Por que falta água no Reino Unido apesar de tanta chuva?

Duas mulheres usando guarda-chuva em Londres

Por que a chuva do Reino Unido não é suficiente para atender a demanda de água do país?

Quando o assunto é escassez de água, o último lugar no planeta em que você poderia pensar é na Inglaterra.

O inverno é frio e úmido. Chove por semanas a fio. Os gramados sofrem com o solo encharcado e os recipientes para coletar água transbordam nos jardins.

A média anual de chuvas no Reino Unido é de 1.200 mm – em comparação com 300 mm no Afeganistão ou meros dois dígitos no Egito.

No entanto, muitas partes do Reino Unido chegam à primavera com seus reservatórios de água da chuva vazios. Isso acontece porque grande parte dos quatro dígitos do índice pluviométrico se deve à chuva nas regiões montanhosas de Escócia, País de Gales e norte da Inglaterra.

No sudeste do país, por exemplo, a precipitação média anual gira em torno de 500 mm ou 600 mm – índice menor que o do Sudão do Sul, ou de Perth, na Austrália Ocidental.

Essa também é a área mais populosa do Reino Unido, com cerca de 18 milhões de habitantes em apenas 19 mil quilômetros quadrados (o tamanho de Nova Jersey, nos EUA), incluindo Londres. E esta região está secando rapidamente.

Preocupação crescente

No ano de 2018, foram registrados seis meses consecutivos de chuva abaixo da média na Inglaterra, deixando os níveis de muitos reservatórios perigosamente baixos. E não foi um acontecimento isolado. Em 2017, o país viveu os 10 meses mais secos dos últimos 100 anos.

O plano mais recente do governo para captação de água mostra que 28% dos aquíferos subterrâneos na Inglaterra, e até 18% dos rios e reservatórios, são captados de forma não sustentável. Apenas 17% dos rios do país são considerados com “boa saúde ecológica”.

No entanto, grande parte da população permanece indiferente ao problema. A maioria (55%) da água doce no Reino Unido é captada para uso doméstico, sendo apenas 1% destinada à agricultura.

Homem com bicicleta em rua alagada

A maior parte da chuva do Reino Unido está concentrada na Escócia, no País de Gales e no norte da Inglaterra

Os britânicos gastam em média 150 litros de água por dia – para tomar banho, dar descarga, lavar louça, roupa e regar as plantas. Para efeito de comparação, na Cidade do Cabo, onde a precipitação anual também gira em torno de 500 mm, o uso dos residentes é limitado a cerca de 60 litros por dia.

“As pessoas não veem a água como algo que precisam economizar… a percepção [da população] é de que somos um país com muita chuva”, afirma Hannah Freeman, diretora de assuntos governamentais da organização internacional Wildfowl & Wetlands Trust (WWT).

“Mas as últimas projeções sobre a mudança climática sugerem que a probabilidade de verões secos vai aumentar em até 50%.”

E os invernos também serão mais quentes. O Reino Unido acabou de registrar recorde de calor em fevereiro, com temperaturas chegando a 21,2 graus em Londres – é a primeira vez em que os termômetros ficam acima de 20ºC durante o inverno. Os britânicos tomavam sol nos parques de bermuda e camiseta, quando geralmente estariam usando gorros e cachecol.

Mudança global

O caso da Inglaterra mostra como outros países, notoriamente chuvosos, terão de despertar para um futuro de crescente escassez de água.

Conor Linstead, especialista internacional em água doce do World Wildlife Fund (WWF), diz que muitos países estão “enfrentando problemas de escassez de água devido à captação em excesso, e porque não deram atenção suficiente aos mecanismos de alocação de água… secas excepcionais vão se tornar a regra diante da mudança climática”.

No Brasil, a cidade de São Paulo quase ficou sem água em 2014 durante a pior seca da sua história – sendo que o país concentra de 12% a 16% da água doce do mundo.

O principal reservatório que atende à maior cidade brasileira chegou a operar com apenas 3% da sua capacidade – muito inferior à crise hídrica da Cidade do Cabo em 2018, em que as autoridades ameaçaram cortar o abastecimento, caso os reservatórios atingissem 13,5% da sua capacidade.

Em agosto de 2018, o nível da água do Rio Danúbio, que corta a Hungria, recuou para pouco mais de meio metro, impedindo a navegação de cruzeiros turísticos e navios de carga.

Na Inglaterra, Londres e toda a região do Vale do Tâmisa, que contempla as cidades ao longo do rio, são classificadas pela Agência Ambiental do Reino Unido como “seriamente carentes de água”.

“Temos instalações de armazenamento de água relativamente pequenas”, explica Steve Tuck, gerente de captação da companhia de abastecimento e tratamento de água Thames Water, “o que significa que usamos rios e aquíferos subterrâneos para abastecer a vasta população”.

