Uma semana após a tragédia socioambiental que atingiu Brumadinho (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte, o pesadelo causado pelo rompimento da Barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão, operada pela Vale, parece estar longe do fim. Pelo menos 110 pessoas foram mortas e cerca de 240 continuam desaparecidas após serem atingidas pelo mar de lama composta de rejeito de minérios.
Diante da quantidade de desaparecidos, formada por membros da comunidade local e funcionários da Vale, o número de vítimas fatais deve aumentar ainda mais nos próximos dias.
O impacto ambiental do rompimento de sexta-feira (25/01) ainda é imensurável, mas, segundo informou em nota o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os 12 milhões de m³ de lama vazados da barragem destruíram cerca de 270 hectares e inviabilizaram o consumo de água do Rio Paraopeba. “Os rejeitos devastaram 133,27 hectares de vegetação nativa de Mata Atlântica e 70,65 hectares de Áreas de Proteção Permanente (APP) ao longo de cursos d’água afetados pelos rejeitos de mineração”, diz a nota.
Nos últimos dias, foram tomadas medidas como a detenção de funcionários da empresa, multas ambientais, aviso de indenizações às famílias das vítimas e o anúncio de que as barragens de rejeitos de minério do tipo que se rompeu serão descomissionadas, mas legistas e ambientalistas ouvidos pela National Geographic acreditam que, diante da incalculável tragédia socioambiental, será difícil amenizar o trauma e os danos causados pelo desastre.
“O dano ambiental é irreparável e irreversível”, avalia o professor de Direito Ambiental da Universidade de Brasília (UnB) Mamede Said Filho. “Não se pode restaurar por completo um ecossistema afetado, sem falar nas vidas que foram perdidas”, observa. Para o professor, medidas preventivas têm de estar na base dos empreendimentos do setor de mineração, pois, uma vez que desastres assim ocorrem, é impossível reparar os transtornos humanos e ambientais decorrentes deles.
“Como refazer aquilo que a natureza levou milhares de anos para arquitetar?”, questiona Filho, que diz não ter a resposta, mas acha imprescindível que a Vale e o governo trabalhem arduamente para tentar reparar os ecossistemas atingidos pelos rejeitos. “No caso de Brumadinho, isso vai levar décadas, mas é fundamental que essa recomposição in natura seja feita”.
A tragédia de Brumadinho ocorre pouco mais de três anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Naquela ocasião, o vazamento da lama tóxica matou 19 pessoas, deixou milhares de desabrigados, destruiu comunidades e atingiu o Rio Doce, percorrendo 650 km entre Minas Gerais e Espírito Santo até desaguar no mar. A barragem era de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton. Ninguém foi preso por conta do desastre.
Histórico de pagamento de multas é preocupante
O Ibama informou, também por meio de nota, que multou a Vale em R$ 250 milhões — cinco autos de infração no valor de R$ 50 milhões cada. Segundo o órgão, autos foram aplicados com base em artigos do Decreto 6514/2018 e referem-se a: (1) poluição que pode resultar em danos à saúde humana, (2) tornar a área imprópria para a ocupação humana, (3) poluição hídrica que possa interromper o abastecimento de água, (4) morte de espécimes a biodiversidade e (5) lançar rejeitos de mineração em recursos hídricos. Ainda segundo o Ibama, R$ 50 milhões é o valor máximo previsto na Lei de Crimes Ambientais.
O valor das multas, contudo, é controverso. “Me parece ínfimo, diante de todo o prejuízo ambiental e das vidas perdidas”, diz Leonardo Ivo, diretor da Associação dos Observadores do Meio Ambiente de Minas Gerais, responsável pelo observatório Lei.A. “Não me parece um valor adequado e não houve sequer tempo de calcular prejuízo”, completa o ambientalista.
Para Mamede Said Filho, é muito difícil mensurar qual deve ser o ressarcimento pelos danos ambientais, patrimoniais e morais em um caso como esse. “As pessoas nasceram naquelas terras, cresceram e tiravam seu sustento dali — como calcular um valor para ressarcir tamanha perda?”, indaga ele.
A razão das críticas toma por base, também, as multas recebidas pela Samarco após o desastre de Mariana. Reportagem da Folha de S. Paulo mostra que, mais de três anos após o rompimento da barragem de Fundão, menos de 6% das multas ambientais foram pagas pela empresa. A Folha apurou que a Samarco foi multada 56 vezes pelo Ibama e pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais (Semad), no valor de R$ 610 milhões, dos quais apenas 5,6% foram quitados, referentes a uma parte de uma única multa da Semad.
Em nota, o Ibama informou que os autos de infração lavrados contra a Samarco após o rompimento em Mariana totalizam R$ 350,7 milhões, instaurados por 25 processos, além de 73 notificações que visam a adoção de medidas de regularização e correção de conduta. Contudo, a Samarco teria recorrido de todos os processos. “A Samarco apresentou recursos contra todos os autos de infração lavrados pelo Ibama. Apesar de os autos terem sido confirmados, a Samarco insiste em recorrer das decisões administrativas, buscando afastar sua responsabilidade pelo desastre. Nenhuma das multas ambientais foi paga até o momento”, diz o Ibama na nota.
