Com quatro bois por habitante, estado amazônico vive alta explosiva do desmatamento e reelege governador alinhado a Bolsonaro. Rumo põe à prova o legado de Chico Mendes.
Berço de movimentos de resistência que ajudaram a fundar importantes políticas ambientais, o estado do Acre, onde viveu Chico Mendes até ser assassinado, parece estar se afastando desse legado, segundo o resultado das últimas eleições.
Alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, o atual governador Gladson Cameli (PP) foi reeleito no primeiro turno com ampla vantagem sobre os oponentes, com 56,75% dos votos. Jorge Viana (PT), liderança emblemática no estado e ex-governador, ficou em segundo, com 24%.
Viana é um dos fundadores da “florestania”, ou “governo da floresta”. O termo, criado por um grupo de políticos que compôs a Frente Popular do Acre (FPA) no fim da década de 1990, esteve no centro de seguidas administrações petistas, de 1999 a 2018.
Angela Mendes, coordenadora do Comitê Chico Mendes, que leva o nome do pai dela, se diz surpresa com esse cenário. “O governo atual, totalmente voltado para o agronegócio, não enxerga o potencial da floresta, não valoriza os conhecimentos tradicionais desta população”, lamenta.
Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente que iniciou sua vida política no Acre e assistiu ao nascimento da FPA, olha para o estado com preocupação. “É muito triste ver toda a luta que comecei com 17 anos, ao lado de Chico Mendes, se tornando esta terra arrasada que estamos vendo no Acre e na Amazônia”, afirma em entrevista à DW Brasil.
Mais agro, menos floresta
Aos 43 anos, Cameli é conhecido por publicar vídeos fazendo dancinhas em redes sociais e tem experiência na vida pública. Como deputado federal teve dois mandatos (2007 a 2015), foi eleito senador e, em 2018, concorreu e venceu como governador no estado.
Para Israel Souza, professor do Instituto Federal do Acre (Ifac) em Cruzeiro do Sul, Cameli “surfa” mais na onda antipetista do que na bolsonarista. “Ele é um político ‘liso’, ‘ensaboado’. Não tem compromisso fechado, não defende bandeiras, só quando lhe é conveniente”, analisa Souza, que coordena atualmente o grupo de pesquisa “Religião e política no Brasil atual” no Ifac.
“É aí que reside o perigo”, comenta Angela Mendes sobre a falta de uma ideologia clara de Cameli. “Quem está próximo dele são pessoas ligadas ao agronegócio, que ajudam a impulsionar o desmatamento, exploração madeireira do Acre.”
A ênfase dada ao agronegócio, com menor preocupação com a floresta e seus povos, é perceptível nos números, argumenta Souza. Desde 2018, o rebanho bovino do Acre saltou de 3,3 milhões para mais de 4 milhões – um crescimento de 22%, apontam dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número de cabeças de gado é quatro vezes maior que o da população, estimada em 906 mil.
Desde então, o desmatamento também subiu, e num ritmo mais intenso. O salto foi de 444 quilômetros quadrados em 2018 para 889 em 2021, um aumento de 100%.
“Vemos esse avanço [do desmatamento] com uso deste velho discurso, de que proteger a floresta é impedir o desenvolvimento, o que é uma inverdade. Essa visão de destruição, da expansão predatória da fronteira agrícola, está muito forte na Amazônia”, avalia Marina Silva, ex-senadora pelo Acre e recém-eleita deputada federal por São Paulo pelo partido Rede.
“Nosso maior problema não é o desmatamento”
Questionado, Cameli negou que a destruição da Floresta Amazônica seja o principal problema ambiental no estado. “Sou contra o desmatamento e, no Acre, nosso maior problema não é o desmatamento, mas as queimadas de áreas degradadas”, respondeu por e-mail à DW Brasil.
Indagado sobre o reflexo no estado do desmonte das políticas ambientais promovido pelo governo Bolsonaro, Cameli não comentou o assunto de forma específica. Disse que vai ampliar as ações de monitoramento, fiscalização e de educação ambiental.
Para ele, o sistema de licenciamento ambiental seria um vilão da destruição. “Hoje [o licenciamento] mais prejudica do que ajuda a preservação ambiental, daí se tem cada vez mais na Amazônia desmatamentos ilegais”, justifica.
De competência dos estados, o licenciamento ambiental é obrigatório para construção, instalação, ampliação e funcionamento de empreendimentos que têm potencial para causar degradação ambiental.
O modelo da florestania
Quando surgiu, em 1999, a FPA se apresentava como um novo modelo de desenvolvimento sustentável, um contraponto àquele trazido pelos migrantes do sul do país a partir da década de 1970, que se calcava na expansão da pecuária, no desmatamento e na grilagem de terras.
Com a promessa de implantar uma economia de base florestal e valorização de suas populações tradicionais – legados do líder seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988 –, Jorge Viana foi eleito governador em 1998. Sem dinheiro em caixa, Viana recorreu a programas internacionais de crédito que demonstravam interesse em projetos do tipo.
Para o pesquisador Israel Souza, os efeitos práticos dessa política são dúbios. “Apenas uma Terra Indígena foi homologada nesses anos de governo de PT. Vimos também uma intensificação da pressão sobre os moradores de reservas para aderirem ao manejo madeireiro, o que era considerado danoso por muitos, que viam a impossibilidade de manterem seus modos de vida, com seus costumes e tradições, apenas vendendo madeira”, critica.
Miguel Scarcello, secretário-geral e cofundador da SOS Amazônia, lamenta que as parcerias internacionais não tenham dado o efeito rápido esperado. “Seringueiros eram uma referência há 30 anos, criaram todo um movimento, tinham influência, mas perderam essa força. Parece que essa tradição não está sendo passada de pai para filho. Não tem uma geração que se sinta apropriada dessa herança”, pontua.
Um modelo de médio prazo
Sonaira Silva, professora da Universidade Federal do Acre, lamenta que o modelo de agropecuária usado em outros estados amazônicos, como Rondônia, seja propagandeado como bem-sucedido.
“É sucesso para quem? Para pouquíssimos. E o custo ambiental é enorme. O rio que abastece Rio Branco chegou a sua menor cota histórica neste ano. A floresta preservada é um escudo para controlar os efeitos das mudanças climáticas que já estão em curso na região. Se continuar desmatando, queimando, fragmentando a floresta, não vai ter água para as pessoas e para o agro”, argumenta a cientista.
Na visão de Marina Silva, a experiência pregressa não pode ser esquecida. “A quebra da lógica de desenvolvimento que destrói a floresta e elimina populações indígenas e tradicionais e a implantação de um desenvolvimento sustentável, de forma democrática, que respeita meio ambiente e pessoas, é processo de médio e longo prazo. Afinal, esse sistema predatório já tem mais de 400 anos. E é ele que recebe a maioria dos incentivos, estímulos, dinheiro”, comenta.
Angela Mendes afirma que os próximos quatro anos no Acre serão de resistência da sociedade civil. “Não vamos dar sossego ao governo, vamos monitorar suas ações. Esse é um estado que foi uma grande referência e que precisa cuidar de sua história e da sua trajetória de evolução.”
Fonte: Deutsche Welle