Os principais supermercados e restaurantes de fast food do Reino Unido estão vendendo carne de aves que foram alimentadas com soja ligada a milhares de queimadas e centenas de quilômetros quadrados de desmatamento no Cerrado brasileiro.
A revelação foi feita nesta quarta-feira (25/11) em uma investigação conduzida pelo Escritório de Jornalismo Investigativo, uma organização sem fins lucrativos do Reino Unido, em parceria com outros grupos, incluindo o jornal britânico The Guardian.
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“A combinação de uma proteção mínima do Cerrado – um sumidouro de carbono de importância global e habitat de vida selvagem – com uma cadeia de suprimentos obscura e sistemas de rotulagem confusos significa que os consumidores podem estar inadvertidamente contribuindo para a destruição [do bioma]”, afirma a investigação.
O frango vendido pelas redes Tesco, Asda, Lidl, Nando’s e McDonald’s é produzido no Reino Unido e alimentado com soja fornecida pela gigante do agronegócio Cargill, a segunda maior empresa privada dos Estados Unidos. Segundo o grupo apurou, quase metade dessa soja é importada pela companhia americana a partir de áreas do Cerrado.
A reportagem estima que a Cargill compre do Brasil e envie ao Reino Unido mais de 100.000 toneladas de grãos de soja provenientes do Cerrado todos os anos.
Entre os carregamentos mais recentes estão 66.000 toneladas de grãos de soja que desembarcaram nas docas de Liverpool em agosto, em um navio-tanque alugado pela Cargill – esse foi o foco da investigação colaborativa liderada pelo Escritório de Jornalismo Investigativo.
A embarcação foi carregada no Terminal Portuário Cotegipe, em Salvador, com grãos provenientes da região de Matopiba, que compreende o Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e responde por grande parte da produção brasileira de grãos e fibras. Alguns deles vinham, inclusive, de Formosa do Rio Preto, uma das áreas mais desmatadas do Cerrado.
Além da Cargill, os fornecedores incluíam a Bunge, maior exportadora de soja do Brasil, e a ADM, outra importante produtora de alimentos dos EUA, relatou a reportagem.
Após cruzar o Atlântico, todo o carregamento foi descarregado em uma usina de esmagamento de soja da Cargill em Liverpool, de acordo com registros marítimos e alfandegários.
A investigação rastreou a maneira como o grão processado ali é transportado de caminhão para moinhos em Hereford e Banbury, onde é misturado com trigo e outros ingredientes para a produção de ração para animais criados para pecuária. De lá, o alimento segue para granjas da Avara, uma joint venture entre a Cargill e a empresa Faccenda Food.
A Avara é responsável por alimentar e engordar as aves, que são abatidas, processadas e embaladas para serem distribuídas às redes Tesco, Asda, Lidl, Nando’s, McDonald’s, entre outros varejistas.
A Cargill, fornecedora da Avara, compra soja de muitos fornecedores de áreas no Cerrado, pelo menos nove dos quais estiveram envolvidos em desmatamentos recentes, afirmou a reportagem.
Números obtidos pela consultoria Aidenvironment revelaram que mais de 800 quilômetros quadrados de área desmatada e mais de 12.000 focos de incêndio foram registrados desde 2015 em terras usadas ou pertencentes a fornecedores de soja da Cargill no Cerrado.
Sabe-se que, muitas vezes, queimadas são provocadas para limpar a floresta e ajudar na expansão agrícola. Imagens obtidas pela reportagem mostram, por exemplo, grandes incêndios em uma área pertencente a um dos fornecedores da empresa americana, em outubro.
A Cargill, por sua vez, afirma que não quebrou regras nem suas próprias políticas ao comprar soja desse fornecedor em questão, e deixou claro que não compra de terras desmatadas ilegalmente.
Ao Guardian, o McDonald’s do Reino Unido afirmou que pretende eliminar os traços de desmatamento de suas cadeias de abastecimento globais até 2030. O Nando’s, por sua vez, disse que está buscando alternativas à soja, enquanto Asda, Lidl e Tesco garantiram que estão trabalhando para comprar apenas soja sustentável certificada até 2025.
Queimadas e desmatamento sob Bolsonaro
A revelação vem num ano em que alguns biomas brasileiros enfrentam as piores queimadas dos últimos tempos, em parte atribuídas à política ambiental do governo de Jair Bolsonaro, que derreteu a imagem do país no exterior e é alvo de constantes críticas internacionais. Ela representa ainda um risco econômico, com uma ameaça real de fuga de investidores estrangeiros.
O descaso ambiental do governo levou diversos países europeus a recuarem em relação à ratificação do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE), que encontra resistência na Alemanha, França, Irlanda e Luxemburgo. Os parlamentos de Áustria e Holanda, por exemplo, já anunciaram que não darão seu aval ao pacto.
Além disso, o Brasil perdeu recursos estrangeiros voltados ao meio ambiente. Em agosto de 2019, a Alemanha suspendeu verbas para a Amazônia no âmbito da iniciativa de proteção climática. Dias depois, foi a vez de a Noruega cortar seu crédito para o Fundo Amazônia, que já havia canalizado, juntamente com a Alemanha, mais de R$ 3 bilhões para a proteção da floresta e dos indígenas. Ambas as iniciativas continuam suspensas.
Em setembro, duas das maiores cadeias de supermercados da Alemanha, Edeka e Lidl, manifestaram preocupação com o desmatamento no Brasil e pediram que o governo alemão pressione o governo Bolsonaro a conter a devastação ambiental.
“Tendo em vista o aumento da demanda global por soja e os desenvolvimentos na região amazônica, compartilhamos suas preocupações”, dizia uma carta da Lidl enviada à eurodeputada alemã Anna Cavazzini, uma crítica ferrenha da política ambiental de Bolsonaro.
“A rede Edeka está observando os acontecimentos no Brasil com grande preocupação”, afirmou a outra rede, também em carta enviada à eurodeputada.
Fonte: Deutsche Welle