O evento, que acontece quando algas simbiontes morrem devido ao aumento de temperatura da água, foi registrado em recifes desde o norte da Bahia até o Rio Grande do Norte.
Nem tudo são golfinhos, tartarugas e baleias voltando o ocupar áreas que antes não víamos. Enquanto o planeta convive com a pandemia, pelas águas do Nordeste brasileiro outra epidemia se alastra desde o último verão devido à temperatura do mar acima da média, uma anomalia térmica. E esta doença está afetando outro tipo de vida animal marinha.
Pesquisadores alertam para um grande evento de branqueamento em recifes de corais desde o norte de Salvador, na Bahia, até o Rio Grande do Norte. Com águas chegando a 30° C, 2 graus acima da média para a época, o NOAA – a agência do governo americano que monitora oceanos – emitiu o alerta 2 de branqueamento, o mais alto, quando existe a possibilidade de morte de corais. A agência monitora corais do mundo inteiro e tem sete estações virtuais na costa brasileira.
O fenômeno está acontecendo em uma região emblemática do país, de recifes rasos, e atinge em cheio unidades de conservação como a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa do Corais, que vai do sul de Pernambuco até Alagoas e encobre cidades turísticas importantes. O branqueamento também foi registrado na APA Estadual dos Recifes de Corais, no Rio Grande do Norte, e APA Estadual de Guadalupe, Parque Municipal Marinho de Tamandaré, arquipélago de Fernando de Noronha e Reserva Biológica Atol da Rocas, em Pernambuco.
“O fenômeno do branqueamento ocorre por perda das zooxantelas, algas simbiontes que vivem no tecido dos corais. Com o stress térmico, elas são expelidas, mas o coral continua se alimentando e pode sobreviver e recuperar as zooxantelas”, explica a pesquisadora Beatrice Padovani, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Porém, durante o período de stress o coral, que é um animal e normalmente se beneficia dos produtos da fotossíntese das algas, “passa fome” e fica mais suscetível a doenças e competição. Se isso for prolongado, a colônia pode sofrer mortalidade total ou parcial.”
Padovani é uma das maiores autoridades sobre corais no Brasil. Além de dar aulas na UFPE, ela coordena a rede de voluntários que monitoram recifes Reef Check Brasil e o Programa Ecológico de Longa Duração – Tamandaré Sustentável (PELD-TMAS), financiado pelo CNPQ e UFPE. Além disso, é uma das personagens da série de reportagens Mulheres na Conservação.
A pesquisadora explica que o fenômeno este ano, que também atinge a Austrália, é uma anomalia térmica, um evento no qual a temperatura superficial da água do mar fica acima da média histórica. O que preocupa agora é a frequência – está ficando crônico. Este é o terceiro fenômeno de branqueamento de corais nos últimos cinco anos no Nordeste.
Novos problemas
Em 2019 também foram registrados eventos de branqueamento na costa, mas apenas na área mais ao sul da distribuição dos recifes de coral, que se recuperaram.
A ocorrência do fenômeno não significa necessariamente que vão morrer. Para os pesquisadores, o evento deste ano é mais grave por terem frequência e intensidades maiores.
Segundo Padovani, foram observadas colônias que morreram depois de serem atingidas por águas aquecidas em anos seguidos. “[Essa] ocorrência sequencial de anomalias térmicas é um stress maior do que os corais podem suportar. Os eventos de aquecimento são “normais” quando ocorrem como fenômenos esporádicos, ou seja, em ciclos periódicos intercalados por períodos mais frios ou neutros”, disse Padovani. “Eventos intensos e sequenciais são o que se prevê em função do aquecimento global, e as perspectivas para os recifes de coral do mundo não são boas, particularmente quando não vemos perspectivas de mudança dos padrões de emissão de carbono.”
A pesquisadora também destaca que o que acontece aqui também se passa em outras partes do mundo. “Este evento também está ocorrendo em escala global e, no geral, o que se tem dito é que, com o aquecimento global, não precisamos mais de El Niño para termos anomalias térmicas como esta.”
Ciência cidadã e satélites
A região, que também foi especialmente afetada pelo ainda misterioso derramamento de óleo em meados de 2019, agora passa por mais uma crise. Desde o início da pandemia e das medidas de isolamento social, levantamento de dados estão limitados e, para se manter informados, os pesquisadores contam com uma rede de pesquisadores, voluntários, pescadores, tecnologia e saber popular.
O primeiro alerta veio por Tonho, jangadeiro e pescador em Tamandaré e colaborador do Reef Check Brasil. Em outubro de 2019 ele acompanhou esta mesma repórter até corais que haviam passado por eventos de branqueamento, mas que já estavam se recuperando.
[Veja também: Para recuperar a paisagem marinha do Brasil, esta pesquisadora une ciência e saber popular]
Tonho fez o alerta de branqueamento em massa em 15 de fevereiro de 2020. No dia seguinte, a NOAA emitiu seu alerta. Os jangadeiros de Tamandaré são treinados e já monitoram há algum tempo os recifes de coral na região da APA Costa do Corais. O turismo de atrativos naturais está fortemente associado à conservação dos recifes de coral, gerando renda para a comunidade local.
Outra fonte de informações, além dos alertas da NOAA que tem três pontos de avistagem de satélite nesta área do Nordeste, são ONGs como o grupo Salve Maracaípe, o programa De Olho nos Corais e parceiros de mergulho da Reef Check Brasil.
No Arquipélago de Fernando de Noronha, antes das medidas de isolamento, os voluntários do Reef Check também tinham registrado o início de branqueamento. Como as unidades de conservação estão fechadas para atividades de campo, o monitoramento dos corais está limitado.
Com os dados e imagens levantados antes da pandemia, já é possível confirmar a ocorrência do branqueamento, mas as consequências, como mortandade em massa, ainda não são possíveis de concluir. “O evento ainda está em curso e a extensão dos danos só poderá ser conhecida após o término da anomalia climática, uma vez que, após o impacto, efeitos como recuperação ou morte ainda são esperados por vários meses”, diz Padovani.
Novas forma de interação
Vale lembrar que os recifes costeiros, mais rasos, sofrem de forma intensa anualmente outros impactos, como a poluição por plástico descartado e esgoto. Além de servir como ambiente seguro para a reprodução de certas espécies – como os gigantes meros – e proteger a costa de erosão por ondas, os recifes são essenciais para as comunidades locais por suportar atividades econômicas como a pesca artesanal e o turismo.
Os impactos diretos das atividades humanas podem contribuir para que a tragédia seja ainda maior. Competição e doenças são as principais causas de mortalidade secundária de corais após o branqueamento. Enquanto não sabemos qual será o impacto de mortandade dos corais nas águas do Nordeste brasileiro, algumas coisas poderiam já estar sendo feitas para minimizar os danos na costa brasileira. E não só para os corais.
Para Padovani, que também é especialista em biologia da conservação, temos agora uma chance de olhar para a Terra de uma forma diferente. “Sabemos que temos que tratar melhor o planeta. Que temos que tratar melhor a zona costeira. Que temos que saber resolver problemas antigos. E parar de inserir no nosso normal o que não é normal”, diz ela, referindo-se a problemas que antes eram pontuais e condenados e hoje são tolerados. “Esgoto não era normal, agora é normal. O plástico até dez anos atrás não era normal, agora é normal. E o aquecimento global virou normal também. A gente vai começar a perder tudo e não vão notar.”
Fonte: National Geographic Brasil