Desmatamento em terras indígenas compromete metas climáticas brasileiras

Em carta publicada na revista "Science", cientistas brasileiros apontam deflorestação em áreas da Amazônia que deveriam funcionar como “escudos” contra a devastação

Desmatamento ilegal em Roraima registrado em 2018 pelo Ibama (Foto: Felipe Werneck/Ibama )

Sob constantes pressões, as terras indígenas (TI) na Amazônia têm registrado uma aceleração das taxas de desmatamento nos últimos anos. Algumas delas, como a TI Apyterewa, no Pará, são especialmente afetadas, ameaçando as metas internacionais assumidas pelo Brasil de combate à derrubada da floresta e mitigação dos impactos das mudanças climáticas. Para proteger as fronteiras amazônicas que restam preservadas, é necessário a aplicação de ações efetivas baseadas na legislação ambiental.

Esse alerta está na carta Proteja as Terras Indígenas da Amazônia, publicada na revista Science. O texto é assinado pelos pesquisadores Guilherme Augusto Verola Mataveli, da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e Gabriel de Oliveira, da University of South Alabama (Estados Unidos).

Na mesma edição, divulgada em 21 de janeiro, dois cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) – Lucas Ferrante e o biólogo Philip Fearnside – escrevem sobre os riscos da mineração e os povos indígenas no país.

“O Brasil conta com boas leis ambientais que no papel têm potencial para diminuir e inibir o desmatamento. Porém, a grande questão é forçar o cumprimento dessas leis. É o primeiro passo, que deve ser associado a outros de longo prazo, como a promoção da educação ambiental, a valorização da floresta em pé que promova a geração de renda às comunidades na Amazônia e a retomada e fortalecimento de ações previstas no PPCDAm. No passado, elas já se mostraram efetivas”, afirma à Agência FAPESP Mataveli, que é bolsista de pós-doutorado da FAPESP.

O chamado PPCDAm é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, concebido em 2003 com o objetivo de reduzir de forma contínua a devastação e criar condições de transição para um modelo de desenvolvimento sustentável da região. No entanto, a quarta fase do projeto, que iria até 2020, foi desidratada e interrompida. Recentemente, em Glasgow, durante a Conferência do Clima (COP-26), o governo federal anunciou o compromisso de o Brasil zerar o desmatamento ilegal até 2028.

Na carta, os pesquisadores chamam de “aumento dramático” o recrudescimento das taxas de desmatamento da Amazônia Legal brasileira desde 2019. No ano passado, chegou ao patamar mais alto nos últimos 15 anos, ficando em 13.235 quilômetros quadrados (km2) desmatados em 12 meses (entre agosto de 2020 e julho de 2021). Isso corresponde a uma área um pouco menor do que a Irlanda do Norte, país com 14.130 km2.

Também foi 69% maior do que a média anual registrada desde 2012, de acordo com dados do Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), do Inpe. Reconhecido internacionalmente, o Prodes é considerado a ferramenta mais precisa para estimar as taxas anuais de desmatamento na Amazônia, com o monitoramento por corte raso, realizado com a mesma metodologia desde 1988.

Na revista científica, os pesquisadores citam que o aumento do desmatamento afeta ainda áreas de conservação, incluindo terras indígenas, que deveriam funcionar como uma espécie de “escudo” contra a devastação. Nas TIs, a taxa média anual de desmatamento nos últimos três anos ficou 80,9% acima da média anual verificada desde 2012, atingindo 419 km2.

Localizada no município de São Félix do Xingu (PA), a TI Apyterewa concentrou 20,7% de toda a área desmatada em terras indígenas no ano passado. A TI já havia perdido 200 km2 de floresta entre 2016 e 2019, vendo a área devastada passar de 362 km2 (o que representava 4,7% de toda a extensão demarcada) para 570 km2 (7,4%).

Esse avanço resultou em um crescimento das emissões de gases poluentes, principalmente derivados de queimadas, como apontado em artigo publicado em 2020 na revista Forests, do qual participaram Mataveli e Oliveira.

“Ao estudarmos os dados de satélite, identificamos que a conversão de floresta é principalmente para pastagem e agricultura. Mas localizamos alguns pontos de mineração dentro da TI. Em relação às emissões de gases poluentes, encontramos aumento naquele período, mas não continuou no mesmo ritmo, já que o desmatamento nem sempre ocorre com o emprego do fogo”, afirma Mataveli, integrante de um Projeto Temático vinculado ao Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), cujo pesquisador principal é Luiz Eduardo Oliveira e Cruz de Aragão, também do Inpe.

Legislação

No texto assinado na Science, os pesquisadores relatam que “nenhuma ação efetiva” foi tomada para deter invasores da TI Apyterewa, do povo parakanã, após o alerta feito no artigo publicado na Forests em 2020. A TI teve sua área de demarcação administrativa homologada pelo governo federal em 2007 e, desde então, há ações tramitando na Justiça questionando o decreto sob a alegação, entre outros motivos, de que à época não houve ampla defesa e contraditório de não indígenas.

No dia 9 de março, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu, por unanimidade, o pedido do município de São Félix do Xingu de anulação da homologação. Em nota divulgada no ano passado, a Prefeitura de São Félix afirmava, entre outros pontos, que mais de uma década antes da demarcação residiam na área entre 4 mil e 5 mil colonos não índios, que deveriam permanecer no local.

Em outro estudo publicado por um grupo do qual Mataveli fez parte e que contou com a participação do pesquisador do Inpe Gilberto Câmara, os cientistas apontaram entre os resultados os riscos para territórios indígenas vindos de especulação imobiliária, além de um processo de descaracterização, com florestas primárias convertidas em pastagens e aumento de emissão de material particulado fino associado a incêndios. Nesse trabalho, publicado na Land Use Policy, o foco foi a terra indígena Ituna/Itatá, em Altamira (PA).

“A conservação das terras indígenas é primordial para honrar os compromissos legais do Brasil, manter a estabilidade ambiental da Amazônia, combater as mudanças climáticas e garantir o bem-estar das pessoas. A existência de leis para preservar as florestas remanescentes da Amazônia e os direitos dos povos tradicionais não é suficiente. Ações efetivas de aplicação da lei são necessárias para proteger as últimas fronteiras intactas e preservadas da Amazônia”, concluem os pesquisadores na Science.

Procurada por meio da assessoria de imprensa para se manifestar sobre o artigo publicado na revista científica, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não se manifestou até a publicação deste texto. No início do ano, em balanço disponível em seu site, a Funai informou que investiu cerca de R$ 34 milhões em ações de fiscalização em TIs no país em 2021 e que abriu a contratação de pessoal temporário para atuar em barreiras sanitárias e postos de controle de acesso.

No dia 31 de março, relatório divulgado pelo Instituto de Recursos Mundiais (WRI, na sigla em inglês) e pelo Climate Focus aponta os povos indígenas como uma espécie de “salvadores silenciosos” das florestas.

E diz que Brasil, Colômbia, México e Peru não conseguirão cumprir suas metas climáticas para 2030 se não protegerem as TIs. Isso porque, nos quatro países, as áreas protegidas por indígenas capturam quase 1 milhão de toneladas de CO2 por dia, mais que o dobro por hectare se comparado a áreas não indígenas.

Fonte: Galileu