A Casa da Moeda, estatal vinculada ao Ministério da Economia, vende medalhas decorativas fabricadas com ouro fornecido por uma empresa acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) de ser uma das principais comercializadoras de ouro extraído de garimpos ilegais na Amazônia.
A fornecedora é a FD’Gold. Segundo o MPF, entre 2019 e 2020, a FD’Gold comercializou pelo menos 1,3 mil quilos de ouro de origem clandestina. Especialistas afirmam que há risco de que ouro oriundo da Amazônia e que chega ao mercado formal esteja “contaminado” com ouro de origem ilegal.
Procuradas, as empresas alegaram sigilo comercial e não informaram que documentos ou procedimentos adotam para garantir aos seus clientes que as medalhas vendidas com ouro da FD’Gold não são feitas com ouro ilegal.
O Banco Central, por sua vez, diz que só é responsável pela fiscalização do ouro depois que ele é comprado por instituições financeiras.
A Casa da Moeda é a estatal responsável por fabricar as cédulas e moedas do Real, além de outros itens como passaportes. A empresa utiliza sua estrutura para fabricar medalhas e moedas decorativas feitas com vários tipos de metal como ouro, bronze e prata.
Elas são normalmente vendidas a colecionadores por meio do seu site na internet. Algumas delas são meramente comemorativas, enquanto outras são consideradas “ativo financeiro”, um tipo de investimento em ouro subsidiado pelo governo.
A FD’Gold, por sua vez, é uma distribuidora de títulos e valores mobiliários (DTVM) regulada pelo Banco Central que atua, principalmente, na compra e venda de ouro. Segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), é a terceira maior comercializadora do minério no país, em 2021.
Diferentemente das duas primeiras colocadas, no entanto, que são grandes mineradoras, a FD’Gold não tem minas de exploração de ouro. Ela atua comprando o metal de garimpeiros ou cooperativas e revendendo-o no mercado. A empresa tem sede em São Paulo, mas tem escritórios espalhados por diversos Estados da Amazônia como Rondônia, Pará e Mato Grosso.
A relação comercial entre as duas empresas começou depois que a FD’Gold contratou a Casa da Moeda para vender medalhas de ouro decorativas. A contratação é informada na seção do site da Casa da Moeda onde seus produtos são vendidos.
“A Casa da Moeda do Brasil foi contratada pela empresa FD’Gold para criação artística, industrialização do ouro para confecção de medalhas e disponibilização do produto em seu website”, diz o site.
Ainda segundo o site, as medalhas comercializadas no website da estatal, assim como o valor do frete, a embalagem, o seguro do envio e a forma de pagamento são de responsabilidade da FD’Gold.
As medalhas podem ser compradas via internet no site da Casa da Moeda por valores que chegam a R$ 3,9 mil. Os produtos são enviados pelos correios.
Ativos financeiros
Além de serem itens para colecionadores, as medalhas produzidas por meio da parceria entre a Casa da Moeda e a FD’Gold também são consideradas “ativos financeiros”, ou seja: são investimentos reconhecidos pelas autoridades financeiras do país.
Não se sabe exatamente qual o percentual do valor pago por medalha fica com a Casa da Moeda e quanto é repassado à FD’Gold. Isso acontece porque a estatal não disponibiliza os termos do contrato firmado com a sua fornecedora.
A BBC News Brasil solicitou cópias dos contratos e documentos referentes às transações entre as duas empresas via Lei de Acesso a Informação (LAI), mas a Casa da Moeda alegou sigilo comercial e se negou a divulgar as informações em primeira e em segunda instância.
Uma planilha eletrônica obtida pela BBC News Brasil e que faz parte de um processo eletrônico da Agência Nacional de Mineração reforça o vínculo de fornecimento de ouro entre a FD’Gold e a Casa da Moeda.
Trata-se de uma tabela para o acompanhamento do andamento dos produtos feitos pela estatal. Em um dos campos da tabela, a informação de que a empresa fornece ouro para a Casa da Moeda fica clara.
“OP (sigla provável para ordem de pagamento) em atraso desde 30/08/2021, aguardando o cliente FD GOLD entregar ouro na CMB (sigla para Casa da Moeda) para completar o pedido de 100 unidades, onde dispomos de 87 finalizadas”, diz a tabela.
Risco de ‘contaminação’ com ouro ilegal
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a facilidade para falsificar a origem do ouro extraído de forma ilegais na Amazônia, o que é chamado de “esquentamento”, faz com que seja virtualmente impossível saber se o minério que circula no mercado formal e que chegou à Casa da Moeda veio ou não de uma fonte regular. A Amazônia é a principal região onde se concentram as operações da FD’Gold.
Por lei, o ouro só pode circular pelo sistema financeiro por meio das DTVMs. Pela legislação atual, essas empresas podem comprar ouro de garimpeiros em qualquer parte do Brasil desde que, no momento da compra, quem venda o minério declare que ele foi extraído de alguma lavra autorizada pela ANM.
