O Delta do Parnaíba é uma junção de ambientes diversos. Um ecossistema complexo, onde se encontram grandes extensões de manguezais amazônicos, trechos de Mata Atlântica nordestina e porções da Caatinga – um mosaico sobre o qual pouco se conhece. O rio Parnaíba condiciona o desenho do local. Sua foz se abre e o poderoso curso d’água se transforma em cinco antes de desaguar no Atlântico e formar mais de 70 ilhas.
Esse é o cenário onde, depois de partir da cidade de Parnaíba (PI), passamos 5 dias acompanhando o trabalho da médica veterinária, professora e presidente fundadora do Instituto Tamanduá Flávia Miranda, quinta personagem da série de reportagens Mulheres na Conservação. Referência mundial em estudos sobre os animais da superordem xenarthras – o mais antigo grupo de mamíferos endêmicos do continente americano: tatus, tamanduás e preguiças – Flávia é uma mulher com alma e história de naturalista, daquelas personalidades moldadas pela curiosidade sobre a natureza e que faz novas descobertas em pleno século 21. Com inúmeros talentos, ela desenvolve linhas de pesquisas do zero, classifica novas espécies e ainda consegue incorporar outras disciplinas, como o estudo da paisagem, a seu currículo.
Desta vez, seguimos Flávia na primeira expedição do ano do projeto Em Busca do Desconhecido, uma iniciativa que busca produzir conhecimento sobre os raros e misteriosos tamanduaís (Cyclopes didactylus). O animal é um meio termo entre preguiça e tamanduá, cabe na palma da mão e não pesa mais de 400 g. Porém, sua origem remete a 33 milhões de anos atrás, o que faz dele o mais antigo, e menor, dos tamanduás – verdadeiras testemunhas da história do planeta.
Os dias em campo incluíram trilhas por restingas, viagens de barcos e uma série de encontros com pessoas. Tudo isso entremeio a uma história de vida, a de Flávia, ainda sendo escrita, mas inteira dedicada à pesquisa, expedições, trabalho com animais e uma paixão irresistível pelo desconhecido. “A gente vive num país que tem uma das maiores biodiversidades do mundo, mas que ainda é pouco conhecida. Não catalogamos nem metade do que tem e estamos descrevendo espécies de mamíferos em pleno 2020”, me conta em uma conversa em uma das caminhadas pela mata. “E eu gosto de estar à frente disso, tenho essa veia de explorar, de conhecer, de chegar primeiro, chegar num lugar onde ninguém pisou, ver o que tem e relatar o que tem, antes que a gente não tenha mais.”
Após um rápido encontro com Flávia e a equipe local do Instituto Tamanduá em Parnaíba, decidimos sair no dia seguinte de carro em direção à Ilha Grande de Santa Isabel, em uma área onde o projeto registrou 22 indivíduos de tamanduaí em quatro anos, um recorde.
Partimos logo cedo acompanhados por Karina Molina ao volante, coordenadora dos estudos sobre o tamanduá-mirim, e Francisco Mendes, colaborador do instituto e morador da região especialista em avistar esses pequenos animais nos galhos.
A partir do Piauí, seguimos por 50 km no sentido do rio Parnaíba e do Maranhão com o pequeno litoral piauiense à nossa direita. De longe avistamos que o nosso destino, a fazenda Saquinho, era especial. Com dunas, uma belíssima restinga e várias carnaúbas, o local é lar do casal Pedro Militão e Maria das Graças. Ele octogenário, ela quase lá.
Flávia Miranda nos aguardava junto ao biólogo Alexandre Martins Costa Lopes, vice-presidente do Instituto Tamanduá, coordenador da base no Nordeste e braço direito da pesquisadora há muito anos. Traçamos os planos dos próximos dias na mata e começamos a montar as redes onde dormiríamos duas noites, em uma espécie de rancho, no quintal de Seu Pedro.A rotina de campo é algo muito familiar a Flávia, desde pequena. A veia naturalista vem da época, ainda criança, em que catalogava insetos. Mas tornou-se evidente na adolescência, em Campo Grande (MS), quando escolheu fazer o colégio rural no Pantanal. O material escolar passou a ser uma enxada e um facão, instrumentos que, ela lembra, usa até hoje. Foi nesse período que teve os primeiros contatos diretos com o tamanduá-bandeira. Um indivíduo rondava o alojamento e Flávia começou a fazer anotações de comportamentos do animal depois das aulas.
