Série de novas pesquisas apresenta indicativos sobre os pontos e formas de dispersão dos microplásticos.
O arquipélago das Maldivas, no Oceano Índico, é formado por 1192 ilhas. Em 1992, o governo acrescentou mais uma: uma estrutura artificial utilizada como aterro sanitário, onde 500 toneladas de lixo são despejadas todos os dias.
Dois clichês sobre a vida em ilhas em todo o mundo são especialmente válidos para as Maldivas: a maior parte dos bens de consumo precisa ser trazida de fora e a maioria dos resíduos é produzida por turistas. Nas Maldivas, nação em desenvolvimento com escassa industrialização local, um único turista produz por dia quase o dobro do lixo de um morador da capital Malé e cinco vezes mais do que os moradores das demais 200 ilhas povoadas, segundo estatísticas do governo. Consequentemente, a pequena nação insular foi classificada no ano passado como a quarta maior produtora do mundo de resíduos mal administrados per capita.
Agora, cientistas marinhos da Universidade Flinders, perto de Adelaide, na Austrália, acrescentaram outra estatística previsível à triste história do lixo nas Maldivas: o arquipélago, famoso por sua rica biodiversidade marinha, também abriga os mais elevados níveis mundiais de microplásticos em suas praias e nas águas próximas à costa.
Em 22 pontos em Naifaru, a ilha mais populosa, a equipe da Universidade Flinders contabilizou altas concentrações de microplásticos na areia das praias e nas águas rasas de recifes de corais. Além do volume assustador, a equipe fez uma descoberta ainda mais desanimadora: a maioria das partículas possuía o mesmo tamanho das presas consumidas por diversos animais marinhos no recife.
Não foi uma boa notícia para um ecossistema marinho tropical que abriga mais de 1,1 mil espécies de peixes e 929 outras espécies, como anfíbios e baleias, além de 170 espécies de aves marinhas. Dos 71 peixes-porco coletados pelos pesquisadores, todos continham plástico em seus estômagos, em média oito fibras por peixe.
“O tamanho dos microplásticos é extremamente importante porque é consumido por invertebrados e peixes menores, que posteriormente servem de alimento para peixes maiores”, afirma Karen Burke Da Silva, bióloga de conservação da Universidade Flinders, autora principal do estudo.
As descobertas nas Maldivas, publicadas em 2 de agosto no periódico Science of the Total Environment, fazem parte de um impressionante conjunto de estudos científicos publicados neste ano que oferecem novas informações sobre essa catástrofe causada pelos plásticos — e que podem contribuir com iniciativas para combatê-la.
O ciclo dos microplásticos
“Para entender como reduzir a poluição causada pelo descarte de objetos de plástico é preciso conhecer seu ciclo, afirma Chelsea Rochman, ecologista marinha da Universidade de Toronto. “Estamos cientes da presença do plástico, mas ainda falta determinar o ritmo de dispersão do plástico nesses locais, nos principais pontos, e o que ocorre com o plástico à medida que circula pelos ecossistemas.”
Enquanto a maioria das pesquisas iniciais se concentra em plásticos maiores encontrados nas praias e naqueles que flutuam na superfície da água, fragmentos plásticos menos visíveis e mais onipresentes se alastraram por quase todos os cantos da Terra, desde as mais profundas fossas marítimas até as montanhas alpinas mais altas. Alguns microplásticos são tão pequenos que compõem a poeira soprada ao redor do planeta no alto na atmosfera.
Nos últimos anos, cientistas monitoraram a circulação dos microplásticos em milhares de locais. A nova pesquisa marca uma mudança de enfoque no estudo do que Rochman denomina “ciclo dos microplásticos”: como ocorre a circulação de microplásticos, onde os microplásticos ficam acumulados e como são transformados durante o caminho percorrido.
O termo “microplásticos” refere-se a partículas plásticas que medem menos de cinco milímetros. Há dois tipos principais.
