“Qual país do mundo tem uma política de preservação ambiental como a nossa? Os senhores estão convidados a conhecer a nossa Amazônia”.
A pergunta seguida de convite foi feita diante de chefes de Estado do mundo todo pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em seu discurso na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano passado.
A Amazônia fez parte de todos os três discursos de Bolsonaro na ONU e poderá ser citada no pronunciamento deste ano, previsto para a terça-feira (20/9).
Bolsonaro deverá chegar a Nova York na noite de segunda-feira (19/9), após passar pelo funeral da Rainha Elizabeth 2ª, em Londres. Como de praxe, o chefe de Estado brasileiro será o primeiro a discursar na sessão de debates da Assembleia-Geral da ONU.
Mas no momento em que Bolsonaro se direcionará a líderes do mundo inteiro, os dados registram altas no número de queimadas e no desmatamento da região, colocando em xeque a retórica do governo.
O sistema que monitora queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) detectou 74,7 mil focos de incêndio no bioma amazônico entre 1º de janeiro ano e 17 de setembro deste ano (os dados são disponibilizados com um atraso de dois dias).
Comparado ao mesmo período do ano passado, o aumento é de 51%. Analisando a série histórica, é o maior número de queimadas na Amazônia neste período desde 2010.
A situação é tão grave que, segundo portal G1, os satélites do Inpe registraram, no início de setembro, uma nuvem de fumaça espalhada por uma área de 5 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a 58% de toda a área do Brasil, que é de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
Desmatamento em alta
No quesito desmatamento, o cenário também é de alta. Segundo o sistema Prodes, do Inpe, que mede o desmatamento na Amazônia anualmente, nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a taxa de destruição da floresta foi superior a 10 mil quilômetros por ano.
No período compreendido entre agosto de 2020 e julho de 2021, o desmatamento acumulado chegou a 13 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase nove vezes a cidade de São Paulo.
Em 2022, os dados mostram que a tendência segue de alta. De acordo com o sistema de Detecção em Tempo Real (Deter), também do Inpe, foram desmatados 1,6 mil quilômetros de floresta na Amazônia em agosto deste ano, um aumento de 81% em relação ao mesmo mês de 2022. É a segunda maior taxa desde 2015.
Além do aumento nas queimadas e no desmatamento, a gestão Bolsonaro também é marcada pelo apoio às atividades do garimpo e a mineração em áreas hoje protegidas (o Executivo enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional para regulamentar a mineração em terras indígenas) e pelas dificuldades na cobrança de multas ambientais.
Durante sua campanha eleitoral, em 2018, Bolsonaro prometeu acabar com o que classificava como “indústria da multa” na área ambiental.
Em 2019, o governo promoveu mudanças nas regras de fiscalização ambiental como a criação de núcleos de conciliação.
A partir de então, os infratores ambientais tiveram a possibilidade de aguardar uma audiência de conciliação com o Ibama antes de as multas passarem a valer, de fato.
Ambientalistas criticaram a medida sob o argumento de que ela poderia atrasar a punição a crimes ambientais e levar boa parte das multas à prescrição, quando o Estado não tem mais condições de cobrar a multa ou punir o infrator.
O governo defendeu a medida alegando que ela aceleraria o recebimento de valores devidos e evitar a morosidade do processo burocrático.
Em agosto deste ano, a BBC News Brasil publicou uma reportagem mostrando que R$ 300 milhões em multas ambientais podem prescrever em 2022. Especialistas ouvidos alegam que a criação dos núcleos de conciliação pode ter relação com esse número.
À época, o Ibama não se manifestou sobre o assunto.
Na semana passada, a BBC News Brasil também questionou o Ibama, os ministérios do Meio Ambiente, a Presidência e a Vice-Presidência da República sobre a política ambiental do país e os dados apresentados pelo Inpe, mas não houve resposta.
Amazônia e soberania
O histórico dos discursos de Bolsonaro na ONU mostra que a Amazônia foi um dos temas mais fortemente mencionados por ele ao longo dos anos.
No primeiro discurso, em 2019, o termo “Amazônia” apareceu seis vezes. O tom misturava a defesa da soberania nacional e da política ambiental do país.
Na época, o Brasil vinha sendo alvo de críticas da comunidade internacional por conta do aumento no número de queimadas na região. Em agosto daquele ano, o presidente francês, Emmanuel Macron, fez uma postagem em seu perfil no Twitter com uma foto de queimada da Amazônia e dizendo: “Nossa casa está queimando. A floresta Amazônia”.
