A natureza é a farmácia original do mundo – retornar às raízes da medicina pode ajudar a preencher as lacunas na descoberta de medicamentos

Enquanto os humanos evoluíram ao longo de um período de aproximadamente 6 milhões de anos, os avanços na medicina moderna como a conhecemos hoje só aconteceram nos séculos 19 e 20. Então, como os humanos sobreviveram com sucesso por milhões de anos de doenças e enfermidades sem medicamentos e tratamentos modernos?

Essa foi uma pergunta que me fez pensar quando a pandemia do COVID-19 atingiu minha família na Índia em abril de 2020, quando havia acesso muito limitado a vacinas e tratamentos. Todos os meus anos trabalhando como cientista biomédico, exigindo evidências empíricas e testes formais de segurança antes de usar um tratamento, ficaram em segundo plano enquanto procurava terapias em potencial de qualquer fonte que pudesse encontrar, sejam artigos científicos ou informais. Eu estava pronto para tentar qualquer medicina experimental ou tradicional que pudesse ter uma chance de ajudar meu pai.

Felizmente, meu pai se recuperou. Não posso dizer com certeza se algum dos medicamentos tradicionais que usamos realmente o ajudou a se recuperar. Mas como alguém cuja carreira científica inteira se concentrou na descoberta de novos medicamentos a partir de compostos químicos encontrados na natureza, me perguntei se havia uma molécula nos medicamentos tradicionais que usávamos que pudesse ser isolada e otimizada para tratar o COVID-19.

Cientistas como eu têm procurado novos medicamentos para várias doenças, purificando compostos existentes na natureza em vez de sintetizar novos em laboratório. Do COVID-19 à resistência aos antibióticos, acredito que os sucessos do passado e as novas tecnologias apontam para o tremendo potencial de desenvolvimento de novos medicamentos a partir de produtos naturais.

A vantagem do produto natural

Os humanos evoluíram com o resto da natureza ao longo do tempo, e obter remédios é talvez uma das interações mais importantes que as pessoas continuam a ter com o mundo natural. Análises de DNA mostraram que os primeiros humanos podem ter tratado abscessos dentários com álamo, contendo o ingrediente ativo da aspirina, e molde (bolor) de Penicillium, contendo o antibiótico penicilina.

Os pesquisadores chamam as moléculas como as que dão ao álamo e ao Penicillium seus efeitos biológicos de produtos naturais porque são produzidas por organismos vivos como micróbios, fungos, corais e plantas. Esses produtos naturais evoluíram para serem estruturalmente “otimizados” para servir a funções biológicas específicas, principalmente para deter predadores ou obter uma vantagem de sobrevivência em um ambiente específico e sobre outros concorrentes.

Como os produtos naturais já são feitos para funcionar em criaturas vivas, isso os torna especialmente atraentes como fonte para a descoberta de medicamentos. Embora as proteínas possam parecer diferentes nos variados organismos, muitas têm características e funções estruturais semelhantes entre as espécies. Isso pode ajudar a facilitar a busca por proteínas relacionadas que funcionam nas pessoas.

Corredor da fama de produtos naturais

Produtos naturais derivados de micróbios e plantas são o maior recurso para a descoberta de medicamentos para a medicina moderna. Caso em questão, a descoberta do antibiótico penicilina em 1940 a partir do fungo Penicillium permitiu que os médicos tratassem infecções anteriormente fatais e iniciou a era dos antibióticos.

Em setembro de 2019, mais de 50% dos medicamentos aprovados pela FDA (conhecido como Federal Drug Administration, o órgão governamental dos EUA que faz o controle dos alimentos) atualmente disponíveis são derivados direta ou indiretamente de produtos naturais. Um dos medicamentos mais vendidos das últimas duas décadas, a atorvastatina (Lipitor), um medicamento anti-colesterol, é derivado de um composto produzido pelo fungo Penicillium citrinum. De 1992 a 2017, as vendas de atorvastatina nos EUA totalizaram US$ 94,67 bilhões.

