Se formos contar quantas crianças contraíram a covid-19 desde fevereiro nos Estados Unidos, o número ultrapassa o da população de Boston.
Felizmente, a maioria das 697 mil crianças com casos confirmados ou suspeitos contraiu uma versão relativamente leve da doença — e entre 16 e 45% das crianças talvez não manifeste nenhum sintoma. Ainda assim, alguns indivíduos desse grupo — clinicamente definidos como menores de 21 anos — desenvolvem uma doença séria, conhecida como síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica, ou MIS-C.
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Após meses de pesquisas realizadas com urgência, o que começou como um conjunto desconhecido de sintomas agora é uma doença definida, com sinais precoces que incluem febre, erupções cutâneas, dores abdominais, diarreia e vômito. Embora a MIS-C seja rara — com cerca de mil casos confirmados nos Estados Unidos até o momento — ela pode avançar para uma inflamação grave em questão de horas, frequentemente requer cuidados intensivos e, às vezes, leva a óbito. Um relatório recente dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) dos Estados Unidos analisou as mortes por coronavírus em pessoas com menos de 21 anos e constatou que a maioria ocorreu devido à MIS-C.
“Tudo acontece de forma muito rápida, e as crianças ficam tão debilitadas, que 70% precisam ser internadas na UTI”, alerta Alvaro Moreira, médico cientista do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em San Antonio, que publicou recentemente uma análise dos resultados de diversos artigos científicos da revista EClinicalMedicine, com base em 662 casos de MIS-C.
Ainda que os estágios iniciais dessa síndrome já sejam conhecidos, dúvidas sobre sua verdadeira prevalência e seus resultados em longo prazo começam a surgir. A MIS-C geralmente se desenvolve algumas semanas após a manifestação dos sinais típicos do coronavírus em crianças, como tosse, dores no corpo e coriza. Estudos também mostraram que a doença pode aparecer após uma infecção assintomática do vírus.
“Essa é a parte assustadora”, acrescenta Moreira. “Ela pode se desenvolver mesmo quando os pais da criança nem sabem que ela contraiu covid-19.”
As sequelas mais duradouras também estão sendo investigadas após alguns estudos terem descoberto que, mesmo depois de saírem das vias aéreas, o coronavírus pode continuar se replicando no sistema digestivo, principalmente em crianças. É uma descoberta cujas consequências vão muito além dos casos pediátricos raros.
“Dados comprovam que o vírus pode permanecer nas fezes por até um mês”, explicou Siew Ng, diretora associada do Centro de Pesquisa da Microbiota Intestinal, da Universidade Chinesa de Hong Kong. Outra pesquisa recente sobre a estrutura viral pode ajudar na compreensão do impacto gastrointestinal da doença e por que o sistema imunológico de alguns pacientes é alterado. “O problema é que a covid-19 não é apenas uma doença respiratória.”
Superantígeno do coronavírus
Quando os médicos encontraram esses sintomas estranhos pela primeira vez em crianças, primeiro na Itália e depois no Reino Unido, eles suspeitaram da doença de Kawasaki, outra condição grave que acomete crianças e causa inflamação nos vasos sanguíneos. Embora alguns de seus sintomas clínicos sejam similares, há diferenças claras, alega Moshe Arditi, especialista na doença de Kawasaki e professor de pediatria e ciências biomédicas no Cedars-Sinai, um centro médico em Los Angeles.
A maioria dos pacientes com MIS-C é mais velha. A idade média dos acometidos pela doença é de nove anos, ao passo que a doença de Kawasaki costuma afetar crianças com menos de dois anos. Eles também carregam níveis mais altos de biomarcadores — proteínas encontradas em exames de sangue — que fornecem um prognóstico dos níveis de inflamação, e os pacientes também sentem fortes dores abdominais “a ponto de os casos serem confundidos com apendicite”, adverte Arditi.
