Toda vez que Florisval Cardoso esguicha água da mangueira para lavar a calçada suja de lama dura e poeira, o pó preto reluzente aparece.
“Olha aí o minério de ferro brilhando. Ele vai separando da água e da lama e vai ficando, tá vendo? Na minha casa ficou cheio dessa coisa preta. Quando o sol esquenta, ele brilha”, diz.
Em meio à lama e poeira que tomaram conta de Governador Valadares desde o final de janeiro, quando chuvas fortes atingiram todo o Estado de Minas Gerais e o Rio Doce subiu quase quatro metros acima do seu nível normal e transbordou pela cidade, o pó impressiona até quem, como Florisval, já está habituado a ver o rio subir.
Uma semana depois da cheia do rio, que banha Minas Gerais e Espírito Santo com 853 km de extensão, era só andar pela cidade para ver a sujeira que se espalhou em todo lugar: pela rua em que Florisval mora, no quintal, e até dentro de casa. Os mais atigidos foram os bairros próximos ao rio mas, com o trânsito dos carros, a poeira deixou camadas espessas até nos bairros centrais.
Para tirar a lama dos pisos e das paredes, vassoura e rodo não bastam. A massa densa é escura e grudenta, e só sai com equipamentos de alta pressão e produtos pesados, como cloro.
“Nas outras enchentes não juntava nada dentro de casa, era água com areia, você puxava e ficava tudo bem. Agora está tudo impregnado nas paredes”, diz Florisval, apontando para as marcas no quintal de casa para mostrar a altura em que a lama subiu.
“Meu quintal ficou com 45 cm de lama. Dentro de casa, ficaram 70 cm de água”, diz.
Morando à beira do Rio Doce há cerca de 20 anos, o microempreendedor Ageu José Pinto diz que é a primeira vez que vê algo desse tipo. “Nunca vi enchente com essa lama, nem com minério”, diz.
“Achamos que era uma cheia normal, só percebemos quando começamos a limpar a casa. Por mais limpa que esteja, vai ficando aquela tinta mineral brilhosa na cerâmica. E depois que baixou tudo é que começamos a ver que as ruas estavam tomadas de lama, e que tinha muito minério junto.”
Ecos de Mariana
Em 2015, quando rompeu a barragem de Fundão, da mineradora Samarco — empresa controlada pelas mineradoras Vale e BHP Billiton —, Governador Valadares teve seu fornecimento de água suspenso por mais de uma semana.
Após a tragédia, que deixou 19 mortos e um rastro de destruição por onde passaram os 40 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) local precisou reaprender como tratar aquela água que se tornou barrenta, turva e cheia de peixes mortos, que os moradores ainda descrevem como parecida com chocolate.
De lá para cá, a relação da cidade com o Rio Doce nunca mais foi a mesma: quem vivia da pesca ou da extração de areia nunca mais pode exercer a profissão. Além disso, muitos moradores desconfiam até hoje da qualidade da água; deixaram de beber a água da torneira e incorporaram o hábito de comprar água mineral.
Para reparar os danos, um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) foi assinado em março de 2016 pela mineradora Samarco, por suas acionistas Vale e BHP Billiton, pelo governo federal e pelos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Conforme o acordo, foi criada a Fundação Renova, a quem cabe, com recursos das mineradoras, tomar as medidas necessárias.
Segundo a Renova, foram indenizadas 142,1 mil pessoas pelos problemas no abastecimento, em um total de R$ 147 milhões; e outras 301 famílias por danos morais, materiais e/ou lucros cessantes, em cerca de R$ 19 milhões entre 2016 e 2019.
A prefeitura destaca que a lama que invadiu ruas e casas em 14 bairros da cidade, deixando centena de desalojados, tinha um cheiro forte, era viscosa e cheia de minério, como nunca a cidade viu.
“O barro fininho e arenoso que ficava nas ruas quando a água baixava nas enchentes anteriores foi substituído por uma lama densa, viscosa, abundante e com visíveis sinais de minério. Um resíduo de limpeza muito mais difícil, demorada e que exige muitos mais recursos”, queixou-se o prefeito André Merlo em nota pública divulgada no dia 4 de fevereiro, quase uma semana depois da cheia.
O prefeito também disse à BBC News Brasil que a relação da Samarco com a cidade está bem “complicada”.
Ele diz que o plano acordado no dia 6 de fevereiro no Comitê Interfederativo (CIF), que reúne representantes dos órgãos públicos e da sociedade, previa que as empresas deveriam “providenciar apoio necessário à limpeza das áreas atingidas com lama e rejeitos, inclusive com a sua destinação ambientalmente adequada, e medidas de mitigação dos efeitos adversos da poluição atmosférica pela poeira”.
“E eles não vieram, nem ligaram. Retiramos 4 mil caçambas de lama, e depois veio a poeira”, diz o prefeito.