Como a lei prevê o princípio da “boa-fé”, não há checagem direta sobre se a informação registrada nesta transação é verdadeira ou não.
Um estudo elaborado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) divulgado neste ano indica que 28% de todo ouro comercializado no Brasil entre 2019 e 2020 tinha evidências de irregularidades. Isso equivale a 49 das 174 toneladas de ouro registradas no país no período.
Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores usaram imagens de satélites e cruzaram essas informações com as declarações de compra de ouro de diversas DTVMs, entre elas a FD’Gold.
Os pesquisadores identificaram que pelo menos 1,3 mil quilos de ouro comercializados pela FD’Gold entre 2019 e 2020 teriam origem ilegal porque as áreas registradas como locais de extração do minério estavam intactas, de acordo com as imagens de satélite.
O estudo serviu de base para uma ação civil pública movida pelo MPF em agosto deste ano contra a empresa. Questionada sobre a ação pela BBC News Brasil, a empresa não se manifestou.
Para o órgão, o fato de a área de onde o ouro deveria ser extraído estar intocado é um indicativo forte de que a empresa compra ouro produzido em garimpos ilegais da Amazônia, inclusive daqueles localizados em terras indígenas como a Yanomami, em Roraima, ou Munduruku, no Pará.
“O ouro adquirido pela FD Gold DTVM, embora atrelado formalmente a PLGs (permissão de lavra garimpeira) situadas na região de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, passou por esquentamento […] por essa razão, esse ouro pode, na verdade, ser oriundo de qualquer outro ponto do bioma em que existente garimpo ilegal, como as Terras Indígenas Munduruku, Kayapó, Yanomami, Raposa Serra do Sol, os Rios Madeira […] dentre inúmeros outros pontos de garimpo presentes na Amazônia”, diz um trecho da ação.
Ainda de acordo com o MPF, pelo volume de ouro comercializado pela empresa, ela não poderia alegar desconhecimento sobre a origem ilegal do produto. Segundo os procuradores responsáveis pela ação, que tramita na Justiça Federal do Pará, a empresa praticou “cegueira deliberada”.
“Era totalmente previsível para a FD’Gold DTVM, portanto, o risco a que se expunha ao adquirir ouro na Amazônia […] a despeito disso, cuidados mínimos preventivos a danos ambientais não foram adotados, consolidando-se uma prática empresarial de cegueira deliberada que acabou por contribuir para a proliferação dos danos associados ao garimpo ilegal na região”, diz a ação.
O MPF pede uma indenização de R$ 1,7 bilhão à FD’Gold a título de danos materiais ambientais e socioambientais causados pela compra de ouro de origem ilegal.
O pesquisador e um dos autores do estudo da UFMG, Raoni Rajão, diz que, diante da falta de controle sobre a origem do ouro na Amazônia, quem comercializa o minério oriundo da região tem grandes chances de estar comprando ou vendendo um produto ilegal.
“Quem compra ouro da Amazônia hoje tem uma chance muito grande de estar comprando um metal que provém de garimpos ilegais localizadas, até mesmo, em terras indígenas”, afirma o pesquisador.
Para a gerente de produtos e projetos do Instituto Escolhas, Larissa Rodrigues, o sistema de controle sobre a produção e venda do ouro no Brasil é frágil e não há como garantir a legalidade do ouro que circula no mercado formal.
“A extração de ouro ilegal na Amazônia segue descontrolada, como vimos com as imagens de centenas de balsas que tomaram o rio Madeira nos últimos dias […] sem um sistema de rastreabilidade e controle de origem não há como saber se o ouro que está no mercado tem origem legal”, diz Larissa.
A BBC News Brasil enviou questionamentos à Casa da Moeda, à FD’Gold e ao Banco Central, responsável pela fiscalização de DTVMs.
À Casa da Moeda e à FD’Gold, a reportagem perguntou quais os procedimentos e garantias dadas aos seus clientes de que as medalhas vendidas eram fabricadas com ouro de origem legal.
Por meio de nota, a Casa da Moeda disse que não iria comentar o assunto.
“A Casa da Moeda não vai se manifestar sobre o tema por conter informações sigilosas contratuais”, disse a estatal.
A FD’Gold seguiu a mesma linha.
“Trata-se de relação privada, legalmente constituída nos termos dos regramentos nacionais vigentes, resguardada pela obrigação civil de sigilo e confidencialidade”, respondeu a empresa.
O Banco Central, por sua vez, disse que não cabe a ele fiscalizar o comércio de ouro antes da aquisição pelas DTVMs.
“Somente após a aquisição do ouro pela instituição financeira, com a finalidade de torná-lo ativo financeiro ou instrumento cambial, e sua inserção nos mercados financeiro ou cambial, é que o metal adentra a competência do Banco Central”, disse o BC.
A Anoro não respondeu aos questionamentos enviados.
Fonte: BBC