Campo com grama seca

Londres sofreu uma série de secas severas nos últimos anos


Ele admite que este sistema é “um pouco precário”. O elevado nível de precipitação no inverno deveria ser suficiente para abastecer os aquíferos e escoar a água lentamente para os rios durante o verão.

Porém, o uso de água em excesso nas residências, aliado ao rápido aumento da população e à diminuição da frequência das chuvas, agravaram o problema, avalia Tuck.

A Thames Water chegou a investir na primeira usina de dessalinização do Reino Unido, na foz do Rio Tâmisa, para abastecer Londres com mais 150 milhões de litros de água potável por dia.

“Outra opção seria transferir água do Rio Severn, que nasce nas montanhas do País de Gales, [por meio de uma tubulação] para o Tâmisa”, sugere Tuck, o que indica a possibilidade da sedenta região sul sugar o restante da água do Reino Unido.

‘Roubo’ de água

Pelo mesmo raciocínio, há também a hipótese de o hemisfério norte “secar” o hemisfério sul. Os supermercados do Reino Unido oferecem frutas e legumes frescos durante todo o ano, independentemente da estação, fornecidos por diferentes países. E cerca de 24% são jogados no lixo, a grande maioria após a compra.

De acordo com Dorcas Pratt, vice-diretora da Water Witness International, organização voltada para o desenvolvimento sustentável, “a grande questão é que 62% do uso de ‘água virtual’ no Reino Unido – a quantidade de água necessária para produzir os alimentos que consumimos e produtos que usamos – é proveniente do exterior”.

“Nossa pegada hídrica global significa que a água usada pelo Reino Unido está interligada com a de comunidades e economias no mundo todo”, diz Pratt.

“Portanto, não estamos apenas captando água em excesso de alguns aquíferos do Reino Unido, mas nosso padrão de consumo globalizado faz com que a gente estimule a exploração da água (poluindo e degradando o ecossistema) em países ao redor do mundo.”

Aspargos

Ao importar frutas e legumes, o Reino Unido está explorando os recursos hídricos de outros países

Ela cita as fazendas de aspargos nos desertos peruanos como apenas um exemplo.

Desequilíbrio na demanda

Embora os períodos de seca tenham se tornado mais frequentes no Reino Unido, Catherine Moncrieff, da WWF, acredita que a grande questão é que as pessoas “desperdiçam água”. Países tradicionalmente chuvosos precisam se reconectar com o valor e o custo da água.

Apenas metade dos domicílios da Inglaterra e do País de Gales tem medidor de água instalado. A outra metade paga uma taxa mensal fixa, independentemente da quantidade de água que consome; você pode deixar o irrigador de grama ligado o dia todo, ou tomar um banho de uma hora, sem arcar com custos extras.

Em contrapartida, um relatório de 2008 da Agência Ambiental mostrou que Dinamarca, Finlândia, Holanda, Alemanha e Bélgica tinham medidores instalados em quase todas as residências – e apresentavam um consumo de água por pessoa muito menor que os 150 litros por dia do Reino Unido.

Na Finlândia, por exemplo, o gasto médio era de 115 litros por dia. Mas nem sempre foi assim. Na década de 1970, os finlandeses desperdiçavam cerca de 350 litros a 420 litros por dia.

A redução do consumo se deve, segundo o relatório, “ao aumento do preço da água, ao avanço da tecnologia usada nas residências e nos serviços de abastecimento, à maior conscientização dos consumidores e à melhor gestão dos serviços públicos”.

De acordo com Linstead, da WWF, “quase todos os países que realizaram campanhas bem sucedidas de eficiência hídrica têm medidores instalados. O medidor também ajuda as empresas a detectar vazamentos, o que significa mais economia de água “.

A Dinamarca também costumava usar água doce como se não houvesse amanhã – talvez porque seja um país pequeno com mais de 120 mil lagos e 69 mil quilômetros de rios. Em 1989, os dinamarqueses consumiam, em média, 170 litros de água por dia, a um custo de apenas 2 euros por metro cúbico (1 mil litros).

A instalação obrigatória de medidores e o aumento do preço para 7 euros por metro cúbico até 2012 reduziram o consumo individual de água para 114 litros por dia.

A WWF vai além e diz que 80 litros por pessoa “é perfeitamente possível agora” em residências equipadas com dispositivos modernos que permitam uso racional da água.

A Blueprint for Water, uma aliança entre organizações como a WWF e a WWT, faz um apelo para o consumo de água mais sustentável, tanto no Reino Unido quanto em outros países.

A Southern Water se tornou a primeira empresa de água britânica a iniciar a medição obrigatória; de 2010 a 2015, a companhia obteve uma redução de 16% no consumo per capita e de 15% nos vazamentos de água.

Não há razão para que o Reino Unido “não seja capaz de alcançar a segurança hídrica”, diz Freeman.

“Temos muita água quando chove! Só precisamos saber usar de uma maneira melhor.”

Fonte: BBC