Outros exemplos proeminentes de medicamentos derivados de produtos naturais atualmente utilizados incluem o antifúngico anfotericina B, isolado da bactéria do solo Streptomyces nodosus, o quimioterápico taxol, isolado da casca do teixo do Pacífico (conhecida como Yem do Pacífico), e o imunossupressor ciclosporina, isolado do fungo Tolypocladium inflatum.

Acredito que tratamentos não descobertos para uma ampla gama de doenças estão bem debaixo de nossos narizes em produtos naturais. Em janeiro de 2021, o FDA aprovou a voclosporina (Lupkynis), isolada do fungo Tolypocladium inflatum, para tratar o lúpus. Recentemente, os pesquisadores estão analisando o canabidiol (CBD) e outros compostos canabinoides como uma maneira potencial de prevenir ou tratar o COVID-19. A FDA ainda não autorizou nenhum medicamento contendo CBD para COVID-19.

Desafios na descoberta de produtos naturais

Os pesquisadores estão cada vez mais aptos a usar novas tecnologias e métodos de triagem para isolar produtos naturais não identificados anteriormente. A triagem de produtos naturais normalmente envolve a busca por uma grande biblioteca de extratos de fontes naturais. O Natural Product Drug Discovery Core (Núcleo de descoberta de medicamentos de produtos naturais), que eu fundei com meu colega David Sherman na Universidade de Michigan, por exemplo, procura por potenciais alvos de medicamentos em uma biblioteca contendo cerca de 50.000 extratos de produtos naturais, cada um contendo de 30 a 50 moléculas para testar.

No entanto, a descoberta de medicamentos à base de produtos naturais não é isenta de desafios. Desde a década de 1980, os produtos naturais caíram em desuso devido a uma série de desafios. Isso inclui dificuldade de acesso a métodos de triagem caros e limitações na tecnologia que não é capaz de analisar completamente a complexidade dos produtos naturais. Há também considerações ecológicas e legais, como acessar amostras de forma sustentável e manter a biodiversidade. As empresas farmacêuticas reduziram seus programas de descoberta de medicamentos baseados em produtos naturais, e o financiamento federal também está em falta devido à lucratividade limitada.

Encontrar novos medicamentos na natureza

Muitas vezes, novos medicamentos são necessários para emergências de saúde sem precedentes, como o COVID-19. Eles também são necessários para uma emergência de saúde que começou muito antes da pandemia – resistência a antibióticos.

Um relatório de setembro de 2017 da Organização Mundial da Saúde reafirmou que a resistência aos antibióticos é uma emergência de saúde global que comprometerá seriamente o progresso da medicina moderna. Se os antibióticos atuais perderem sua eficácia, intervenções médicas comuns, como cesarianas e tratamentos contra o câncer, podem se tornar incrivelmente arriscadas. O transplante pode tornar-se virtualmente impossível. Micróbios resistentes a antibióticos foram a causa direta de cerca de 1,27 milhão de mortes em 2019. Estima-se que tratar apenas seis dos 18 micróbios que representam uma ameaça à resistência a antibióticos custa mais de US$ 4,6 bilhões anualmente apenas nos EUA. A pandemia de COVID-19 reverteu o progresso anterior na abordagem desse problema, com um aumento de 15% nas infecções resistentes aos antimicrobianos de 2019 a 2020. Em contraste, as infecções resistentes aos antimicrobianos caíram 27% de 2012 a 2017. Entre as prováveis ​​causas de este retrocesso foram aumentos no uso de antibióticos, dificuldade em seguir as diretrizes de controle de infecção e internações hospitalares mais longas.

De acordo com estimativas recentes, cerca de 75% dos antibióticos aprovados são derivados de produtos naturais. Existem milhares de microrganismos no oceano para serem explorados como potenciais fontes de candidatos a medicamentos, para não mencionar todos os que estão em terra. Na busca por novos medicamentos para combater a resistência aos antibióticos, os produtos naturais ainda podem ser o caminho a percorrer.

Fonte: The Conversation / Ashu Tripathi
Tradução: Redação Ambientebrasil / Maria Beatriz Ayello Leite
Para ler a reportagem original em inglês acesse:
https://theconversation.com/nature-is-the-worlds-original-pharmacy-returning-to-medicines-roots-could-help-fill-drug-discovery-gaps-176963