Os microplásticos primários, como, por exemplo, microesferas usadas em produtos de higiene pessoal ou esferas utilizadas na fabricação de plásticos, são produzidos intencionalmente em pequenos tamanhos. Já os microplásticos secundários são consequência de uma das características mais valorizadas do plástico: sua durabilidade. Esses plásticos surgem com o descarte de produtos após serem partidos nos oceanos pela ação das ondas e da luz solar. Com o tempo, os fragmentos se tornam cada vez menores. Acredita-se que se perpetuarão por séculos.
Os cientistas ainda tentam responder a principal questão por trás da pesquisa: qual é o mal causado pela ingestão de microplásticos à saúde humana? Microplásticos foram detectados na água potável, no sal e em outros alimentos. Até agora, nenhum mal foi comprovado. Mas no caso de peixes e outros animais marinhos e de água doce, estudos revelaram que os microplásticos podem afetar os sistemas reprodutivos, impedir o crescimento, reduzir o apetite, causar inflamação tecidual e danos hepáticos, além de alterar o comportamento alimentar.
Números cada vez maiores nos oceanos
Em 2015, o total anual de resíduos plásticos despejados nos oceanos das regiões costeiras do mundo foi estimado em uma média de 8,8 milhões de toneladas. No mês passado, em um novo relatório divulgado pela ONG Pew Charitable Trusts and Systemiq, formadora de ideias ambientais com sede em Londres, os cientistas concluíram que cerca de 11% desse total despejado nos mares — em torno de 1,4 milhão de toneladas — possui quatro principais fontes de microplásticos: pneus, esferas de produção, produtos têxteis e microesferas.
Se a “torneira” dos oceanos fosse desligada amanhã, os microplásticos continuariam a se acumular durante gerações a partir do lixo já existente nos mares. A fragmentação contínua dificulta o cálculo da quantidade de microplásticos que flutua atualmente nos oceanos. A maioria das estimativas considera apenas o que está presente na superfície da água. Modelos de estimativas realizados em 2014 chegaram a uma cifra entre 5,25 e 50 trilhões de fragmentos. Novas pesquisas conduzidas este ano descobriram que essas estimativas são baixas demais.
Uma equipe do Laboratório Marítimo de Plymouth, da Universidade de Exeter e da Universidade King’s College no Reino Unido e o Projeto Rozalia em Vermont, que forneceu o barco para a pesquisa, recolheram amostras de águas costeiras em ambos os lados do Atlântico. Os pesquisadores utilizaram redes com malhas menores para coletar nanoplásticos menores (RK7) e fibras semelhantes a presas que não foram capturadas nos levantamentos anteriores. De acordo com seu levantamento, publicado no periódico Environmental Pollution, o volume total de microplásticos em todo o mundo está entre 12,5 e 125 trilhões de partículas — ao menos o dobro do número anterior.
“Temos subestimado bastante a quantidade de microplásticos no mundo porque utilizamos métodos tradicionais de amostragem”, afirma Matthew Cole, ecologista marinho de Plymouth e coautor do estudo. “Com redes suficientemente pequenas, é possível revelar um mapa oculto e invisível dentro dos oceanos. E o mapa é apenas da superfície. Esses cálculos globais não consideram tudo o que afunda.”
Os cientistas admitem há muito tempo que o fundo do mar se tornou um grande depósito de microplásticos. Mas pouco se sabia sobre sua concentração e distribuição no fundo do mar. Uma equipe da Alemanha, França e Reino Unido constatou que fortes correntezas no fundo do mar desempenham um papel crucial na concentração de microplásticos em alguns pontos específicos — versões do fundo do mar das “zonas de acúmulos de lixo” flutuantes, formadas dentro de turbilhões de correntes oceânicas na superfície.
No fundo do mar Mediterrâneo a oeste da Itália, a equipe encontrou grandes quantidades de microplásticos acumuladas até mesmo em fossas no fundo do mar, número nunca antes registrado. Um único metro quadrado continha uma fina camada de até 1,9 milhão de microplásticos.