Junto com sua colaboradora Ivet Bahar, renomada professora de biologia computacional e de sistemas da Universidade de Pittsburgh, Arditi começou a procurar indicações de como o vírus poderia causar essas reações. O SARS-CoV-2 tem um formato esférico, com pontas que se fixam a uma proteína na superfície das células humanas chamada ECA2. Parece uma versão microscópica daqueles carrapichos que grudam nas meias depois de caminharmos na grama.
À diferença de outros coronavírus conhecidos, Bahar e Arditi descobriram que o SARS-CoV-2 possui uma característica única em uma parte de suas espículas. Esse fragmento da espícula se assemelha às toxinas bacterianas conhecidas como superantígenos — proteínas que geram reação excessiva das células T, agente vital do nosso sistema imunológico. Outra pesquisa relata que a versão grave da covid-19 resulta de uma reação exagerada do sistema imunológico ao coronavírus, causando sequências de inflamação excessiva que danificam muitas partes do nosso organismo de forma permanente. Arditi explica que esse fragmento da espícula talvez explique por que a MIS-C seja semelhante ao que acontece durante infecções sanguíneas, como sepse ou síndrome do choque tóxico relacionada à infecção bacteriana.
“Imaginávamos que a região da espícula gerasse o mesmo tipo de resposta intensa [como outros superantígenos]”, reitera Bahar. Essa revelação pode estabelecer uma conexão sobre como e por que o coronavírus causa outros tipos de hiperinflamação. Arditi complementa: “Finalmente encontramos o segmento viral da espícula que pode causar todas essas respostas imunológicas” — não apenas na MIS-C, mas também em casos de covid-19 em adultos.
Um novo estudo dos CDC, relegado a segundo plano porque foi publicado no mesmo fim de semana em que o resultado positivo para covid-19 do presidente Trump foi divulgado, mostra que os adultos contaminados pelo vírus também podem desenvolver uma doença grave semelhante à MIS-C. O relatório descreveu 27 pacientes com “sintomas cardiovasculares, gastrointestinais, dermatológicos e neurológicos sem doença respiratória grave” e nomeou a doença como MIS-A — cuja letra A corresponde a “adultos”.
E qual seria a relação entre a MIS-C e a covid-19 de longa duração?
O choque tóxico também tem sido associado à disfunção mental de curto e longo prazo, e é por isso que Bahar se pergunta se a qualidade do superantígeno da espícula do SARS-CoV-2 também é capaz de explicar a porcentagem significativa de sintomas neurológicos detectados em pacientes adultos com covid-19. Outro estudo relatou que quase um terço dos pacientes internados com covid-19 apresentaram alteração da função cognitiva muito depois de terem recebido alta.
A característica que diferencia a MIS-C da MIS-A são os sintomas gastrointestinais. Arditi esclarece que, novamente, há uma indicação que pode ser encontrada na região superantigênica da espícula do vírus.
Como esses sintomas podem levar semanas para se manifestar após uma infecção inicial, os testes que coletam amostras da secreção nasal e os testes genéticos — os métodos atualmente empregados — costumam ter resultado negativo. Alguns pesquisadores suspeitam que o vírus permaneça escondido no organismo enquanto a síndrome MIS-C ocorre, possivelmente no trato gastrointestinal.
“Nosso ventre carrega o nosso maior órgão imunológico, o intestino”, constata Ng, considerando que nosso trato digestivo contém uma série de células imunológicas. “Isso não pode ser ignorado.”
A proteína da espícula do SARS-CoV-2 é estruturalmente semelhante à enterotoxina B estafilocócica (SEB), que é produzida por bactérias e é uma das toxinas gastrointestinais mais fortes conhecidas na medicina. “Uma quantidade ínfima dessa toxina na comida consegue deixar você muito doente, com dores abdominais fortíssimas e vômito intenso”, explica Arditi. Os coronavírus respiratórios que infectam humanos evoluíram de ancestrais conhecidos por habitarem o intestino de morcegos, e o vírus responsável pela epidemia inicial de SRAG em 2002-2003 causou doenças gastrointestinais graves.