A experiência na natureza foi determinante na escolha pelo curso de medicina veterinária. Mais adiante, o amor pelos tamanduás também seria revelado. Quando chegou no meio da faculdade uma professora que enxergava em Flávia uma personalidade de trabalho na natureza, sugeriu que ela se tornasse veterinária de campo. O manejo de animais selvagens não fazia parte das aulas na época e, por isso, decidiu fazer um estágio de graduação no zoológico de Bauru (SP), que depois se transformou em uma residência de quatro anos na Fundação Parque Zoológico de São Paulo – a primeira residente em clínica médica e manejo de animais silvestres do Brasil. Desde então, o pioneirismo passou a ser uma marca de sua carreira profissional. “Eram quatro mil animais para três veterinários”, lembra Flávia. Para ter a segurança de clinicar e anestesiar um animal em campo, por exemplo, ou coletar amostras biológicas em lugares abertos, essa experiencia foi primordial. “Campo é natureza”, diz a pesquisadora.
As primeiras pesquisas começara a surgir em 2005. O Brasil era referência em manejo de tamanduás, mas as espécies ainda eram pouco conhecidas e havia um número considerável de mortalidade entre os animais em cativeiro, lembra Flávia. Algo não batia. “Eu queria mesmo era salvar essas espécies. Mudar o manejo, manter a fauna e os xenarthras, manter essa história evolutiva viva”, diz ela.
A fim de desvendar o mistério de tantas mortes, ela resolveu realizar um questionário com 80% dos zoológicos brasileiros e comparar os dados com animais analisados na natureza. A pesquisa, que contou com financiamento da Wildlife Conservation Society (WCS), a levou de volta a campo e ao seu amado Pantanal. O resultado foi o livro Manutenção de Tamanduás em Cativeiro – que, lançado em 2012, ainda é referência mundial no manejo da espécie.
À noite, na casa de Seu Pedro Militão, com luz de gerador e um café da Dona Graça, tentei, em vão, traçar uma linha do tempo na vida da pesquisadora. Tarefa quase impossível, as ideias e objetivos de Flávia sobre a conservação são tão intensos que continuamos conversando nos dias seguintes durante as longas caminhadas pela mata.
Seu Pedro Militão e Dona Maria da Graça
Nosso primeiro dia em campo começou pouco depois do amanhecer. Fomos atrás dos tamanduaís em trilhas que intercalam dunas, restingas, mangues e carnaúbas.
Os tamanduaís também são conhecidos como tamanduá fantasma porque nunca descem para o chão, têm hábitos alimentares noturnos e durante o dia ficam enrolados nas árvores, dormindo. A pelagem, que se confunde com os galhos, e o diminuto tamanho deixam a missão só para quem tem olhos muito afiados.
Na primeira meia hora, Alexandre consegue avistar o primeiro exemplar numa angélica, árvore de galhos e troncos torcidos. O animal é coletado, mas nenhum procedimento invasivo é feito. Com apenas 30 g, o bichinho é um filhote. “A gestação é mais longa nos tamanduaís, então eles nascem proporcionalmente maiores comparados com o bandeira ou o mirim”, conta Flávia. “Outra caraterística que os difere é que as mães tamanduaís saem em busca de alimento e não carregam o filhote, ele fica sozinho no galho.”
O biólogo Alexandre explica que as mães e filhotes se separam depois de 70 dias. A emoção da equipe de reportagem no primeiro dia em campo é geral. Dentre os jornalistas presentes, ninguém tinha visto de perto um animal tão diferente e, como sabemos agora, antigo. Apesar de pequeno, o filhote já exibia a característica cauda comprida e preênsil – que serve para se segurar pelos galhos – e uma pequena mancha escura no dorso.
Depois de devolvê-lo à natureza, seguimos em busca de mais exemplares, andando por entre angélicas, juremas e cajueiros. Como são arvores mais baixas, a missão tem lados bons e ruins. É mais cansativo porque temos que andar sempre abaixados, mas também é um dos motivos pelo qual o projeto tenha tanto sucesso na avistagem e documentação dos animais. Afinal, é mais fácil de encontrar os tamanduaís na vegetação baixa do que, por exemplo, na frondosa selva amazônica, com árvores que ultrapassam 50 metros de altura.
De volta à base, na casa simples do casal anfitrião, um almoço feito no fogão a lenha por Dona Graça nos esperava. A satisfação de estar aqui é evidente em Flávia, Alexandre e Karina. Uma relação de convívio e afeto que emociona a pesquisadora. A todo momento Seu Pedro, que também é pai de santo, conta histórias que misturam os encantados, a natureza e as relações naturais.
