Bioeconomia da sociobiodiversidade: a origem do conceito e sua importância

Especialistas da TNC Brasil explicam como esse modelo pode ajudar o desenvolvimento econômico mantendo florestas como a Amazônia em pé

A exportação de açaí gerou R$ 3,7 bilhões em 2019 (Foto: Pixabay)

O termo bioeconomia vem sendo amplamente empregado por governos nacionais e internacionais como um novo modelo de desenvolvimento econômico que concilie geração de renda, conservação ambiental e os objetivos de combate às mudanças climáticas. No entanto, vale darmos um passo atrás para entender o que é bioeconomia e como o conceito, na sua origem, dialoga com a conservação da floresta em pé.

Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994), matemático e economista romeno, foi o primeiro pensador a trazer o termo Bio-economia no debate científico. Em contraponto à teoria neoclássica de crescimento econômico ilimitado, o autor revolucionário sugere, de forma inovadora, uma abordagem da economia aplicada às relações econômicas e aos fatores naturais. Processos de transformação decorrentes da inovação tecnológica e adotados pela atividade industrial — seja a partir da transformação da queima de carvão em vapor d’água e energia para locomotiva, seja por meio da intensificação do uso da terra para aumento do rendimento e da produtividade agrícola — ocasionam perdas ecológicas irreversíveis (desestruturação da base natural).

Nessa ótica, ele sugere a redefinição dos contornos da economia: a economia e todos seus agentes, processos produtivos e institucionais deveriam estar inseridos em um sistema fechado, circular e limitado pela biosfera.

O termo “bioeconomia”, portanto, foi sugerido para integrar a teoria biológica ao campo econômico, de modo a estabelecer as relações entre as atividades econômicas, o meio físico-químico e os impactos ambientais daí derivados, que, necessariamente, impõem limites ao modelo de crescimento econômico predominante desde a Revolução Industrial, orientado à acumulação de capital físico em detrimento do capital natural. 

Ainda que as propostas de G.-Roegen não tenham sido aceitas entre os economistas de seu tempo e dos anos seguintes, o termo passou a ser amplamente empregado quando o mundo se viu diante da atual crise humanitária decorrente da pandemia de Covid-19. Do Pacto Ecológico Europeu (ou Green New Deal) às propostas do Programa Bioeconomia da Sociobiodiversidade Brasil, do Governo Federal, a bioeconomia de hoje se apresenta como uma solução às crises econômica, social e ambiental do século 21.

Pensando nesse novo modelo de desenvolvimento, a Amazônia, que é a maior floresta tropical do mundo, com grande presença de povos indígenas e comunidades tradicionais e mais de 40 mil espécies de plantas, se torna uma região crítica para a junção entre bioeconomia e sociobiodiversidade. Essa última, definida como a inter-relação entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais, fundamenta-se no conhecimento dos povos originários, das comunidades tradicionais e de agricultores familiares, além da valorização de processos ecológicos inerentes à conservação florestal que otimizam o uso de energias e nutrientes da biodiversidade.

Estruturar modelos de desenvolvimento bioecológico para economias baseadas em biomas possibilitaria enfrentar dois dos grandes desafios ambientais do nosso tempo: a crise das mudanças climáticas e a crise da perda da biodiversidade.

O recente estudo Bioeconomia da Sociobiodiversidade no Estado do Pará calculou a importância econômica das cadeias de valor de 30 produtos da sociobiodiversidade, incluindo aqueles mais conhecidos pelo mercado nacional, como açaí, palmito e castanha-do-pará e outros conhecidos apenas regionalmente, como murumuru, bacuri, murici e piquiá. 

O estudo estimou a geração de renda para além dos setores de coleta e produção, incluindo a agregação de valor que ocorre em cada elo das cadeias, da produção rural local às indústrias de beneficiamento, transformação e comércio.