Uma nova pesquisa publicada na revista científica Gut complementa essas descobertas, mostrando que o vírus permanece no trato digestivo muito depois de desaparecer do nariz, da boca e dos pulmões. Ng, principal autora do artigo, inclusive desenvolveu um exame de fezes para coronavírus. Segundo ela, essa é a melhor maneira de analisar crianças e identificar possíveis fontes de transmissão silenciosa.
“É seguro e fácil de coletar amostras”, ela explica. “As crianças fazem cocô regularmente”. Hong Kong tem utilizado esses testes desde março para analisar viajantes que possuem risco de infecção.
Em junho, outro estudo realizado com poucos participantes encontrou o vírus nas fezes de duas crianças 20 dias depois de os testes em amostras da secreção da garganta terem dado negativo. Uma pesquisa semelhante do grupo de Ng descobriu que alguns pacientes infectados pela covid-19, incluindo casos pediátricos, continuaram apresentando disbiose intestinal — o termo utilizado para desequilíbrio microbiano — mesmo depois de se recuperarem de seus sintomas iniciais.
“Ficamos surpresos ao ver a gravidade dessa disbiose, mesmo em pacientes com casos leves ou moderados”, exclamou Ng, cuja equipe está conduzindo um ensaio clínico para determinar se a alteração da composição microbiana do intestino pode amenizar a covid-19.
Nosso microbioma está em constante mudança com base no ambiente em que vivemos, na nossa dieta e nossa idade. Mas Ng afirma que as crianças saudáveis geralmente possuem alguns “anos dourados” no que se refere à existência de um microbioma equilibrado, que pode mudar dos dois aos 12 anos — aproximadamente a mesma idade em que os pré-adolescentes começam a reagir à covid-19 da mesma forma que os adultos. Quando a equipe de Ng analisou os microbiomas dos pacientes como parte de um outro artigo publicado em setembro, foram identificados 23 tipos de bactérias intestinais ausentes que estavam associadas ao aumento da gravidade da covid-19.
“Conhecemos bem a maioria das funções dessas bactérias. Elas nos ajudam a produzir ácidos graxos de cadeia curta”, conclui ela.
O que está em jogo em longo prazo
À medida que essas perguntas começam a ser feitas, ainda não se sabe de que forma as crianças com MIS-C irão reagir. A maioria irá se recuperar desde que receba o tratamento adequado, mas Moreira constatou que as internações foram prolongadas, oito dias em média. E ele avisa que suas implicações em longo prazo são desconhecidas.
“Sabemos que, posteriormente, os pacientes com doença de Kawasaki podem desenvolver aneurisma, trombose ou coágulos sanguíneos e que possuem maior risco de hipertensão e ataques cardíacos em uma idade mais jovem”, ele acrescenta.
As consequências duradouras da doença podem ser diferentes para pessoas negras, indígenas e de outras etnias: tanto a revisão de Moreira quanto o relatório dos CDC sobre a MIS-C descobriram que, assim como acontece com os adultos que contraem o vírus, as disparidades étnicas eram evidentes. Das 20 crianças que morreram de MIS-C nos Estados Unidos, 45% eram hispânicas, 29% eram negras e 4%, indígenas americanas.
Outros fatores de risco incluem doenças subjacentes, como obesidade, que pode enfraquecer o sistema cardiovascular. É provável que ocorra danos cardíacos em muitos casos de MIS-C, criando preocupações sobre os efeitos ao longo da vida, diz Joseph Abrams, epidemiologista dos CDC e autor de um estudo recente sobre MIS-C.
Mesmo que a doença seja rara, segundo Abrams, ela pode afetar muitas crianças devido às proporções alarmantes da pandemia. E, ele acrescenta, “a morte de qualquer criança é uma situação terrível e trágica”.
Fonte: National Geographic Brasil