As análises sobre as condições de vida e trabalho das mulheres sempre apresentam algum nível de desigualdade de gênero. Nesse cenário, as atividades relacionadas à produção de alimentos e à segurança alimentar não são uma exceção.
Alimentar-se é um ato marcado por trocas simbólicas que envolve o compartilhamento, a sociabilidade, as memórias e conhecimentos que nos permitem reconhecer alimentos e saber como prepará-los para o consumo; envolve também redes de trabalho de agricultoras e agricultores na produção e comercialização que permitem o acesso aos alimentos. Assim, a comida que chega às nossas mesas reflete práticas culturais e saberes coletivos.
Quando falamos de alimentação discutimos também segurança alimentar e nutricional, que, no Brasil, é compreendida como uma condição que permite assegurar o direito humano à alimentação adequada. O acesso a alimentos de qualidade de forma regular e permanente, em quantidade suficiente e articulado com práticas alimentares promotoras de saúde — que respeitam a diversidade cultural e que são ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis — são as premissas que definem os desafios da segurança alimentar e nutricional garantidos pela legislação federal (Lei 11.346/06).
E esses desafios ultrapassam questões sociais para esbarrar também em diferenças de gênero. O Relatório anual da FAO, “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo” (2021), traz importantes alarmes sobre o aprofundamento das desigualdades no contexto da Covid-19 no mundo, afetando particularmente as mulheres, em um cenário em que as mudanças climáticas também pressionam a produção de alimentos e a segurança alimentar.
Segundo o documento, em 2020, estima-se que a prevalência global de insegurança alimentar moderada ou grave teve um aumento igual ao dos cinco anos anteriores combinados. Quase uma em cada três pessoas no mundo (2,37 bilhões) não teve acesso à alimentação adequada em 2020.
Além disso, nesse mesmo ano, em nível global, a diferença de gênero na prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave cresceu ainda mais com a pandemia de Covid-19, mostrando-se 10% maior entre mulheres do que homens. Estima-se também que 29,9% das mulheres de 15 a 49 anos em 2019 em todo o mundo apresentaram quadros anêmicos. Na África e na Ásia, a condição atingiu mais de 30% das mulheres; enquanto na América do Norte e Europa apenas 14,6% foram afetadas.
Essa desigualdade de gênero é paradoxal, considerando que alimentar é uma das atividades de cuidados que atravessa o trabalho doméstico, realizado majoritariamente por mulheres. Quando deslocamos o olhar da cidade para o campo, vemos a horta, as fruteiras, as criações de pequenos animais mais próximas às casas e sob a responsabilidade das mulheres. Na divisão dos trabalhos entre mulheres e homens, a elas têm sido incumbido o serviço doméstico, sempre caracterizado como de menor valor e reconhecimento social. Assim, parte da produção de alimentos que chega às mesas é trabalho não pago e não reconhecido de mulheres.
Nesse mesmo raciocínio, geralmente cabe às mulheres e meninas a execução de tarefas que exigem mais “cuidado”, como é o caso da produção de mudas em sementeiras, plantio de hortaliças, cuidado com animais de pequeno porte etc. Contudo, elas também desempenham as demais funções no ciclo produtivo das propriedades, mas são invisibilizadas, ante a lógica que as associa aos afazeres domésticos.
As mulheres trabalham muitas vezes em áreas cedidas, alugadas ou que pertencem a seus maridos, o que se traduz em um contexto permanente de insegurança para elas, além de reduzir seu acesso a políticas públicas e assistência técnica rural. Por vezes, por não terem autonomia para compartilhar o gerenciamento da propriedade com esposos, parceiros, pais, filhos, ou outros homens de seu ciclo de relacionamento, acabam por não compreender a importância e representatividade de seu trabalho para a manutenção de seu núcleo familiar.
No Brasil, dados do Censo Agropecuário de 2017 demonstram que, dos 5 milhões de estabelecimentos agropecuários existentes, apenas 19,7 % são dirigidos por mulheres. Na América Latina, embora 70% das mulheres rurais tenham acesso à terra para produzir alimentos, apenas 30% detêm a posse da terra, segundo o estudo “Ellas alimentan al mundo” de 2021, um esforço conjunto de pesquisadores latino-americanos.
