Quando a pandemia de covid-19 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março do ano passado, já havia uma corrida científica em andamento nos grandes laboratórios do mundo: a busca pela solução. Nove meses mais tarde, vacinas já começavam a ser aplicadas em massa. Mas se a prevenção à doença está na ponta da agulha, e o remédio para quem for infectado?
“Ainda não existe um remédio que traga uma cura para a covid. Existem alguns medicamentos antivirais que parecem interferir na replicação do vírus, e isso dá uma chance maior ao nosso organismo para combater a infecção. Mas nada que seja 100% efetivo”, afirma o microbiologista Leandro Lobo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
As dificuldades para conseguir um remédio do tipo esbarram na própria natureza — e indicam um longo caminho. O vírus é uma estrutura muito simples, tanto que pela biologia nem é considerado um ser vivo. Trata-se apenas de um envoltório lipídico com material genético e algumas proteínas. Justamente essa simplicidade é a salvação dos vírus.
“[Os vírus] oferecem poucos alvos farmacológicos para que um medicamento possa atuar de maneira eficaz e específica”, explica a biomédica Ana Paula Herrmann, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do portal FarmacoLógica.
Especializado em planejamento de fármacos, o químico Adriano Andricopulo, professor da Universidade de São Paulo (USP) contextualiza que, dadas as dificuldades para o desenvolvimento de um novo medicamento, muitos esforços científicos foram empregados em algo relativamente comum na área: o reposicionamento de drogas já existentes e aprovadas, utilizadas no combate a outras doenças.
É por isso que muitos estudos foram e seguem sendo realizados nesse sentido. “É um processo que possui limitações, ocorre por tentativa e erro”, contextualiza o professor. Mesmo assim, pode ser mais rápido do que todo o caminho para o desenvolvimento de um medicamento do zero — o que, segundo o especialista, envolve duas etapas fundamentais bastante complexas: a descoberta, pré-clínica; e o desenvolvimento em si, que visa a garantir segurança e eficácia. “A ciência leva tempo”, comenta.
Atalhos
Um grupo internacional de pesquisadores liderados por cientistas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e da Universidade de Giessen, na Alemanha, partiu de um modelo computacional para criar um atalho para essas tentativas e erros. O estudo foi publicado nesta quarta-feira pela revista científica Science Advances.
A partir de uma análise de como o Sars-Cov-2, o coronavírus causador da covid-19, interage com as proteínas da célula hospedeira, eles partiram de 1.917 drogas e identificaram 200 medicamentos já aprovados e em uso que poderiam ser reaproveitados para a nova doença. Um total de 126 se mostrou efetivo quanto à inibição da replicação do vírus.
Apenas dois deles foram validados em testes in vitro: o proguanil (um medicamento antimalárico) e a sulfassalazina (usado para tratar artrite reumatoide) demonstraram a ação antiviral sem danificar as células.
Este é um ponto importante, aliás. Tem a ver com um conceito chamado toxicidade seletiva, conforme explica o microbiologista Lobo. Como o vírus se utiliza das células humanas para se replicar, é necessário chegar a uma droga que consiga “matá-lo” sem causar grandes danos ao nosso organismo. “É preciso de alvos bem específicos, o que às vezes é muito difícil”, salienta o cientista.
Aí reside a dificuldade em avançar para as etapas seguintes dos testes in vitro, ou seja, aqueles realizados em condições laboratoriais, com células fora do corpo humano.
“Nesta etapa [laboratorial], muitas vezes se usam concentrações do medicamento que não podem ser utilizadas em humanos, porque são muito altas e estariam em níveis tóxicos. É o caso da ivermectina. Quando foi usada [em testes], constatou-se que foi muito mais alta [a dosagem necessária para que fosse eficaz contra o coronavírus], se tornando tóxica para a gente. Isso fez com que o medicamento fosse inviável”, diz Lobo.
No artigo científico publicado nesta quarta, os pesquisadores estrangeiros citam especificamente o proguanil e a sulfassalazina e ressaltam que a análise “abre novos caminhos para o rápido reaproveitamento de medicamentos aprovados para testes clínicos”.
