De bengala, o teólogo Leonardo Boff sai às ruas para pedir valorização à vida em vez do lucro, além de cuidado com o planeta Terra, tolerância e justiça. Aos 81 anos, ele participou de uma romaria no último sábado (25/01) em Brumadinho, que prestou homenagens às 270 vítimas soterradas após o rompimento da barragem da Vale em 2019.
Segundo Boff, em nome do lucro, os humanos transformaram a Terra num matadouro. “Nós nos transformamos no Satã da Terra […] Matamos animais, florestas, águas, matamos os pobres, os negros, os que têm outra opção sexual. Nos tornamos assassinos de nós mesmos”, afirmou em entrevista à DW Brasil.
O teólogo disse ainda que aqueles que negam as mudanças climáticas o fazem “por maldade, por estupidez, porque interessa a eles mais o dinheiro e o lucro”.
Com doutorado em Teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha, Boff foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos expoentes da Teologia da Libertação, corrente da Igreja Católica fundada na América Latina que enfatiza a ética social cristã em defesa dos pobres e oprimidos, e que teve influência do marxismo. Boff também tem histórico como assessor de movimentos populares e é autor de vários livros sobre temas ligados à teologia, filosofia, ética e ecologia.
DW Brasil: O senhor está acompanhando uma romaria, que também tem presença de movimentos sociais, na cidade que sofreu o impacto de uma tragédia humanitária e ambiental. Como o senhor enxerga o papel da Igreja Católica e sociedade civil neste cenário?
Leonardo Boff: Este cenário coloca em xeque o modelo de produção e o tipo de civilização que nós temos – que não coloca a vida no centro, mas o lucro. Ela [a civilização] sacrifica a vida humana, a vida da natureza, dos rios, em função dos lucros.
Este momento é de chorar os mortos, porque houve um crime, eles sabiam do risco e não tomaram as medidas necessárias para evitar esse morticínio de pessoas. Mas, ao mesmo tempo, é a ocasião para a gente refletir sobre esse tipo de produção, esse tipo de sociedade que só pensa no lucro e bens materiais, e que não pode continuar.
A vida está no centro. E o ser humano tem coração para sentir o sofrimento do outro, de se solidarizar com aqueles que sofrem e entender que, além das religiões, além dos partidos, vale a dignidade do sofrimento. E a solidariedade com eles.
Há pouco tempo, o Sínodo para Amazônia, convocado pelo papa Francisco, pediu que os cidadãos se envolvam mais em questões políticas. O que o senhor pensa sobre isso?
O papa já havia sido inteligente na sua Encíclica [documento papal escrito em 2015 com o título de Laudato Si, que falou sobre o cuidado que os cristãos devem ter com a Terra]. É uma ecologia íntegra, que pega o ambiente, pega política, a mente, as ideias, os sonhos, as escolas, os valores, e pega também a dimensão mais familiar, corriqueira, como organizamos nosso alimento, nossa casa, nossa vida, e, no fim, a dimensão espiritual. Saber que abraçando o mundo estamos abraçando a Deus.
O papa despertou em nós a consciência sobre o cuidado da casa comum. Ou nós cuidamos da água, das plantas, dos animais, cuidamos uns dos outros, ou vamos ao encontro de uma grande catástrofe ecológica e social.
A Terra está doente, ela está mostrando isso. Essas chuvas aqui em Belo Horizonte e região… Em todas as partes há secas enormes, nevascas nuncas vistas… A Terra perdeu o seu equilíbrio e pertence ao ser humano devolver o equilíbrio da Terra. Se a Terra está doente, nos faz doentes, e nós, doentes, adoecemos a Terra. Temos que encontrar uma harmonia, cuidá-la, não superexplorá-la, tirar o que é suficiente para a vida, e não para o lucro, para o ganho.
O ensino do Sínodo Panamazônico tinha esse sentido: pensar na Terra, na humanidade, não simplesmente na região, ou só nas baleias, no mico-leão dourado. Trata-se da totalidade da nossa casa comum que está em risco.
Por outro lado, temos na cena política nacional e internacional chefes de Estado que negam esse problema, negam a integração entre homem e meio ambiente, as mudanças climáticas. Como engajar os cidadãos comuns?
Acho que a primeira coisa que devemos dizer é: devemos olhar a Terra e nos dar conta dos fenômenos. Não se pode ficar cego aos tufões, às imensas torrentes de enchentes, à desertificação. Quase 60% dos desertos no mundo estão crescendo mais e mais. Não se pode ficar cego à desflorestação. São fenômenos que não podem ser negados.
Aqueles que os negam, os negam por maldade, por estupidez, porque interessa a eles mais o dinheiro e o lucro. São os que colocam margem à vida humana e à vida da natureza. Quando chegar na pele deles, sentirem eles as consequências… porque a crise ecológica não conhece os limites das nações. Se houver uma contaminação na região, ou um vírus que nos pode atacar a todos, ele não distingue quem é rico e quem é pobre. Ataca a todos. Então, a um risco global, devemos dar uma resposta global.
Os cristãos têm valores, as várias igrejas, que vêm do Evangelho, que vêm das práticas de Jesus: colocar a vida no centro, misericórdia, compaixão, sofrer e chorar com quem chora. Essas atitudes nos levam a essa solidariedade que pode superar essa crise.
A ONU já definiu que a Terra é mãe Terra. E mãe a gente ama, defende, cuida. Terra comum a gente compra, vende, faz o que quiser. Mas não faz com a mãe. Vamos tratar a Terra como tratamos nossas mães, com carinho, cuidado, amor. Se não fizermos isso, vamos ao encontro do pior.
O quão difícil é propagar essas ideias num Brasil tão polarizado como visto nos últimos anos?
É difícil e é fácil. É difícil porque muitos são cegos. Essas pessoas vão aprender quando sentirem na própria pele, na sua cidade que será inundada, no calor imenso que vai trazer doenças às crianças. Então, eles se darão conta de onde vem isso. E aí descobrem que a Terra está doente, que eles mesmos estão doentes.
É a realidade que vai conscientizar. Por isso temos que observar a realidade, acompanhar a situação do mundo, da Terra. Hoje, todos os meios de comunicação nos colocam em contato com tudo o que ocorre.
E também é preciso a reflexão. Que o ser humano foi instaurado por Deus como cuidador desse jardim. E nós nos transformamos no Satã da Terra. Transformamos esse jardim num matadouro: matamos animais, florestas, águas, matamos os pobres, os negros, os que têm outra opção sexual. Nos tornamos assassinos de nós mesmos. Não reconhecemos o outro como coigual, como irmão. Submetemos, exploramos.
Chegou o momento em que não podemos continuar assim, como o papa diz e os grandes cientistas dizem. Eu participo de uma equipe, da Carta da Terra, que faz um balanço a cada dois meses sobre qual é a situação da Terra. Todos os itens vão piorando de ano para ano.
Nós nos perguntamos: quando vai parar? Talvez não pare. Ou só pare com uma grande catástrofe, e todos serão atingidos. E os que aprenderam terão formas de sobreviver. Os que não aprenderam não sabem o que fazer e correm o risco de serem submergidos, como tantos aqui foram submergidos com a ruptura da barragem da Vale.
Fonte: Deutsche Welle