Infelizmente, esses locais também são importantes habitats de esponjas, corais de águas frias e ascídias ou seringas-do-mar, especialmente vulneráveis aos microplásticos porque são organismos filtradores.
A superfície terrestre também não foi poupada
Os pesquisadores também estão coletando microplásticos na água doce e no solo, ao mesmo tempo em que identificam possíveis pontos de entrada na cadeia alimentar.
Em 15 pontos em rios de Gales do Sul, os cientistas analisaram os excrementos e regurgitações de melros-d’água e descobriram que os pássaros, que se alimentam de invertebrados de água doce que ingerem plásticos, estavam consumindo cerca de 200 fragmentos plásticos por dia — criando oportunidades para o plástico subir na cadeia alimentar, segundo as conclusões dos cientistas. Suas descobertas foram publicadas no periódico Global Change Biology.
Cientistas da Academia Chinesa de Ciências Agrícolas concluíram que a prática agrícola de cobrir o solo com filmes plásticos pode representar um risco em longo prazo para a produção agrícola. A técnica consiste na cobertura de plantações com folhas plásticas para conservar a umidade, controlar ervas daninhas e aumentar a temperatura do solo, de modo a aumentar a produção agrícola, em média, entre 25 e 42%. A prática é amplamente empregada em pequenas propriedades rurais na China, que representam cerca de 13% da área total agrícola da China. Seu uso está em expansão na China e em todo o mundo, à medida que se acentua a estiagem em regiões áridas e semiáridas.
As folhas plásticas mais utilizadas rasgam e rompem-se facilmente com o decorrer do tempo. Em uma pesquisa publicada no periódico Global Change Biology, a equipe de estudos concluiu que a prática pode ser segura se as folhas forem recolhidas após a colheita. Mas 66% dos produtores rurais chineses consultados disseram aos cientistas que não realizam o procedimento. Os pesquisadores estimam que mais de meio milhão de toneladas de plástico foram acumuladas nos solos chineses.
Fragmentos plásticos alteram a estrutura e a composição química do solo; aditivos, como ftalatos, foram associados à contaminação do solo. Cultivos em solos que contêm detritos plásticos têm menor produtividade, altura de plantas e peso das raízes. O estudo apurou que a poluição por plástico já reduziu a produção de algodão na China.
Pelo ar e por toda parte
As pesquisas sobre como ocorre a dispersão dos microplásticos pelo mundo estavam concentradas nos oceanos. Segundo Rochman, a movimentação da poeira global é estudada há décadas, porém só recentemente os cientistas descobriram que a poeira transporta “quantidades significativas de microplásticos”.
Janice Brahney, cientista da Universidade Estadual de Utah, encontrou plásticos ao estudar como os ventos espalham nutrientes como nitrogênio e fósforo pelo oeste dos Estados Unidos. “Meu campo de pesquisa é a poeira e seu transporte de nutrientes a ecossistemas distantes”, conta ela.
Contudo, ao examinar sob o microscópio amostras coletadas em 11 parques nacionais e matas, ela ficou chocada com as pequenas fibras de plástico encontradas.
“No início, pensei que havia contaminado minha amostra”, conta Brahney. “Então percebi que eu nem deveria ter me surpreendido.”
Ela concluiu que mais de mil toneladas de microplásticos por ano se depositam em matas e parques nacionais no oeste dos Estados Unidos. Sua análise, publicada na revista científica Science, constatou que os microplásticos percorrem diferentes níveis da atmosfera. Partículas maiores são depositadas em locais com condições climáticas úmidas e provavelmente provêm de perto. Já fibras pequenas e leves percorrem longas distâncias entre continentes e integram a movimentação global de poeira, antes de cair sobre o solo, geralmente em locais com clima seco.
“Está caindo plástico do céu no planeta inteiro”, afirma Brahney. “O que todos deveriam saber é que, apesar de percebermos esse problema só agora, não é algo novo. Vai piorar antes de melhorar. Há tanto que desconhecemos, é muito difícil compreender totalmente as implicações dos plásticos que se alastraram por toda parte.”
Fonte: National Geographic Brasil