Herrmann frisa que esse tipo de estudo, nessa fase, deve ser tratado apenas como levantamento de hipóteses. “Em geral, começamos com uma grande quantidade de moléculas promissoras, muita coisa que tem afinidade em modelagem computacional, [algumas delas] que têm eficácia em ensaios in vitro”, contextualiza ela. “Mas muitas simplesmente não funcionam na fase clínica, por diversas razões.”
Descartada por diversos estudos sérios e cujo uso tem sido bastante politizado, a cloroquina apareceu entre os 200 medicamentos do estudo publicado na Science Advances. Questionado pela reportagem da DW Brasil, o pesquisador Namshik Han, um dos autores do artigo e chefe de inteligência artificial no Milner Therapeutics Institute, de Cambridge, afirmou estar ciente das controvérsias acerca do remédio.
“Nosso estudo foi focado em compreender o mecanismo da doença covid e identificar candidatos promissores para o reposicionamento de medicamentos”, pontua. “Algumas pesquisas adicionais são necessárias a partir dos resultados [apresentados nesta quarta]. Temos estudado outros ângulos e esperamos publicar novos resultados em breve.”
Possibilidades
“A verdade é que [mais de um ano depois do começo da pandemia] não há nada de sensacional para combater o vírus, mas alguns remédios têm sido úteis”, afirma Andricopulo. Único medicamento aprovado no Brasil para a doença, o remdesivir é um antiviral cujos resultados “são modestos aos pacientes internados com as formas moderada ou grave da doença”, explica o químico.
“O remdesivir não é usado em larga escala, a evidência clínica é muito limitada. Foi desenvolvido originalmente para [combater] ebola, não funcionou e acabou redirecionado para covid-19”, aponta Herrmann.
Já o anti-inflamatório dexametasona tem sido usado no tratamento de pacientes graves de covid-19 — mas não atua diretamente no controle do vírus, e sim nos processos inflamatórios em decorrência da doença.
De qualquer forma, vale o alerta: nada de uso indiscriminado. “Há evidências de que ele seja eficaz na redução da mortalidade, mas só faz sentido ser usado em pessoas que estão com a doença mais avançada”, alerta Herrmann. “Ou ele pode inibir o sistema imune.”
“A cloroquina está totalmente descartada, pois todos os principais estudos sérios demonstraram sua ineficácia clínica e risco de efeitos adversos graves”, pontua Andricopulo.
A ivermectina, por sua vez, ainda vem sendo considerada em estudos clínicos — mas com poucas chances de sucesso. Na semana passada, a Universidade de Oxford divulgou que o medicamento estaria sendo testado clinicamente contra a covid-19, e isso alimentou fake news no Brasil, com mensagens deturpando que a prestigiada instituição teria concluído que o mesmo era eficaz no combate à doença.
“Oxford provavelmente incluiu esse medicamento no teste clínico porque há resultados in vitro [com dosagens mais altas do que o seguro para humanos], e esse clamor popular de quem insiste que a droga funciona”, avalia Lobo.
Coquetel de anticorpos usado em Trump
Quando o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump foi internado depois de uma infecção por Sars-Cov-2, no ano passado, noticiou-se que ele teria utilizado três medicamentos: dexametasona, remdesivir e um coquetel da empresa americana Regeneron.
Este último foi criado já dentro do contexto da covid-19. “Trata-se de um coquetel de anticorpos monoclonais “, diz Lobo. “É uma estratégia bem interessante: é o anticorpo já pronto, injetado nas pessoas que foram expostas ao vírus. Tem tido certo sucesso.”
Anticorpos monoclonais são produzidos em laboratório e supostamente conseguem exterminar o vírus após uma infecção. Monoclonal significa que os anticorpos usados são todos iguais e atacam o vírus em um alvo claramente definido.
O coquetel da Regeneron contém dois anticorpos monoclonais. De acordo com a empresa de biotecnologia, o tratamento leva a uma redução da carga viral, ou seja, da quantidade de vírus detectáveis, e a uma redução mais rápida dos sintomas.
Fonte: Deutsche Welle