Pela tarde, seguimos a busca, nos dividimos em grupos e percorremos outra área da fazenda Saquinho. No final do dia, alcançamos o topo de uma duna para observar o cenário único que nos cercava: de frente, o Atlântico, e, por detrás, a restinga com pequenas lagos e dunas, onde se camuflam uma espécie ainda tão misteriosa.
Pela madrugada, na rede, fomos tomados pelo cruviana, vento que vem surgindo pela caatinga até chegar no Atlântico. Forte e com chuva torrencial, o cruviana preparou o terreno úmido para nosso segundo dia de inclusão atrás dos tamanduaís.
Revelações e a história natural sendo escrita
Traçamos outras rotas e novamente nos dividimos na procura. A equipe do Instituto Tamanduá se comunica por vocalizações para saber onde cada um está. Pouco depois de duas horas, Francisco dá o alerta. Mais um animal é avistado. Desta vez, com a sorte que tem nos acompanhado no Mulheres na Conservação, era o maior indivíduo já encontrado no território. A equipe monta rapidamente uma tenda para se proteger da chuva. Após a pesagem, a anestesia. “Um macho”, anuncia Flávia segurando o pequeno animal sedado em mãos. Na noite anterior ela havia comentado sobre outra caraterística do tamanduaí: é impossível, apenas a olho nu, distinguir machos e fêmeas, já que os órgãos reprodutores são internos.
Um pouco de sangue é coletado para análise genética e de saúde. O trabalho em equipe é bonito de ver – calmo, sincronizado e rápido, apesar da chuva que caía. “Cada captura é uma coisa nova, essa espécie é muito desconhecida”, conta Flávia enquanto termina os procedimentos para devolver o animal à arvore. “É o único projeto com a espécie, então estamos aprendendo.” O projeto é pioneiro e ímpar no mundo, e a equipe está construindo do zero um banco de informações sobre a biologia e o comportamento da espécie.
Chegar a esse momento tem tudo a ver com o histórico da carreira de pesquisa de Flávia Miranda. Em 2005, durante uma reunião da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) na qual ela participava, os pesquisadores cogitaram, por falta de registro há mais de 100 anos, declarar extinta a população de tamanduaís do Nordeste. Foi quando as diversas experiências de Flávia falaram mais alto: ela guardava relatos da existência desses animais de quando trabalhou em Recife entre 2003 e 2004.
“A hipótese era, ou esse animal veio de apreensão de tráfico da Amazônia e foi jogado ali, ou o animal é dali mesmo.” A pesquisadora ficou incumbida de levantar informações sobre a ocorrência da população.
Foram dois anos de um trabalho técnico e paciente de compilação de dados, criando uma rede de contatos. A cada relato de animal apreendido, Flávia ia até o local, coletava sangue, fazia as medidas e o manejo e guardava as informações. Durante um congresso onde apresentava os dados preliminares, um coordenador de base do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Trombetas, no Pará, fez o alerta e provou com fotos: os animais na Amazônia tinham uma coloração diferente. “Aí que surgiu a hipótese: se tem uma população adjunta há tanto tempo, provavelmente da época da formação da Caatinga, será que a gente está falando de duas espécies?”, perguntou-se. A dúvida colocou Flávia novamente em campo. Em dez anos, foram 19 expedições no Amazonas, Pará, Amapá e até no Suriname. A pesquisadora chegou a passar seis meses embrenhadas na selva junto dos yanomami, cuja ajuda foi essencial para a coleta de dados.
Finalizada a etapa de campo, Flávia começou a rodar coleções de história natural e museus onde exemplares da espécie estavam guardados, o que a fez mergulhar ainda mais no universo que tanto ama, dos naturalistas e dos ecossistemas do continente. “Quando a gente faz descrição de um taxo, de uma espécie, a gente tem que analisar a história da descrição. Então eu trabalhei muito tempo exaustivamente na literatura”, diz ela. “Quem foi, quem coletou, quem descreveu, quem foi o ilustrador, quais expedições foram.”
A pesquisadora visitou mais de 20 coleções de história natural no Peru, Colômbia, Equador, Suriname, EUA e países da Europa. “E depois de voltar com uma bagagem pesada de informações é que vem o grande desafio: você conseguir compilar todos esses dados e ver como eles corroboram com tudo o que a gente está vendo, com a genética, com a coloração, com a distribuição geográfica”, comenta. “Para você ter uma ideia, foi um ano no laboratório fazendo toda análise, extração de DNA e análise das árvores filogenéticas.”