Nos países em desenvolvimento, as mulheres formam 43% da mão de obra agrícola, de acordo com o “Guia para integrar equidade de gênero à conservação” da The Nature Conservancy (2020). E, caso elas tivessem acesso equitativo a recursos agrícolas, tais como melhores sementes, crédito ou serviços de extensão agrícola, a colheita em suas propriedades aumentaria de 20% a 30%.
Nos 34 países em desenvolvimento que dispõem de dados sobre mulheres agricultoras e subnutrição, há uma estimativa de que, se as mulheres tivessem acesso a recursos agrícolas tal como os homens, o número de pessoas que passam fome diminuiria de 12% a 17%.
Fica claro, assim, porque o acesso à terra para as mulheres rurais, em especial as indígenas e afrodescendentes, é uma condição fundamental para a produção da vida sustentável, para o seu empoderamento e autonomia econômica e para assegurar seu direito à alimentação e combate à fome e à pobreza.
A experiência da Cooperativa Mista de Agricultores de Tremembé e Região – Coomatre, localizada no estado de São Paulo, traz um rico exemplo. Gerida por mulheres, a cooperativa tem atuado com sistemas agroflorestais mobilizando redes de comercialização com cestas de produtos agroecológicos e, mais recentemente, articulando uma frente de coletores de sementes, com forte participação das mulheres.
A coleta de sementes modificou a relação com os territórios: as mulheres passaram a criar trilhas marcadas pelas árvores, reconhecer quando estas florescem, mapear os passos dados. A coleta de sementes fortaleceu o cuidado e proteção com o meio ambiente e estabeleceu uma nova fonte de renda para as mulheres.
Além da produção, o preparo de alimentos é um pilar importante na segurança alimentar e nutricional, de forma a garantir o melhor uso do que é produzido, com esforços que garantam variedade de nutrientes e de sabores. Observamos nas últimas décadas processos de homogeneização de hábitos alimentares incentivados pelas dinâmicas de mercados, que retiram do cotidiano alimentos e práticas de subsistência locais, a memória de como preparar diversos alimentos, estabelecendo-se uma ruptura com tecidos sociais, redes comunitárias e tradições locais que se firmavam pelo alimentar-se.
A homogeneização alimentar propõe um modelo prático, rápido, que envolve menos conhecimento sobre seu preparo, marcado por uma intensa presença de aditivos alimentares. Não reconhecer e não saber preparar um alimento reduz a capacidade de segurança alimentar de comunidades e povos. Aqui as mulheres incidem como guardiãs.
Na experiência das mulheres indígenas do Povo Mẽbêngôkre Xikrin, no Pará, a roça é circular e sua importância dialoga com vários níveis da cosmologia indígena. O centro da plantação são as batatas, plantadas pelas mulheres que as visitam diariamente, cuidam dos cultivos, até colherem os tubérculos e processá-los em alimento. Ir ao roçado é momento para as conversas particulares, uma forma de assembleia ambulante. As variedades de batatas assumem maior presença na alimentação desse povo e são preparadas de formas diversas.
O preparo dos alimentos envolve esforços coletivos e, em geral, se concentra na cozinha da matriarca. A cozinha e o comer são atividades coletivas que atribuem sentidos comunitários para a alimentação; integram-se ao processo de alimentar, conhecimentos, práticas, cuidados, e partilhas entre gerações. Esses processos são indissociáveis da produção e transmissão dos valores e dos saberes associados às plantas cultivadas. A comida que vai à boca é memória, trabalho e conhecimento social, patrimônio cultural e biológico.
Ao guardarem sementes, lutarem pelo acesso a terras férteis e água, utilizarem práticas agroecológicas e manterem a memória de preparos de alimentos, as mulheres agricultoras constroem estratégias de empoderamento, de exercício de liberdades que se relaciona com um projeto de subsistência com a natureza. Esses exemplos nos mostram que a equidade de gênero tem se provado um caminho necessário – e urgente – para a produção da vida e a sustentabilidade da nossa sociedade.
Fonte: Galileu