Qual a situação atual dos oceanos? É a pergunta a que a One Ocean Expedition busca responder. A bordo do veleiro centenário Statsraad Lehmkuhl, a tripulação norueguesa pretende pesquisar, ao longo de 20 meses de circunavegação, os níveis de CO2, a presença de microplásticos e a biodiversidade marinha. No último dia 23 de fevereiro, o veleiro atracou no Píer Mauá, no Rio de Janeiro, para uma parada de três dias no Brasil, durante os quais promoveu palestras sobre a temática do desenvolvimento sustentável dos oceanos.
A iniciativa não é por acaso: estamos oficialmente na Década da Ciência Oceânica. Declarada pelas Nações Unidas em 2017, a agenda que vai de 2021 a 2030 tem como objetivo fomentar o desenvolvimento sustentável dos oceanos com base na ciência. Com 361 milhões de quilômetros quadrados, 3600 metros de profundidade e 1,3 bilhão de quilômetros cúbicos, eles ocupam cerca de 70% da superfície terrestre. Ainda assim, você provavelmente já ouviu falar que conhecemos mais sobre o espaço do que essa imensa camada de água do nosso próprio planeta. É verdade: as estimativas variam, mas costumam apontar que somente 10% das regiões oceânicas foram exploradas.
“Essa circunavegação tem como objetivo contribuir com a Década em relação à produção e divulgação do conhecimento, uma vez que ainda temos enormes lacunas em relação ao oceano”, explica o biólogo Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) e coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano. “Mas é importante destacar que o oceano está doente, só não sabemos o quanto.”
Para tentar determinar a extensão do problema, a embarcação de 98 metros de comprimento e 108 anos de história foi convertida em uma verdadeira universidade aquática. “Nós escondemos o equipamento para manter a aparência original e majestosa do veleiro”, afirma o capitão do Statsraad Lehmkuhl, Marcus A. Seidl. “Essa expedição tem um simbolismo muito grande, por ser um barco com mais de 100 anos a gente pode dizer que o casco viu um oceano muito diferente daquele que a gente tem hoje; um oceano que a gente não tem mais”, completa Turra.
O objetivo é conduzir pesquisas com diferentes temáticas: identificar a presença e extensão de microplásticos ao longo do trajeto; compreender a interação do oceano com a atmosfera, verificando como o CO2 se dissolve na água; avaliar a biodiversidade; registrar a presença e comportamento dos animais marinhos com base na acústica; e contribuir para o mapeamento do fundo do mar.
Pesquisa de ponta
A missão é ambiciosa. Segundo o especialista da USP, um dos principais gargalos para se fazer pesquisa oceanográfica são os custos de construção, manutenção e operação. Além das embarcações, equipamentos acoplados, como sondas que registram a topografia do fundo do mar, podem custar mais de R$ 1 milhão. Isso sem contar o treinamento de equipes que não só saibam operar tais ferramentas, mas também ler os dados que elas fornecem.
Para a pesquisa dos microplásticos, por exemplo, uma bomba de água com dispositivo de filtração para esses resíduos microscópicos foi instalada na tomada de água do mar. Depois de filtradas, as partículas retidas no filtro são submetidas a tratamentos em laboratórios ultralimpos, para então passarem por uma caracterização química. Mesmo aquelas com no máximo 0,03 centímetro, são analisadas usando a técnica de espectroscopia no infravermelho com transformada de Fourier (FTIR), método com o qual é possível determinar a estrutura e composição de moléculas com base nas frequências de vibração.
Conhecer a composição desses polímeros é importante para entender, entre outros fatores, a distribuição geográfica dos diferentes microplásticos e modelar a trajetória que os materiais percorrem com base em correntes oceânicas.
Outro equipamento de ponta a bordo do Statsraad Lehmkuhl é a ecossonda de banda larga Kongsberg Maritime EK80. Ela coleta continuamente dados da quilha até 1000 metros abaixo do navio, revelando a densidade e o comportamento de peixes e zooplâncton nos locais por onde a embarcação passa.
O objetivo é conhecer a distribuição da camada mesopelágica, que vai de 200 a 1000 metros de profundidade e é uma das partes menos compreendidas do oceano, ainda que uma das mais relevantes. Nela, habitam organismos que são parte importante das cadeia alimentar e que transferem grandes quantidades de carbono da superfície para o oceano profundo, contribuindo para o combate às mudanças climáticas.
Todos os dados coletados pelo veleiro são abertos. “Não existe lado comercial disso”, ressalta o capitão da expedição. “Nós acreditamos que para que mudanças aconteçam, o mais importante é conhecimento.”
Na visão do especialista da USP, um dos resultados mais esperados é ter uma caracterização de como está a saúde do oceano atualmente, para termos clareza do estrago que a atividade humana vem causando no bioma. “Existe uma crescente de entendimento da importância do oceano no funcionamento do planeta”, observa Turra. “Iniciativas como essa são fundamentais, porque o conhecimento contribui para podermos utilizar os serviços oceânicos de forma sustentável e desenvolver inovações tecnológicas, mas também ajudam a compreender como o clima vai mudar, pois ele depende fortemente dos oceanos.”
O papel do Brasil
Embora a Noruega seja uma das principais protagonistas no movimento pela busca da sustentabilidade do oceano, o Brasil também tem papel de destaque. “Temos um histórico de relações internacionais muito grande quando o assunto é ciência oceânica”, afirma Turra. Segundo o especialista, o país tem sob sua jurisdição 5,7 milhões de quilômetros quadrados de oceano, dois terços do território que ocupa em terra. É uma área tão grande que foi apelidada de Amazônia Azul, tamanha a biodiversidade e potencial de geração de riquezas — da pesca a recursos como minerais, petróleo e aproveitamento de energia maremotriz.
Nesta Década da Ciência Oceânica, uma das iniciativas encabeçadas pelo país é a Voz dos Oceanos, liderada pela família Schurmann. Com apoio do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), a expedição que começou em agosto de 2021 vai documentar a presença de lixo plástico nos oceanos.
A bordo do veleiro Kat, que tem um quarto do tamanho do Statsraad Lehmkuhl, a tripulação vai navegar durante dois anos por toda a costa brasileira, seguir pelas ilhas do Caribe, a costa dos Estados Unidos, Galápagos e Polinésia até chegar à Nova Zelândia.
“O Brasil tem uma posição histórica de liderança especialmente no Atlântico Sul, conduzindo importantes programas de pesquisa e dialogando com países do continente americano e africano. E sempre esteve muito aberto à colaboração com outros países, de forma bilateral ou não”, opina Turra. “A vinda desse veleiro [o Statsraad Lehmkuhl] é um exemplo de como o Brasil tem se posicionado. O país deu passagem, boas-vindas e levou mensagens auspiciosas para que essa embarcação possa seguir seu curso e cumprir sua missão.” Afinal, lembra o especialista, embora porções de oceano estejam sob jurisdição de determinados países, os efeitos da ação humana são sentidos por todos.
Fonte: Galileu