Chega ao fim o uso da gasolina com chumbo

Após décadas de pressão internacional exercida por um grupo da ONU, a gasolina com chumbo parou de ser produzida.

A Argélia juntou-se ao resto do mundo e passou a proibir a venda de gasolina com chumbo.
FOTO DE OLIVER SOULAS, LAIF/REDUX

O combustível, que ainda utilizava chumbo na fórmula, finalmente foi extinto dos postos de gasolina. O último país do mundo a vendê-lo: a Argélia.

“É um dia importante”, declarou Jane Akumu, responsável pelo programa de mobilidade sustentável na África, coordenado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

Akumu faz parte de um grupo de especialistas internacionais em transporte e saúde infantil que, há décadas, se dedicam à questão da presença de chumbo em combustíveis e tintas.

Nos últimos 19 anos, os esforços para erradicar o combustível com chumbo em cada país foram conduzidos pela Parceria para combustíveis e veículos não poluentes, formada por 73 grupos industriais, governos, ONGs e outros, sob a égide do Pnuma. No entanto, se há mais de um século o chumbo é considerado um perigo para a saúde, por que essa mudança demorou tanto para acontecer?

Empresas começaram a criar aditivos com chumbo em 1921, para consertar batidas ou zunidos que poderiam danificar os motores e desperdiçar gasolina. Produtos com chumbo foram bastante promovidos e se tornaram populares, embora houvesse alternativas mais limpas — à base de álcool, por exemplo.

O chumbo que entrava nos tanques de gasolina no mundo inteiro — cerca de um grama por litro — saía pelo escapamento dos veículos em forma de partículas que permaneciam no ar antes de atingir as superfícies. A gasolina envolveu o mundo em uma camada de chumbo.

No início da década de 1970, pesquisadores tinham tanta certeza dos efeitos do chumbo na saúde que apresentaram suas pesquisas para a recém-criada Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. O Japão foi o primeiro país a banir a gasolina com chumbo, em 1980. Foi seguido pela Áustria, Canadá, Eslováquia, Dinamarca e Suécia. Nos Estados Unidos e na Alemanha, a última etapa de eliminação do combustível com chumbo ocorreu em 1996, há um quarto de século.

O acúmulo de evidências científicas sobre efeitos adversos para a saúde

Evidências dos danos causados pelo chumbo aumentaram após as proibições. 

O chumbo afeta quase todos os domínios fisiológicos do corpo humano, explica Amit Bhattacharya, professor de saúde ambiental na Universidade de Cincinnati. “Ele pode destruir os sistemas motor, cognitivo, hepático, renal, visual, tudo que você imaginar.”

Mary Jean Brown, membro do corpo docente da Faculdade de Saúde Pública Chan, da Universidade de Harvard, descreveu o ato da leitura e a crescente compreensão sobre como o chumbo pode prejudicar esta ação. “Há várias áreas que trabalham em conjunto durante uma tentativa de leitura. É necessário enxergar uma letra, que é um símbolo, juntá-la com outros símbolos, conectá-la a uma pronúncia, relacioná-la a um objeto ou uma atividade.”

Crianças que foram expostas ao chumbo têm dificuldades para realizar esses processos, que podem totalizar até 10 pontos de QI.

“Para mim, sempre esteve relacionado com a concentração”, contou Tony, um rapaz de 22 anos entrevistado no programa de rádio nacional Living on Earth, em 2003. “A escola foi difícil. Do primeiro até o 11° ano.” Tony foi um dos 300 moradores de Cincinnati que participaram do estudo mais longo do mundo sobre pessoas que foram expostas ao chumbo ainda no útero.

Menos conhecidos do que os efeitos do chumbo na aprendizagem são as maneiras com que ele afeta o equilíbrio em crianças e adultos. Este tem sido o foco do trabalho de Bhattacharya. Ele e sua equipe encontraram uma maneira de detectar deficiências induzidas pelo chumbo através de um teste rápido e não invasivo, que pode ser realizado a partir dos cinco anos de idade. Alguns problemas relacionados ao equilíbrio e movimento podem ter tratamento, se rapidamente diagnosticados. Outra pesquisadora, Kim Cecil, esclareceu uma possível causa, lembrou Bhattacharya.

“Os neurônios responsáveis pelo equilíbrio não estavam presentes nos cérebros deles. Tinham desaparecido. O chumbo os havia eliminado”, contou Bhattacharya. Ele explicou que o chumbo consegue passar através da barreira hematoencefálica, ou seja, pode atingir qualquer área.

Quanto mais os pesquisadores analisavam, mais eles constatavam a magnitude do alcance do chumbo. Atualmente, Bhattacharya tem descoberto indícios de fragilidade óssea precoce em mulheres associada à exposição ao chumbo. “Os parâmetros de fragilidade aos 30 anos são piores do que alguém com 47 anos”, ele concluiu.

Pesquisas realizadas nos últimos 20 anos indicam que não existe um nível seguro de chumbo no sangue de crianças.

