Uma operação da Polícia Civil do Pará que prendeu quatro voluntários da Brigada de Incêndio de Alter do Chão e apreendeu documentos da organização não-governamental Projeto Saúde e Alegria (PSA) tem gerado protestos de ativistas, entidades indígenas e grupos que atuam na Floresta Amazônica.
A Brigada de Alter do Chão é um grupo de voluntários formado em 2018 pelo Instituto Aquífero Alter do Chão para ajudar no combate às queimadas na floresta e que atua em parceria com o Corpo de Bombeiros. Já a ONG PSA, fundada por médicos, atua há 30 anos na floresta fornecendo ajuda e serviços de saúde para a população local.
As prisões e a busca e apreensão na sede da ONG fizeram da parte de Operação Fogo de Sairé, lançada pela polícia para investigar incêndios em Alter do Chão. A Polícia Civil pediu a prisão preventiva dos voluntários e os acusa de iniciar focos de incêndio para depois combatê-los e arrecadar fundos enviados por entidades internacionais.
A detenção dos brigadistas gerou mobilização de grupos indígenas, movimentos sociais e ativistas pelo meio ambiente, que dizem que as prisões tiveram motivação política e são uma tentativa de criminalizar as ONGs, em meio à tensões fundiárias e pressões imobiliárias crescentes na região — que é valorizada por ser um dos principais destinos turísticos da Amazônia.
“Entendemos que essas acusações fazem parte de uma estratégia para desmoralizar e criminalizar as ONGs e movimentos sociais de forma caluniosa”, diz em nota a associação indígena Iwipuragã, do povo Borari, uma das mais de cem entidades que saíram em defesa dos ativistas. “A Brigada de Alter sempre atuou em defesa do nosso território, conhecemos a seriedade do trabalho e honestidade dos nossos brigadistas.”
Em coletiva de imprensa sobre o caso, o delegado José Humberto Melo Júnior disse que que prisões preventivas foram pedidas por existirem provas “robustas” da atuação dos voluntários, citando vídeos feitos pelo grupo mostrando os incêndios e áudios em que eles conversam sobre as queimadas. O inquérito ainda está em andamento.
‘Grande perplexidade’
A Brigada, a ONG PSA, a defesa dos jovens presos e diversos ativistas contestam as acusações feitas pela polícia. “[A prisão] é incabível, e o que dizem ser provas não prova nada, é difamação”, diz a arquiteta Bruna Bichara, moradora da cidade e integrante da brigada. “A gente está aqui para manter a floresta em pé.”
A Brigada disse em nota que a prisão “causou grande perplexidade” e que os brigadistas desde o início contribuíram com as investigações da polícia, prestando depoimento e fornecendo documentos. “A verdade real dos fatos virá à tona e a inocência da Brigada será provada”, diz a nota.
O advogado Wlandre Leal, um dos que atuam na defesa dos quatro jovens presos, disse que os critérios para a prisão preventiva não se aplicam ao caso e que vai entrar com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça do Pará.
Segundo a legislação, para a prisão preventiva é necessário que seja provado que há uma ameaça à segurança pública ou ao andamento do processo.
O incêndio que devastou Alter do Chão
Um dos principais destinos turísticos da Amazônia, a floresta de Alter do Chão foi atingida por um incêndio devastador que começou em 14 de setembro e consumiu uma área de cerca de 650 mil m². Demorou quatro dias para o fogo ser controlado pelo Corpo de Bombeirose e pelos brigadistas.
A Polícia Civil afirmou que uma das provas contra os brigadistas é um vídeo feito pelo grupos onde “só estão eles” e o fogo.
As brigadas de incêndio atuam em parceria com o Corpo de Bombeiros, mas, segundo relatos feitos à BBC News Brasil, é comum que cheguem antes no local dos incêndios, pois estão espalhados e moram mais perto das regiões afetadas, que costumam ser de difícil acesso.
Uma equipe da BBC acompanhou o trabalho da Brigada de Alter do Chão no dia 19 de setembro, quando a maior parte do fogo já tinha sido controlado.
A reportagem presenciou o grupo recebendo a notícia de alguns focos restantes de incêndio, acompanhou a chegada ao local afetado antes do Corpo de Bombeiros e apagando o fogo. Os brigadistas também fizeram novas rondas pela região onde tinha ocorrido o incêndio para ver se não havia novos focos — porque a mata seguia muito seca.