A Renova afirma que recebeu pedidos de apoio para recuperação após as chuvas de “diversas prefeituras” e que a fundação “aguarda aprovação, de forma emergencial, em sua governança interna, para poder implementar ações de apoio a esses municípios”.
Para os moradores, como Florisval e Ageu, encontrar o pó brilhante dentro de casa traz de volta o receio de que os rejeitos do minério de ferro jogado no rio durante o desastre de Mariana tenham voltado à superfície com as chuvas. O medo é de que sejam substâncias tóxicas, que façam mal à saúde de quem é exposto a elas.
Investigação técnica
Ainda não dá para provar, no entanto, que o minério ou a lama da enchente sejam mesmo culpa da Samarco. Falta a palavra final da perícia. A prefeitura ajuizou um pedido de perícia na lama espalhada pelas ruas para, no futuro, usar como prova em uma ação judicial contra a Samarco — o prefeito da cidade já anunciou que tem a intenção de processar a empresa.
O argumento da prefeitura é o de que a presença dos rejeitos de minério na lama representou, além das perdas de 2015, mais custos para a cidade. “A utilização extra de mão de obra, maquinário e ferramentas para a retirada desse material, onerando ainda mais os cofres públicos.”
Segundo a procuradora-geral do município, Ana Carla Dias, o objetivo com a análise da lama é construir duas provas. “O primeiro é comprovar que é a mesma lama da Samarco. O segundo é comprovar que o desastre da Samarco em Mariana elevou o nível do nosso rio, de modo que menores quantidades de chuvas causam mais estragos. Basicamente está cheio de lama lá no fundo e, por isso, o rio está mais raso.”
Morando de frente para o rio em uma rua que foi toda tomada pela lama dura e malcheirosa, Ageu tem impressão parecida sobre a mudança do rio Doce desde o desastre de Mariana. “Hoje, se a gente entrar no rio a gente vai pisar em lama. Antes, o fundo do rio era areia.”
Em Valadares, os moradores acompanham o movimento do rio por meio da régua do SAAE que fica na Estação de Tratamento Central para avaliar o volume de captação do abastecimento de água da cidade. De acordo com essa régua, o pico crítico do nível do rio chegou a 3,93 metros no fim de janeiro e atingiu 14 bairros, prejudicando 55 mil pessoas, na estimativa da prefeitura.
Moradores ribeirinhos, no entanto, questionaram a medição, já que na enchente de 2012 o rio chegou a 4,15 metros, segundo o SAAE, e causou menos estragos.
A Fundação Renova diz que foi enviada uma equipe de técnicos para coleta de amostras dos materiais removidos logo após a enchente em diversos pontos da região. Os resultados das análises deverão ser entregues nas próximas semanas.
A Renova também alega ter certeza de que não há nenhum risco para as famílias de Valadares; afirma que não há metais oriundos da barragem do Fundão que representem risco toxicológico à saúde humana, de acordo com pesquisas realizadas em Mariana e Barra Longa e divulgadas em dezembro de 2019.
E, apesar dos estragos causados pela mineradora no rio, alega que anualmente são lançados cerca de 144 milhões de metros cúbicos de esgoto não tratado na bacia do rio Doce, quantidade três vezes maior que o próprio volume de rejeitos vazado da barragem de Fundão, em 2015.
“Conforme já demonstrado a partir de levantamentos realizados pela ANA (Agência Nacional das Águas) e CPRM (Serviço Geológico do Brasil), verifica-se que não houve deposição de material, oriundo do rompimento da barragem de Fundão, a ponto de alterar os níveis de inundação do rio nas regiões próximas ao município de Governador Valadares. O aumento da turbidez em decorrência da remobilização de sedimentos já ocorre sazonalmente nos períodos chuvosos.”
Medo da lama e medo da água
O posicionamento da Samarco contraria a percepção dos moradores e o poder público de Valadares.
“Depois do desastre de Mariana, hoje em dia, qualquer movimento do Rio Doce a água fica com turbidez alta. E isso, provavelmente, é a lama que está no meio do Rio Doce”, afirma o diretor geral do SAAE de Governador Valadares, coronel Sebastião Pereira de Siqueira.
Ele diz, ainda, que a água bruta do rio mudou totalmente desde a tragédia. Mas concorda que a água depois de tradada é segura para o consumo da população.
Siqueira diz que, desde 2015, a água tratada pela SAAE e distribuída aos valadarenses já foi testada várias vezes e se comprovou potável não só pelos laboratórios da empresa, que são certificados pela norma ISO 9001, mas também pelos Ministérios Públicos estadual e federal.
A Renova diz que, atualmente, o rio Doce é enquadrado na classe 2 pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), e isso significa que a água pode ser consumida após tratamento convencional e ser destinada à irrigação.