O resultado é uma grande história para o mundo. Após 261 anos da primeira e única descrição do animal, feita pelo pai da taxonomia Carlos Lineu, Flávia e uma grande equipe de pesquisadores anunciaram, no final de 2017, que os tamanduaís são, na verdade, sete espécies. O estudo foi realizado com apoio da Fapesp, Fundação Boticário, WCS, Fapemig, CAPES e CNPq. O artigo publicado tem sessenta páginas e foi muito bem aceito pela academia. Três subespécies subiram de categoria.
De volta ao delta
Conversar com Flávia, em meio a restinga e os mangues, me dá a sensação de uma viagem ao passado. Me vem à cabeça os relatos do naturalista e explorador Alexander von Humboldt na América do Sul, nos quais a emoção de estar na natureza se mistura ao conhecimento, à curiosidade e à urgência da investigação. Entre uma fala com profundidade científica e outra, ela para, esfrega as folhas de jurema, cheira, admira a beleza da natureza e se emociona.
A pesquisa no Delta do Parnaíba é resultado de um ponto importante no processo de descrição das novas espécies. Através de estudos de datação, percebeu-se que os rios amazônicos tinham dividido as populações de tamanduaís, mas a do Nordeste continua sendo da mesma espécie que da Amazônia. Por enquanto.
Os estudos demonstraram que a população do Nordeste é, provavelmente, a mais recente, mesmo já estando em isolamento há dois ou três mil anos. Os pesquisadores decidiram manter a classificação dos dois grupos porque eles dividem as mesmas características morfológicas, apesar de possuírem indícios de que estão se especiando, ou seja, separando-se como duas espécies distintas. “Estamos tratando a população do tamanduaí do Nordeste como uma unidade evolutiva significativa”, diz Flávia. “É algo distinto, que precisa de um olhar diferenciado, de um manejo diferenciado.”
Como a espécie não ocorre na Caatinga, Flávia observou um vácuo de relatos de ocorrência na região do Delta do Parnaíba. É quando entra um personagem importante nesta história, o guia Pedro, também conhecido como Holandês. Em 2008, em meio as pesquisas das novas espécies, os estudos de Flávia foram publicados em uma revista. Pedro estava em São Paulo quando viu a reportagem e entrou em contato com a pesquisadora para avisar que sim, o animal existia na região do Delta do Parnaíba.
Pouco tempo depois de receber as fotos que comprovavam o que dizia, Flávia e Holandês já percorriam os igarapés do delta em busca dos animais. “No primeiro dia, pela parte da tarde, encontramos [o tamanduaí] no primeiro igarapé que entramos a partir do rio”, me conta o guia durante uma caminhada pelos mangues. “No outro dia saímos pela manhã e, dessa vez, achamos uma fêmea que já estava com a barriga nos últimos dias para dar à luz. A gente pegou o bicho, Flávia filmou e chorou.”
Com as descobertas facilitadas por Holandês, a equipe do Instituto Tamanduá decidiu montar a base de pesquisa na fazenda Saquinho. Toda a primeira etapa de pesquisa foi feita ali e contou com, além do apoio do Aquário de São Paulo, a recepção calorosa do casal Pedro Militão e Maria das Graças.
Para Flávia, a relação com os detentores do conhecimento tradicional é fundamental. “Eles são os grandes professores – os mateiros, os guias, as pessoas que estão comigo nessas andanças é que me ensinam, que têm o conhecimento da área, que sabem que quando floresce, quando o animal aparece, que lua é melhor para capturar, para andar, que vento, quando o vento sopra, quando a formiga anda de um lado para o outro e vai chover”, conta Flávia. “São conhecimentos tradicionais que a gente nunca vai ter. Você pode estudar muito, fazer mestrado, doutorado, pós-doutorado que nunca vai conseguir. Os verdadeiros professores são os que estão inseridos nas comunidades.”
Espécie guarda-chuva
Deixamos a Ilha Grande de Santa Isabel depois de três dias mergulhados e quase sem conexão digital, mas hospedados em uma beleza única e inóspita do litoral brasileiro. Atravessamos o rio Parnaíba e seguimos para a Ilha das Canárias, cenário onde se desenvolve a segunda etapa do projeto. Local de comunidades, de interação e colaboração.
O nosso meio de transporte agora é o quadriciclo, que nos leva para as comunidades que vivem na área da Reserva Extrativista (Resex) Delta do Parnaíba. Aqui, com apoio da Fundação Grupo Boticário e do ICMBio, o Instituto Tamanduá estuda como reflorestar as áreas de mangue. Após 15 anos trabalhando com pesquisa sistemática, genética, saúde e medicina da conservação, um novo desafio encanta Flávia Miranda: o trabalho com a paisagem. “O reflorestamento de mangue vai ser o nosso primeiro trabalho com esse viés mais amplo de paisagem”, diz ela.