A arquiteta Bruna Bichara diz à BBC News Brasil que o grupo não sai para fazer a detecção e o combate sem antes ter autorização do Corpo de Bombeiros.
No dia 14 de setembro, quando a fumaça na região foi vista pela primeira vez, o grupo acionou os bombeiros e dois integrantes da brigada foram de moto até o local onde a fumaça tinha sido vista, segundo ela.
Com a confirmação do fogo, diz a arquiteta, um grupo de brigadistas se reuniu em frente à delegacia da Polícia Civil de Alter do Chão e, dali, seguiu para o local com a própria Polícia Civil.
“Fomos na viatura da polícia até o ponto de fogo, onde a detecção havia sido feita, e eles voltaram para nos buscar à noite”, conta ela. “No dia seguinte, subimos o drone e vimos a enorme linha de fogo que tinha na floresta. Foram três dias intensos de combate ao fogo.”
A BBC News Brasil questionou a Polícia Civil sobre isso, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
Acusações citam até Leonardo DiCaprio
Em entrevista coletiva sobre o caso, o delegado afirmou que a ONG criava focos de incêndio para depois fotografar e que tinha um contrato para vender fotos do incêndio por R$ 47 mil para a ONG WWF-Brasil.
Segundo ele, as fotos teriam sido usadas em campanhas para amealhar doações internacionais, incluindo uma do ator Leonardo de DiCaprio no valor de U$ 500 mil.
A WWF-Brasil disse que essas acusações são inverídicas. “A WWF-Brasil não adquiriu nenhuma foto ou imagem da Brigada, nem recebeu doação do ator Leonardo DiCaprio.”
A WWF também afirma que repassou o valor de R$ 70 mil para a ONG comprar equipamentos de combate ao fogo para os brigadistas, como abafadores, sopradores, coturnos e máscaras de proteção.
Segundo a entidade, a Brigada ainda estava dentro do prazo para a prestação de contas sobre o uso do dinheiro.
A Polícia Civil também afirmou que a Brigada teria recebido um financiamento de R$ 300 mil, mas prestado contas de apenas R$ 100 mil.
A Brigada, no entanto, diz que ainda estava em processo de prestação de contas sobre as verbas que foram recebidas. “A Brigada fez a devida declaração de doações no final do mês de setembro. Doações recebidas após essa data estão sendo consolidadas e serão declaradas apropriadamente.”
O irmão de João Romano, um dos brigadistas que foram presos, publicou um vídeo nesta quarta em que afirma que seu irmão é inocente e que as acusações contra os brigadistas não são verídicas.
“Estão colocando esses quatro meninos como criminosos, mas eles são vítimas de alguma que eles mexeram lá, a gente não sabe direito o que acontece”, disse Moreno Romano no vídeo. “Esses quatro meninos arriscavam a vida combatendo o fogo na Amazônia, defendendo a floresta”
“João mora lá há três anos. Deixou uma vida confortável aqui em São Paulo para morar numa cabana que nem parede tem no meio da floresta”, diz.
Eugênio Scannavino, do Projeto Saúde e Alegria, diz que o destino dos recursos recebidos da organização internacional Rainforest Alliance foi decidido em conjunto com um grupo de trabalho composto pelas ONGs e por membros do Corpo de Bombeiros, da Secretaria do Meio Ambiente e do ICMBio.
“Tinhamos um recurso de R$ 140 mil e usamos para compra de material de combate e treinamento de três brigadas. O único dinheiro repassado para a brigada foi o que serviu para formação dos voluntários, que foi feita com o apoio do Corpo de Bombeiros”.
A Polícia Civil divulgou transcrições de áudios com conversas de brigadistas dizendo que mais incêndios eram esperados, o que, segundo as autoridades, seria prova de que os voluntários colocaram fogo na floresta.
“É época de queimada, é claro que estavam prevendo que teria muito mais fogo”, diz Scannavino. A Brigada afirma que os trechos de áudio estão sendo disseminados sem a devida contextualização e que não são prova de nenhuma atividade ilegal.
Defesa das ONGs
Um dos voluntários presos é Gustavo de Almeida Fernandes, que é gerente de logística do Projeto Saúde e Alegria, alvo da operação de busca e apreensão.