“A nossa água tratada é potável, isso eu garanto. De seis em seis meses a água é colhida e levada para um laboratório em São Paulo, isento”, diz Siqueira. Mas compreende a desconfiança da população ao lembrar da água espessa e dos peixes mortos na época da tragédia de Mariana, e agora voltar a testemunhar o excesso de lama que veio em 2020.
“Tivemos um excesso de minério visível na lama. Eu, por exemplo, tive prejuízo em bombas do SAAE que ficam submersas, houve danos. O que causou esse estrago? Não sei. Pode ser minério de ferro? Pode. Mas ainda é preciso fazer a perícia para falar”, afirma, cauteloso.
“O MP quer saber. O que veio a mais nessa lama agora? Estão sendo feitas perícias para saber se houve aumento de metais pesados, de toxicidade da lama.”
Florisval, por via das dúvidas, abandonou o hábito de beber água da torneira desde a tragédia causada pela Samarco. “Estamos sofrendo desde aquele desastre de 2015”. Tem receio ainda maior de dar a água para os netos pequenos, que ficam em casa com ele e a esposa depois das aulas.
“Não usamos mais a água para beber. Mal e mal para tomar banho, e tem vezes que sente o corpo coçando”, diz Ageu.
“A gente toma um banho de álcool, porque fica cismado. Tem gente que tem resistência menor, baixa a imunidade e ‘calomba’ o corpo, fica todo vermelho”, afirma ele, que é membro do Conselho Municipal de Direitos Humanos e já ouviu muitas queixas nesse sentido. Ele conta que, hoje, só bebe a água da torneira quem não tem condições de comprar a mineral.
“Infelizmente, nem todo mundo tem.”
Siqueira, do SAAE, diz que a enchente despertou traumas antigos da população.
“Aquele impacto de lama no rio Doce, aquela dúvida sobre o impacto para a saúde, se vai morrer peixe. A sensação das pessoas daquela tragédia antiga, isso volta à tona. Isso volta. Essas empresas têm que responder a essas questões.”
Em janeiro de 2019, uma outra barragem da Vale se rompeu em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, matando pelo menos 259 pessoas e deixando 11 desaparecidos. Na quinta-feira, a Vale divulgou que teve um prejuízo de R$ 6,672 bilhões no ano passado, resultado influenciado pela tragédia de Brumadinho.
O prefeito André Merlo (PSDB) diz que estão paradas as obras da construção pela Renova da adutora que servirá como uma fonte alternativa de captação de água em Governador Valadares, e começaram no dia 13 de julho de 2018.
O projeto prevê a implantação de uma adutora de 35 km de extensão que levará a água do rio Corrente Grande até as Estações de Tratamento de Água (ETA) Central, Vila Isa e Santa Rita. A previsão inicial de conclusão da obra era para o primeiro trimestre de 2021.
Em nota à BBC News Brasil, a Fundação Renova afirmou que “a nova empresa responsável pela a construção da adutora em Governador Valadares está em fase de seleção e, em breve, substituirá o atual. O processo concorrencial faz parte da política de contratação da Fundação, que trabalha para que as etapas de seleção ocorram com transparência e ética, de forma a permitir entrega com qualidade e rigor técnico”.
O ferro comprovado na lama
O pesquisador Ângelo Márcio Leite Denadai, professor doutor em química da Universidade Federal de Juiz de Fora no Campus Governador Valadares, testou a lama que se acumulou na porta da casa dele durante a enchente e comprovou que o pó preto é óxido de ferro, que se mexe quando puxado por um ímã.
“Levei uma amostra para o laboratório, e, com um imã de neodímio, comprovamos que tem muito material magnético óxido de ferro na lama”, afirma o cientista.
“O óxido de ferro é um dos componentes do minério. Então a presença do óxido de ferro é um indicativo de que o material da lama se trata de minério de ferro. Claro que estudos mais profundos têm que ser levantados. Não estou afirmando que seja lama lá da região do desastre, estou levantando uma forte suposição.”
Denadai sugere que a perícia utilize o óxido de ferro como marcador para determinar a procedência da lama. “Não estamos fazendo papel de perícia, mas de cientista levantando hipóteses”, pondera.
“Há duas situações/hipóteses: existe atividade mineradora com despejo de óxido de ferro no Rio próximo a Valadares? Não. Sabemos que em 2015 houve um despejo de quantidade gigantesca de óxido de ferro no Rio. Levanta-se a suspeita de que seja proveniente do rejeito. Mas só uma perícia contratada pelo poder público poderá dizer.”
Denadai também defende que é preciso investir em tecnologia para monitorar o sobe e desce do rio em situações atípicas como o pós-desastre.
“Existem tecnologias muito sofisticadas. Interferometria eletromagnética, métodos de sonar, a gente sabe que existe. Medir altura de rio com régua em pleno século 21 é um absurdo.”
Fonte: BBC