Em seu discurso, Bolsonaro reagiu e chegou a dizer, sem apresentar evidências, de que parte das queimadas seriam realizadas por povos indígenas.
Ele também Bolsonaro reconheceu que o Brasil tinha problemas, mas criticou o que classificou como “ataques sensacionalistas” movidos por um “espírito colonialista”.
“É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo. Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista”, disse Bolsonaro à época.
Em 2020, mesmo em meio à pandemia de covid-19, a pauta ambiental tomou mais espaço no discurso de Bolsonaro do que a pauta da saúde.
O trecho dedicado inteiramente à covid-19 teve 418 palavras. Já o trecho sobre meio ambiente teve 518.
Naquele ano, Bolsonaro voltou a atribuir parte das queimadas aos povos indígenas e a rebater as críticas de outros países à política ambiental brasileira.
“Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal. A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha, escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o Governo e o próprio Brasil”, afirmou.
Em 2021, a pauta ambientou também esteve presente no discurso de Bolsonaro, mas ficou em segundo plano. Foram apenas duas menções ao termo “Amazônia”.
Além de defender a política ambiental do governo, Bolsonaro enfatizou que 83% da matriz energética do país é de origem renovável.
‘Calcanhar de Aquiles’ e ‘antídoto’
Fontes do Itamaraty com quem a BBC News Brasil conversou avaliam que o desmatamento na Amazônia é, de fato, o “Calcanhar de Aquiles” da gestão ambiental do governo brasileiro.
Para contrabalancear e criar uma espécie de “antídoto” discursivo, os diplomatas recomendaram que o presidente incluísse em seu pronunciamento deste ano as realizações na área ambiental de seu governo. Entre elas está a apresentação da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil na Conferência das Nações Unidas para o Clima de 2021, a COP26.
O governo prometeu reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 37% até 2025 (tendo como base os dados de 2005), redução de 43% até 2030 e neutralidade nas emissões até 2050. Diplomatas avaliam a meta brasileira como mais ousada do que a de alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Apesar disso, no Brasil, ela é alvo de críticas de ambientalistas.
Eles ponderam que antes de anunciar a nova NDC, o governo fez uma revisão técnica no total de emissões do país em 2005. Essa revisão permitiria que o Brasil emitisse de 200 milhões a 400 milhões de toneladas a mais de gás carbônico até 2030.
Legado controverso
A ex-presidente do Ibama e atual especialista sênior em políticas públicas da organização não-governamental Observatório do Clima, Suely Araújo, afirma que Bolsonaro chegará a Nova York com um legado de “implosão completa da política ambiental” do Brasil.
“O governo Bolsonaro deixa um legado de implosão completa da política ambiental, praticamente desconstruíram quarenta anos em quatro nesse campo de políticas públicas. Além de perderem o controle do desmatamento na Amazônia e nos outros biomas, estimularam invasão de terras indígenas, deram respaldo para o garimpo irregular, deslegitimaram os órgãos ambientais e seus agentes”, disse.
Na avaliação de Suely Araújo, Bolsonaro terá dificuldade para convencer a comunidade internacional sobre o sucesso de sua política ambiental.
“É impossível convencer qualquer um de que o governo atual teve atenção com a Amazônia ou outros biomas […] A realidade é de muita destruição. Narrativas falsas e simulacros de ações governamentais têm chance zero de se sustentar junto à comunidade internacional”, afirmou a especialista.
A coordenadora de Política e Direito do Instituto Socioambiental, Adriana Ramos, disse que Bolsonaro teria sido “coerente” em sua gestão ambiental com aquilo que prometeu durante a campanha.
“Estamos chegando ao fim do primeiro mandato de Bolsonaro com uma política para a Amazônia coerente com tudo o que ele defendeu. Uma política que não combateu a criminalidade, que negou o desmatamento, as queimadas e que teve a defesa de atividades ilegais como o garimpo”, avaliou Adriana Ramos.
Assim como Suely Araújo, Adriana Ramos diz que seria impossível convencer a comunidade internacional diante dos dados atuais da Amazônia.
“Não tem como defender a gestão da Amazônia diante de tudo o que ele disse e dos dados que temos disponíveis. Ele nunca vai conseguir convencer a comunidade internacional de que cuidou bem da Amazônia”, disse.
A BBC News Brasil enviou questionamentos sobre o assunto para os ministérios do Meio Ambiente, das Relações Internacionais, para a Presidência e para Vice-Presidência da República, mas nenhum deles respondeu.
Fonte: BBC