Visitamos algumas das áreas de pesquisa. Passamos por três comunidades até chegar num descampado onde um mangue está secando – ninguém sabe explicar por quê. Mais uma amostra de quanto ainda falta descobrir sobre a região do Delta do Parnaíba. Flávia caminha pensativa por entre os galhos secos.
A cabeça de cientista e experiência de exploradora não deixam barato: depois de um tempo, conversa comigo e já começa a levantar hipóteses e questões para encontrar os motivos da cena que testemunhamos. Ao mesmo tempo, Alexandre coloca um drone para sobrevoar e fazer o registro da área. Karina acompanha os colegas, discutindo possibilidades. Um trabalho mais uma vez sincronizado, bonito de ver, só possível quando existe respeito e admiração como moedas de troca.
Alexandre Lopes, coordenador da base Nordeste do Instituto é parceiro de trabalho e amigo de Flávia há 17 anos. “Ela sempre foi muito proativa, desde quando a conheci estagiando no zoológico de São Paulo. Uma mulher extraordinária mesmo, referência mundial sobre tamanduás”, comentou comigo Alexandre enquanto observávamos as carnaúbas delta. “O instituto e os trabalhos de campo me ajudaram e ainda me ajudam a ser quem eu sou.”
A abertura para o estudo de novas disciplinas e o respiro para pensar são atitudes mais recentes na vida da pesquisadora. Em 2013 ela sofreu um grave acidente em campo, no Pantanal. Ao tentar anestesiar um tamanduá-bandeira, uma falha de comunicação entre a equipe permitiu que o animal a agarrasse. Foi um ano e meio afastada das atividades de campo, tempo suficiente para fazer mudanças e amadurecer. “Foi um momento de processo criativo, um momento onde eu pude parar, entender, refletir, ler, estudar e pensar”, diz ela. “Nunca tive tantos insights na vida. Foi aí que eu ouvi algo que me falou: ‘Eu quero saber o que a Flávia pensa’.” Segundo ela, passou a por os pensamentos no papel, escutar mais, colocar os planos em ação, criar conceitos, enfim, amadurecer.
O reflorestamento de mangues passa tanto por esse novo processo quanto pela alma de naturalista. Olhar uma espécie isolada não faz sentido nenhum sem pensar no ambiente e nas comunidades que ali habitam. Esse é um dos motivos que fazem Flávia considerar o tamanduaí do Nordeste uma espécie guarda-chuva – ela ajuda a mostrar a importância do mangue. “É um animal bonito e que vai realmente trabalhar junto para que a gente possa preservar”, diz ela. “Mas a ideia é que a gente consiga manter o ambiente conservado para todas as espécies e para as comunidades que vivem aqui.”
Não bastasse abrir a frente de reflorestamento de mangues para a conservação do tamanduaí a fim de salvar os corredores importantes para a espécie, testemunhamos um momento especial para toda a equipe do Instituto Tamanduá. No nosso último dia no delta, foi inaugurada a Casa de Educação Ambiental, aberta para todas as comunidades da Resex. Foi um momento de emoção, numa noite de lua cheia. Flagrei Flávia chorando algumas vezes. Karina e Alexandre também estavam bem emocionados. No trabalho com comunidades, o importante é estar presente e, pelo carinho mostrado por todos que estiveram na festa de inauguração, é exatamente isso que equipe do instituto tem conseguido fazer.
Saímos de lá envoltos de muitas sensações que levarão tempo para serem completamente digeridas, mas com a certeza de ter acompanhado o início de uma nova aventura científica. Uma aventura feita como antigamente e da forma que mais inspira Flávia: com muitas redes, conversas com as comunidades, viagens por rios, intersecções naturais, dúvidas, descobertas de novos caminhos e com a ciência de que a natureza é pródiga para quem lê suas formas, sente suas transformações e está desperto para entendê-la.
Quando pergunto para Flávia sobre suas referências, ela cita pesquisadores brasileiros que conseguiram unir a beleza do natural com o rigor científico e, ao retomar as anotações de campo hoje, consigo ver uma similaridade impressionante.
Para as grandes respostas que estão por vir sobre os ambientes e o tamanduaí, serão necessárias muitas expedições pelos mangues, muitas perguntas e a infalível intuição misturada à ciência e à história natural.
Ainda bem que é Flávia Miranda, só poderia ser ela, que está à frente disso.
Fonte: Paulina Chamorro – National Geographic