Por falta de recursos do governo federal, a partir de abril Inpe deixará de monitorar o desmatamento do segundo maior bioma brasileiro, que registra alta da destruição. Especialistas falam em desastre.
Com o desmatamento em alta, o Cerrado vai deixar de ser monitorado via satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em abril. É quando acabam os recursos destinados ao projeto, cuja continuidade deverá ser impedida devido à falta de investimento do governo federal.
Fontes ouvidas pela DW Brasil no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), em condição de anonimato, afirmam que, até o momento, não há garantia de dinheiro para o sistema de monitoramento do segundo maior bioma brasileiro, depois da Amazônia.
Entre agosto de 2020 e julho de 2021, o Cerrado perdeu 8,5 mil km² de vegetação nativa, o que significa uma alta de quase 8% em relação ao período anterior, segundo dados do Prodes Cerrado. Embora o levantamento tenha sido finalizado no fim de novembro passado, a informação foi divulgada apenas no último dia de 2021.
“O atual governo não tem interesse em manter o monitoramento. Nem da Amazônia, nem do Cerrado”, avalia Gilberto Câmara, ex-diretor do Inpe, em entrevista à DW Brasil.
Em operação desde 1988 para a Floresta Amazônica, o sistema oficial de vigilância começou a ser estruturado para o Cerrado em 2016. Naquele ano, um convênio assinado entre ministérios e Banco Mundial garantiu 9,5 milhões de dólares até 2021.
A iniciativa, que ocorreu dentro do Programa de Investimento Florestal (FIP, na sigla em inglês), contou com recursos de doadores internacionais e permitiu a construção de uma série histórica de desmatamento de maneira retroativa, com imagens de satélite obtidas a partir de 2000.
Em 2018, dentro do mesmo programa, o Inpe lançou o sistema de alertas de desmatamento para o Cerrado (Deter) e, a partir de 2019, os dados anuais passaram a ser divulgados (Prodes-Cerrado).
É por causa desse esforço que é possível saber, por exemplo, que o estado de Goiás foi o que mais destruiu essa vegetação nativa desde então, com mais 47 mil km² desmatados. A área é equivalente a mais de 4 milhões de campos de futebol.
“Desastre político e ambiental”
Considerada a savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado se estende, além de Goiás, pelos estados de Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. De sua área original, que ocupava 25% do território nacional, quase metade já desapareceu.
“O fim do monitoramento traria um impacto negativo muito grande”, comenta Laerte Ferreira, pró-reitor de pós-graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenador da plataforma Cerrado DPAT.
Dentro do programa FIP Cerrado, Ferreira lidera o grupo de pesquisas na UFG responsável pela validação dos dados de desmatamento gerados pelo Inpe. O trabalho de checagem mostrou um índice de acerto de 94%, o que é elevado e mostra a alta confiança dos dados sobre desmatamento, concluiu um estudo publicado na revista científica Remote Sensing Applications Society and Environment em janeiro de 2021.
“Seria um escândalo, um desastre politico e ambiental. O FIP Cerrado deu 9 milhões de dólares para que o país pudesse colocar de pé um sistema de monitoramento. Foi como um pontapé inicial, não pode ser interrompido”, comenta Ferreira.
O bioma concentra nascentes das principais bacias hidrográficas brasileiras, como a do rio São Francisco, e é nele que ocorre cerca da metade da produção nacional de soja.
“As principais fronteiras agrícolas estão neste bioma. Precisamos de politicas que incentivem uma ocupação mais sustentável, mais inteligente. Precisamos acabar com o desmatamento, de uma politica de comando e controle”, sugere o pesquisador.
Na UFG, as equipes que trabalhavam no projeto já foram desmobilizadas. A plataforma Cerrado DPAT, que contextualiza as circunstâncias em torno do desmatamento registrado pelo Inpe, está ameaçada. “Eu me questiono como vamos manter essa plataforma, atualizar os dados, etc.”, lamenta Ferreira.
“Pior momento na ciência e tecnologia”
Na visão de Gilberto Câmara, o encerramento do monitoramento no Cerrado faz parte de uma estratégia do governo Bolsonaro de enfraquecer instituições de pesquisa como o Inpe por meio de cortes no orçamento.
Segundo o ex-diretor, cerca de 400 milhões de reais em valores corrigidos foram destinados aos instituto em 2011. No ano passado, esse total caiu para 80 milhões – valor cinco vezes menor.
“Foi uma redução orçamentária brutal com o objetivo de amordaçar os cientistas, acabar com a pesquisa, com o supercomputador, com atividades de cooperação. É um desastre encomendado”, critica Câmara.
Sobre o Prodes Cerrado, havia uma certa expectativa de que recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) fossem destinados ao projeto. A incerteza gera um clima de insegurança e ansiedade entre os pesquisadores.
“Não é um sistema caro pelo tamanho do bioma que ele monitora. Custaria cerca de 3 milhões de reais por ano. O problema é mesmo que o governo não tem interesse em monitorar o Cerrado”, avalia Câmara.
Apesar da existência de iniciativas semelhantes feitas pelo terceiro setor, como o MapBiomas, Laerte Ferreira, da UFG, defende que o país precisa gerar dados oficiais com apoio do governo federal.
“Este é o pior momento na ciência e tecnologia. As coisas estão caóticas. Tudo isso é muito ruim para o Brasil e para o Cerrado, que sofre com um desmatamento que está numa crescente e que é, em sua maior parte, ilegal”, analisa Ferreira.
Questionado pela DW Brasil, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.
Fonte: Deutsche Welle