A pressão internacional para eliminação do combustível com chumbo

No início da década de 2000, 25 países da África subsaariana aderiram à Declaração de Dacar, elaborada pela ONU, para eliminar a gasolina com chumbo. O Pnuma foi responsável por organizar e iniciar os trabalhos.

Luc Gnacadja, ex-ministro do Meio Ambiente do Benin, só precisava de uma explicação sobre os efeitos do chumbo na saúde para começar a agir. “O custo de não fazer nada comparado ao benefício da ação, sabendo que a gasolina custava 1,2% do nosso PIB (em termos de potencial de ganho perdido), auxiliou muito na nossa tomada de decisão”, ele disse. O ministro logo proibiu a gasolina com chumbo no Benin.

Mas 117 países ainda a permitiam. O progresso foi rápido no início, disse Rob de Jong, diretor da unidade de mobilidade sustentável do Pnuma. “Em 10 anos, quase todos os países já tinham proibido. Sobraram 10 países, que levamos mais 10 anos” para persuadir, ele contou.

A equipe do Pnuma também teve que lidar com desinformações. Em alguns casos, foi simplesmente a falta de conhecimento sobre produtos sem chumbo. Porém, havia rumores de que os carros mais velhos, muitas vezes usados, só funcionariam apropriadamente se abastecidos com gasolina com chumbo. “Muitos mitos foram criados”, disse Inger Anderson, diretora executiva do Pnuma, embora ela não tenha mencionado quem os criou.

Em 2010, a Innospec Ltd., maior fabricante de aditivos à base de chumbo para gasolina — e, na época, considerada a última indústria ainda em operação — declarou-se culpada no tribunal do Reino Unido por subornar o governo indonésio e diretores de refinarias em um esforço para que comprassem o aditivo. A ideia era que, se tivessem o produto estocado, as refinarias incentivariam a demanda dos consumidores por combustível com chumbo, explicou de Jong. A Innospec foi multada em US$ 12,7 milhões. Em 2015, um ex-diretor da Pertamina, refinaria estatal indonésia, foi considerado culpado de receber subornos de um intermediário agindo em nome da Innospec Ltd.

Esse não foi o único caso de pressão na indústria do chumbo. No documentário Living on Earth (Vivendo na Terra, em tradução livre), lançado em 2003, Don Ryan, na época Diretor Executivo da Alliance for Healthy Homes, disse que “ao longo da história, a indústria do chumbo desafiou as evidências científicas, ridicularizou a realidade dos efeitos mais leves do chumbo na saúde e, basicamente, alegou que os cientistas estavam exagerando”.

Mas, Akumu, de Jong e os demais membros da parceria avançaram em suas pesquisas.

E uma distinção logo ficou clara. Países que possuíam refinarias apresentavam diferenças em relação aos países que importavam toda a gasolina refinada.

O Quênia, por exemplo, um dos maiores países da África, era um refinador. “Então, em vez de ir até o Quênia e dizer: ‘Vocês precisam investir em refinaria’, fomos para países vizinhos como Ruanda, Burundi, Uganda e Tanzânia e dissemos: ‘Vocês têm condições de adquirir produtos sem chumbo. É muito mais saudável’”, relatou de Jong. Estes países exigiram que o Quênia fornecesse combustível sem chumbo, ou iriam adquiri-lo em outro lugar.

A equipe também utilizou pressão de grupo, contou de Jong. Eles utilizaram mapas para mostrar quais países tinham eliminado o uso de chumbo. “Os ministros perguntavam: ‘por que nosso país ainda está em vermelho neste mapa? Todos à nossa volta estão em azul.’”

Akumu também descobriu a importância do treinamento de frentistas. “Eles se tornaram nossos embaixadores”, ela contou, já que explicavam para os clientes que o combustível sem chumbo não danificaria os carros e era melhor para eles.

A parceria também apoiou a realização de exames de sangue na população de países como Hungria, Sérvia, Gana e Quênia. Elas demonstraram a rapidez com que os níveis de chumbo no sangue caem quando ele é removido do combustível. Foram realizados testes no ar ambiente. E os resultados foram utilizados como ferramentas de persuasão.

Os dados eram totalmente claros. Os níveis de chumbo no sangue das pessoas caíram quando ele foi removido do combustível.

“Em 1986, o nível médio de chumbo no sangue das crianças nos Estados Unidos era em torno de oito. Agora é 0,9 (micrograma por decilitro)”, disse Brown, que está perto de completar 40 anos de trabalho em questões relacionadas ao chumbo.

Em 2016, apenas a Argélia, o Iêmen e o Iraque ainda estavam resistentes.

Finalmente, a refinaria argelina esgotou o estoque de chumbo no mês passado. O Pnuma estima que esse feito evitará 1,2 milhão de mortes prematuras; a diminuição dos custos de saúde e recuperação de potencial humano pode significar o equivalente a US$ 2,4 trilhões por ano.

Para Akumu, ainda há desafios pela frente. O próximo é a eliminação do enxofre no diesel, cujas partículas podem causar câncer de pulmão e representam um enorme risco global.

Fonte: National Geographic Brasil