Segundo Eugênio Scannavino, os membros da ONG acertavam os últimos detalhes de uma ação com 30 médicos para levar atendimento e fazer cirurgia em um dos locais mais remotos do Pará quando cerca de dez policiais armados entraram na sede da entidade.
Os policiais, diz ele, levaram todos os equipamentos e documentos da ONG que estavam no local. “Levaram tudo, os computadores, todas as nossas notas fiscais, todos os documentos originais, o HD que tem o backup, bloquearam nosso acessos às nossas contas.”
A ONG foi recentemente premiada pelo Prêmio Melhores ONGs do Brasil e é reconhecida pela Rede de Empreendedorismo Social da Folha de S.Paulo.
“São prêmios focados na gestão, na administração, que sempre foi impecável nos nossos 30 anos de trabalho”, diz Scannavino. “Tivemos auditoria do Ministério Público Estadual e passamos com louvor, temos um monte de auditoria o tempo todo.”
“Confio no trabalho dos brigadistas, tenho certeza que eles não botaram fogo”, afirma ele. “A gente recebe ameaças veladas permanentes no nosso trabalho. Às vezes nossos carros são hostilizados, nosso vigia já foi ameaçado. É um clima de insegurança permanente.”
Caetano Scannavino, irmão de Eugênio e coordenador do PSA, disse em coletiva de imprensa que a operação foi uma “situação kafkaniana”, em refererência ao livro O Processo, de Franz Kafka, em que um homem inocente sofre um longo processo sem saber quais são as acusações. Ele disse também que foi uma “ação política para tentar desmoralizar as ONGs que atuam na Amazônia”.
Mais de cem entidades assinaram um manifesto de apoio ao Projeto Saúde e Alegria, incluindo a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Belém, parte da Igreja Católica, o Instituto Socioambiental (ISA), diversos sindicatos de trabalhadores rurais que dependem da preservação da floresta, diversos coletivos indígenas, redes de pesquisadores e instituições educacionais que atuam na amazônia.
“Queremos que a polícia investigue e prenda os grileiros e especuladores, as quadrilhas que (…) usam o fogo como estratégia para limpar a área. E não que acuse sem provas quem trabalha para defender a floresta”, diz o manifesto.
A linha de investigação do Ministério Público Federal sobre o incêndio que começou no dia 14 em Alter do Chão é de que ele teria começado em terras invadidas por grileiros investigados pelo MP desde de 2015. Um deles, Silas da Silva Soares, foi condenado pela polícia e está foragido, segundo nota publicada pelo MPF em setembro.
A Anistia Internacional também se posicionou sobre o caso. “Não há, até o momento, informações sobre as investigações ou os procedimentos adotados pelas autoridades contra os acusados que justifiquem a decisão pela prisão”, diz a entidade.
Amazônia teve aumento de incêndios em 2019
Os incêndios são um problema crônico na Amazônia e costumam acontecer durante o período de seca.
Eles podem ocorrer naturalmente, mas especialistas afirmam que a maioria dos incêndios é causada pela atividade humana, como agricultores e madeireiros limpando terras para plantio ou pastagem.
“O fogo sinaliza a conclusão do processo de desmatamento”, disse à BBC em setembro a ecologista Michelle Kalamandeen, que trabalha na floresta amazônica.
“As árvores gigantes da floresta tropical que frequentemente associamos à Amazônia são cortadas, deixadas para secar e, em seguida, o fogo é usado como ferramenta para limpar a terra para prepará-la para pastagens, plantio ou até mineração ilegal.”
O número de incêndios foi o dobro entre janeiro e agosto de 2019 em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Área queimada na Amazônia brasileira
Questionado sobre o problema, o governo do presidente Jair Bolsonaro inicialmente desacreditou os próprios dados oficiais do Inpe, que é uma instituição governamental, depois passou a afirmar que os fogos eram causados por ONGs, sem apresentar evidências.
Depois das afirmações de ativistas de que a prisão dos quatro brigadistas em Alter do Chão tiveram motivação política, o governo do Estado do Pará soltou uma nota dizendo que “não interfere em investigações da Polícia Civil, que é autônoma”.
Disse também que “não há nenhuma predisposição contra qualquer segmento social”, que “as ONGs são fundamentais para a preservação das florestas no Estado” e que o governo “continua parceiro de todas as instituições e entidades que respeitam as leis brasileiras.”
Fonte: BBC