Neste ano, mais de 40 casos da doença de Haff — também conhecida como a “doença da urina preta” — foram detectados no Brasil, principalmente nos estados do Amazonas e da Bahia. Para entender as causas locais da doença, a Fiocruz Bahia, a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador e outros institutos nacionais de pesquisa investigaram pacientes de dois surtos, identificados entre janeiro de 2016 e janeiro de 2021, na população do estado.
Na investigação pelas causas da “doença da urina preta”, os pesquisadores descreveram as características clínicas dos casos, identificaram fatores associados e investigaram a presença de biotoxinas e metais em espécimes de peixes consumidos. O resultado foi publicado na revista científica Lancet Regional Health – Americas.
Entenda o que é a doença de Haff
Uma das principais características da doença de Haff é o escurecimento da urina. Inclusive, esta é a origem do seu apelido. A cor mais escura é provocada pela rabdomiólise. Isso significa que ocorre uma ruptura do tecido muscular e essa quebra libera, por sua vez, uma proteína tóxica na corrente sanguínea dos pacientes contaminados. Em termos mais científicos, a lesão muscular resulta na elevação dos níveis séricos de creatina fosfoquinase (CPK), o que provoca o escurecimento da urina.
De forma geral, a origem da doença tem relação com uma toxina que pode ser encontrada em determinados peixes — como tambaqui, badejo, arabaiana — ou crustáceos — como lagostas e camarões —, quando estão contaminados. Só que a condição também pode ser desencadeada por um medicamento, por um metal pesado, pela ingestão de toxinas ou por uma atividade física extenuante, após convulsões. Por isso, é tão necessária a investigação sobre as origens de cada caso.
Estudo sobre os casos nacionais da “doença da urina preta”
No artigo da Fiocruz Bahia, os pesquisadores relatam que a teoria mais aceita é que os peixes e crustáceos não produzem eles mesmos as toxinas, mas acumulam no seu corpo compostos produzidos por outros organismos, como microalgas, através da cadeia alimentar.
No total, seis amostras de peixes relacionados com os pacientes passaram por análises laboratoriais. Entre as amostras, duas eram sobras de uma refeição relacionadas a dois casos da doença — ambos com evidências de rabdomiólise —, outras duas foram obtidas de casos isolados com altos níveis de CPK, e as duas últimas eram amostras frescas obtidas em uma peixaria local, onde alguns pacientes haviam comprado peixes.
Causa: palitoxina
Em comum, os cientistas detectaram compostos do tipo palitoxina nas amostras de espécie de água salgada conhecida como “olho de boi”, o que pode ser a provável fonte de contaminação. Segundo os autores do estudo, não foi detectada a presença de metais como arsênio, cádmio e chumbo nos peixes.
“A palitoxina (PTX) é uma toxina muito perigosa produzida por várias espécies marinhas. O PTX foi originalmente isolado em 1971 no Havaí”, explica Martin Pierre Sauviat, no livro Métodos em Neurociências, sobre a descoberta relacionado aos corais da ilha.
“As complicações mais comumente relatadas de envenenamento por PTX parecem ser rabdomiólise, uma síndrome que lesiona o músculo esquelético, causando ruptura muscular e vazamento de grandes quantidades de conteúdo intracelular (miócitos) para o plasma sanguíneo”, complementa Sauviat.
Histórico da doença na Bahia
No período entre 2016 e 2017, foram investigados 65 casos. Destes, 66% tinham níveis elevados de CPK, 88% foram hospitalizados, 26% necessitaram de cuidados intensivos e 7% de diálise. A ingestão de peixes marinhos, 24 horas antes do início da doença, foi relatada por 74% dos casos com CPK elevada e por 41% daqueles sem medição de CPK. Os tipos de peixes mais consumidos pelos casos foram “olho de boi” e “badejo”.
Após este surto, as autoridades de saúde identificaram outros 12 casos suspeitos entre os anos de 2017 e 2019 e um novo surto durante a pandemia da covid-19. Durante o surto ocorrido entre os anos de 2020 e 2021, 16 pacientes com rabdomiólise confirmados por laboratório foram identificados. Desses casos, cinco necessitaram de cuidados intensivos e um faleceu em decorrência da doença.
Além da Fiocruz Bahia e da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, também participaram do estudo pesquisadores das seguintes instituições: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia; Centro de Estudos do Mar da Universidade Federal do Paraná; Laboratório de Algas Nocivas e Ficotoxinas do Instituto Federal de Santa Catarina, do Campus de Itajaí; e Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
Publicado na revista científica Lancet Regional Health – Americas, o estudo completo sobre os casos brasileiros da “doença da urina preta” pode ser conferido aqui.
Fonte: Canaltech