiliano, que mantinha boas relações com a Áustria, conseguiu uma carona para os dois cientistas na comitiva que levaria ao Brasil a arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria, para casar-se com o príncipe Pedro I, futuro imperador do Brasil.
No Brasil, meteram o pé na estrada, ou melhor, pelos rios, estradas e caminhos abertos no meio da mata densa, em uma expedição que duraria os três anos seguintes, coletando, estudando e registrando tudo o que viam pela frente. Eles partiram do Rio de Janeiro e passaram por Estados como São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas.
Esses relatos se transformariam depois no livro Viagem pelo Brasil, onde ambos narram a jornada, que na maior parte do trajeto pode ser considerada uma aventura. Se hoje não é fácil percorrer por terra mais de 14 mil quilômetros Brasil adentro, imagina naquela época em que pouco se conhecia do interior, com instrumentos precários de orientação e sobrevivência e sem muita noção do que iriam encontrar pela frente.
No sertão nordestino, por exemplo, von Martius descreve sua aflição ao atravessar a caatinga seca que, segundo ele, não passava de uma região pobre de águas e de florestas ralas: “cactáceas de formas esquisitas defendem os seus últimos hálitos de vida com espinhos venenosos, bromélias cujas folhas afuniladas às vezes escondem um mísero gole de água turva.” Ele não esconde a aflição ao atravessar “caatingas medonhas” entre os rios Paraguaçu e São Francisco, no começo de 1818, assediado pela falta de água dia e noite.
“Eles aprenderam a viajar viajando, sem uma rota definida e percorrendo espaços que não tinham a menor ideia da existência”, explica Diener. Mas a sensibilidade do naturalista sabia diferenciar, pelo clima e tipo de vegetação, quando adentravam em regiões diferentes, o que ajudou na composição posterior dos “reinos da flora” do país, como von Martius chamou os biomas brasileiros. Enquanto a Mata Atlântica era “exuberante e luxuosa”, a floresta amazônica, por sua imponência, tinha uma aspecto “intimidante”. Em Minas Novas, em Minas Gerais, adentraram em uma região de “árvores baixas, de galhos retorcidos e folhagem larga”, que depois seria conhecida como Cerrado brasileiro.
A rota era traçada de maneira empírica e de acordo com o que iam encontrando pelo meio do caminho onde, além da flora e da fauna, também travaram contato com viajantes, comerciantes, populações locais e, claro, índios, que também foram estudados.
Uma passagem curiosa da comitiva é pelo distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), palco da tragédia ambiental ocorrida após o rompimento de uma barragem de dejetos minerais em 2015. “Seguimos para o arraial de Bento Rodrigues e passamos a noite num rancho, onde, mais uma vez, desfrutamos da beleza da paisagem das montanhas do Caraça”, descreveu von Martius.
De volta a Munique, em 1820, uma das grandes preocupações dos naturalistas bávaros era catalogar e publicar o quanto antes os resultados da viagem ao Brasil. A pressa era justificada: caso demorassem, outros naturalistas europeus, que também viajaram ao Brasil na mesma época, como o francês Auguste de Saint-Hilaire, poderiam comprometer o pioneirismo dos bávaros.
Em 1823, a dupla lançou o primeiro volume de Viagem pelo Brasil. Outros dois volumes seriam lançados em 1828 e 1831, mas sem a colaboração de Spix, já falecido. Pelo trabalho realizado na América do Sul, os dois naturalistas foram agraciados no seu retorno com títulos de nobreza e incorporaram “von” aos seu nomes. Martius, então, tornou-se von Martius.
O mais importante trabalho publicado de von Martius viria depois com a Flora Brasiliensis (Flora Brasileira), uma monumental obra dividida em 15 volumes e 40 partes publicados a partir de 1840 e dedicados à flora brasileira. Parte da edição só tornou-se viável com ajuda financeira do imperador D. Pedro II, com quem von Martius trocava correspondência e era um conhecido entusiasta das ciências naturais. No total, são 22.767 espécies de plantas reunidas, descritas e analisadas.
No decorrer dos anos em que estudou o Brasil, Martius contou com o auxílio de 65 cientistas, de vários países, para a elaboração dos volumes do Flora, cuja última parte foi publicada bem depois da sua morte, em 1906. A troca de informações e correspondência com botânicos e estudiosos, inclusive do Brasil, o ajudaram a compor o mapa dos “reinos de flora”, os biomas brasileiros.
“Os cientistas o ajudaram com informações sobre lugares que ele conheceu pouco ou talvez nem conheceu, como os pampas”, explica Diener. “Ele tinha uma capacidade imensa de reunir e associar informações sobre flora, fauna, clima, hidrografia e outros elementos da natureza para uma classificação natural dos espaços, que são os biomas”, completa o coautor de von Martius.
“O interesse dele era enciclopédico e estrondoso para a época. Quase metade das plantas brasileiras que conhecemos hoje no Brasil foram classificadas por von Martius”, explica Diener. No inventário elaborado pelo naturalista e os cientistas que o ajudaram na elaboração do Flora, Diener destaca os mais diversos tipos de palmeiras. “A palmeira é a planta que define a paisagem do que ele chama de América Tropical”, completa o historiador.
A grandiosidade da obra de von Martius e von Spix não o livraram de polêmicas, principalmente em relação ao que eles consideravam “superioridade” do povo europeu, em especial em comparação com os índios e africanos. Essa pretensa superioridade, na visão deles, era decorrente do atraso em que viviam essas populações em lugares como a América remota e a África. Em diversas cartas enviadas à Europa eles expõem esse eurocentrismo, algo comum entre os viajantes na época, de acordo com os especialistas.
Ao longo das décadas de estudos e relatórios sobre o Brasil, von Martius, segundo os estudiosos da sua obra, foi perdendo aos poucos esse sentimento eurocêntrico, deixando grandes contribuições para o estudo dos índios brasileiros, inclusive classificações de idiomas dos nativos. “A primeira classificação e organização dos grupos de línguas indígenas do Brasil foi feita por Martius”, diz Diener.
“É preciso compreender o contexto da época em que eles viviam para acreditarem nessa suposta superioridade europeia. Era muito comum os cientistas da Europa na época fazerem essa classificação de raças, algo que hoje em dia, claro, não é aceito”, explica o doutor em História da Ciência Waldir Stéfano, professor do curso de Ciências Biológicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Ele compara o legado de von Martius ao de outro naturalista famoso, o britânico Charles Darwin (1809-1882), pai da teoria da evolução e autor do livro A Origem das Espécies. “A importância de Martius para a botânica é a mesma de Darwin para a origem das espécies”, afirma Stéfano.
Fonte: BBC