Outra reportagem da Folha de S. Paulo registra ainda que, sem contar com as tragédias de Brumadinho e Mariana, a Vale acumula ações ambientais não pagas no valor de R$ 8 bilhões. Diante disso, é compreensível que o pagamento das multas pela tragédia de Brumadinho causem desconfiança. “Pode aplicar o valor que for em multas, isso não vão ser recolhido. É brincadeira”, analisa José Cláudio Junqueira, professor de avaliação de impacto ambiental da Escola Superior Dom Helder Câmara, em Belo Horizonte. “A multa é muito pequena para o porte dessas empresas, e é inadmissível que elas fiquem recorrendo, em vez que reconhecer o tamanho do desastre que causaram”, avalia Mamede Said Filho.
Funcionários foram detidos
Na terça (29/01), foram presos em Minas Gerais e São Paulo três engenheiros e dois funcionários da Vale que atestaram a segurança da barragem de Brumadinho. Os engenheiros pertencem à empresa TÜV SÜD Brasil, que presta serviço para a mineradora. Segundo noticiou o G1, investigadores do Ministério Públicos apuram se os documentos técnicos que atestam a segurança da barragem podem ter sido fraudados. José Cláudio Junqueira considera as prisões um “bom exemplo”, mas acredita que é necessário apurar mais a fundo quem são os responsáveis pelo rompimento para puni-los rigorosamente.
“O dano ambiental é irreparável e irreversível. Como refazer aquilo que a natureza levou milhares de anos para arquitetar?”
A Vale também anunciou à imprensa que irá oferecer uma de doação de R$ 100 mil para cada uma das famílias das vítimas fatais e não localizadas, “independentemente de serem ou não empregados da Vale”. Segundo a empresa, as doações não se referem às indenizações que virão posteriormente, que serão acordadas com as autoridades.
Em termos comparativos, José Cláudio Junqueira acompanha o caso das vítimas de Mariana e diz que até hoje as famílias não foram indenizadas pelas perdas, e diz não acreditar que o pagamento ocorra nos próximos anos. Em maio de 2018, reportagem da National Geographic mostrou a situação dos sobreviventes do desastre de Mariana e a insatisfação de parte deles com a falta de resolução das questões fundamentais relativas à tragédia.
Na mesma reportagem, a Fundação Renova, entidade criada para tratar da reparação e da compensação dos problemas sociais e ambientais decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, informou que cerca de 20 mil pessoas estavam sendo assistidas pelos auxílios financeiros da entidade e que R$ 3,6 bilhões haviam sido destinados para as ações.
Mineração responsável
A barragem rompida da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, utilizava um método chamado de alteamento a montante, o mesmo da Barragem de Fundão, em Mariana. Neste processo, a empresa utiliza os próprios rejeitos para erguer o barramento para cima, em degraus. Especialistas disseram à National Geographic que essa tecnologia deveria ser banida do setor de mineração no Brasil.
“O tratamento dos rejeitos deve ser feito a seco, com o aproveitamento dos resíduos. A gente precisa da mineração, mas da mineração responsável.”
“Essa técnica é ultrapassada e obsoleta, empregada apenas em países em desenvolvimento. Ela não é segura para a população, mas é a mais barata. Como as empresas visam o lucro, elas acabam dominando, a despeito do alto risco para a população e o meio ambiente”, opinou a antropóloga Andréa Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta/UFMG), em reportagem publicada em 28/01.
Em nota enviada à imprensa na terça (29/01), a Vale anunciou o descomissionamento de todas as barragens da empresa que utilizam o método de alteamento a montante. Segundo o texto, a empresa possui dez barragens deste tipo, sendo que, segundo a empresa, todas estão inativas. O custo da mudança está avaliado em R$ 5 bilhões e o descomissionamento ocorrerá ao longo dos próximos três anos.
José Cláudio Junqueira explica que o descomissionamento de uma barragem é o processo no qual a estrutura é restabelecida no território, tal qual se faz, por exemplo, com um aterro sanitário. Junqueira explica que o processo é extremamente complexo e deve contar com uma série de estudos ambientais, estudos de impacto, consultas públicas e discussão com a população e órgãos ambientais. “O que vai ser feitos com essas áreas? Para onde vão os rejeitos?”, observa o professor, mencionando que existem barragens de rejeitos de até 300 milhões de m² em Minas Gerais. A exemplo de comparação, a de Brumadinho tinha 12 milhões de m².
Para José Cláudio Junqueira, também ex-presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (Feam), não se pode mais admitir o tratamento de rejeitos de minério a úmido. “Daqui para frente, não se constrói nem se amplia mais barragens desse tipo”, torce ele. “O próximo passo é ter um melhor um acompanhamento e descomissionar as que já existem: cerca de 400 em Minas Gerais”, contabiliza.
Ao olhar para o futuro, Leonardo Ivo pondera que, primeiramente, as barragens de rejeito têm de ser banidas, sobretudo as que utilizam o método de alteamento a montante. “O tratamento dos rejeitos deve ser feito a seco, com o aproveitamento dos resíduos”, opina. Além disso, é impensável, para ele, que comunidades estejam instaladas abaixo das barragens, correndo o risco de serem atingidas. “A gente precisa da mineração, mas da mineração responsável”.
Fonte: Gabriel de Sá – National Geographic