As análises mostraram que, em 2019, os 30 produtos estudados geraram uma renda total de R$ 5,4 bilhões. Desse valor, cerca de um terço (R$ 1,9 bilhão) correspondeu à produção rural local, que representa a renda destinada diretamente a povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. As cadeias dos 30 produtos geraram também 224 mil empregos.

Alguns produtos lideram a renda total gerada na cadeia, como o açaí com R$ 3,7 bilhões, seguido do cacau amêndoa com R$ 1,3 bilhão, da castanha-do-pará com R$ 140,2 milhões e do palmito com R$ 89,1 milhões (veja abaixo):

Os dez produtos majoritariamente consumidos fora do estado do Pará (Foto: TNC Brasil)

Entretanto, dos 30 produtos analisados, 20 são majoritariamente consumidos apenas no estado do Pará e somam um valor adicionado total de apenas R$ 81,9 milhões (confira abaixo). A geração de renda nas cadeias de valor desse grupo é liderada pelo cupuaçu, seguido do urucum e do bacuri, que geraram R$ 25,9 milhões, R$ 15,2 milhões e R$ 11,5 milhões de valor adicionado, respectivamente, em 2019.

Os 20 produtos majoritariamente consumidos dentro do estado do Pará (Foto: TNC Brasil)

Em termos de geração de renda, se comparados com pecuária, um setor que historicamente exerce forte pressão sobre florestas nativas e que exige importantes esforços de controle do desmatamento, os produtos da sociobiodiversidade se colocam no mesmo patamar. Em 2019, o valor agregado da sociobiodiversidade no Pará foi de R$ 4,24 bilhões, enquanto a pecuária gerou R$ 4,25 bilhões.

Considerando que os produtos da sociobiodiversidade se fundamentam nas florestas em pé e que essas desempenham um papel importante na mitigação e adaptação às mudanças climáticas, entre outros serviços ambientais, o valor dessa cadeia deve ser ainda maior.

No estudo, a valoração do carbono foi incorporada à análise de projeção de renda de dez produtos da sociobiodiversidade, selecionados em função da importância econômica e da variedade de tipologia de uso. A partir de uma série histórica da evolução da renda de cada produto, estima-se que as cadeias dos produtos analisados podem chegar a R$ 170 bilhões em 2040, 40 vezes o valor atual, considerando a tendência do preço e da produção desses produtos.

O fortalecimento das atividades produtivas da sociobiodiversidade e a agregação de valor a partir de ciência e tecnologia, aliados à mensuração e remuneração dos serviços ambientais, são estratégias fundamentais para um novo modelo econômico na Amazônia. No entanto, ante a insuficiência de políticas públicas destinadas aos agentes dessa bioeconomia — comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores familiares –, várias ações estruturantes são necessárias a fim de se garantir a alavancagem desse modelo e a valorização da floresta em pé:

– investimento em ciência, tecnologia e inovação;
– acesso a crédito e assistência técnica para agregação de valor e acesso a novos mercados;
– desenvolvimento de sistema de bases de dados das cadeias de valor dos produtos;
– política fundiária, com a regularização dos territórios de uso comum como assentamentos, terras indígenas e territórios quilombolas;
– desenvolvimento de mecanismos financeiros, como pagamento por serviços ambientais, e rastreabilidade dos produtos; 
– política fiscal de redistribuição de renda gerada pelos produtos.

Respondendo à questão inicial, é possível dizer que a bioeconomia da floresta em pé, realizada por comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores familiares, aplica na prática as premissas do conceito na sua origem, ao reconhecer os limites ecológicos do bioma e adotar uma fronteira produtiva que garanta a sustentabilidade das atividades sem afetar a conservação da diversidade biológica e sociocultural.

Nesse sentido, é preciso desenvolver estratégias de políticas públicas compatíveis com as especificidades dessa economia no bioma amazônico e com a particularidade dos atores sociais envolvidos, de modo a garantir que a organização social e produtiva de geração de emprego e renda ande ao lado do fornecimento de serviços ambientais para o Brasil e para o mundo.

Fonte: Galileu