Estudos nacionais e internacionais indicam que o isolamento social fez com que poluentes atmosféricos diminuíssem. Entenda as consequências para o meio ambiente e sua saúde
Se a pandemia de Covid-19 trouxe efeitos positivos para o planeta, pode-se dizer que a diminuição da poluição foi um deles. No mundo inteiro, enquanto as pessoas se isolaram em casa para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, a qualidade do ar apresentou melhoras significativas. Um estudo da Universidade de Toronto, no Canadá, divulgado em abril, mostrou que o nível de poluição atmosférica diminuiu 40% em cidades asiáticas e da Europa (Wuhan, Hong Kong, Kyoto, Milão, Seul e Xangai) que declararam estado de emergência em fevereiro. E não foi diferente no resto do globo — muito menos no Brasil.
Desde o dia 20 de março, quando começou o isolamento social em São Paulo, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) constatou que a menor circulação de carros, motos e ônibus na capital paulista levou a uma melhora na qualidade do ar: entre os dias 20 e 30 de março, todas as 29 estações de monitoramento da cidade registraram qualidade do ar “boa” para poluentes primários, aqueles emitidos diretamente por fontes poluidoras, como os meios de transporte.
A melhora chamou a atenção de especialistas, que resolveram investigar o fenômeno mais a fundo. “Como uma grande parte deles [os veículos] deixou de circular, fica clara a diminuição de poluentes primários como o monóxido de carbono [CO, emitido principalmente pelos carros] e os óxidos de nitrogênio [NOx, emitidos sobretudo por veículos a diesel], que pode ser confirmada nos dados atmosféricos”, disse à Agência Fapesp Maria de Fátima Andrade, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP).
Em uma análise feita exclusivamente para a Agência Fapesp, Andrade percebeu também uma diminuição de aproximadamente 30% no material particulado inalável. Trata-se dos poluentes MP 10 — material particulado com diâmetro até 10 micrômetros, relacionado à ação dos veículos que ressuspendem a poeira do solo — e MP 2,5, com até 2,5 micrômetros, formado por processos secundários a partir da queima de combustível.
Em um artigo publicado no último dia 1º de julho no periódico Allergologia et Immunopathologia, cientistas brasileiros destacaram os efeitos do isolamento sobre a poluição em outras regiões do país. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o ar apresentou reduções significativas nos níveis de CO e dióxido de nitrogênio (NO2), gás poluente associado a diversas complicações de saúde e ambientais. Já em Fortaleza, um levantamento conduzido por cientistas da Universidade Estadual do Ceará (UECE) indicou redução de 50% nos níveis de gás ozônio (O3).
Em Brasília, imagens de satélite evidenciaram queda de NO2 devido à redução no número de viajantes para a capital federal. E Belo Horizonte apresentou melhoras em PM 2,5 e NO2 com a redução na frota de veículos.
Ozônio em alta
Mas nem tudo são flores. Embora o período de isolamento tenha contribuído para reduzir alguns poluentes, não foi suficiente para limpar totalmente o ar de grandes cidades. Em um artigo divulgado em maio, o engenheiro e geógrafo David Tsai, coordenador da área de emissões do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), em São Paulo, comparou os índices de concentração de partículas inaláveis finas (o material particulado) e O3 na capital paulista — dois poluentes que frequentemente se encontram acima dos níveis indicados na cidade. Ele analisou as taxas nos meses de março e abril de 2017, 2018, 2019 e 2020. “Deu para notar reduções no material particulado, mas o gás ozônio continuou alto, acima da média dos últimos três anos”, relata.
Entre as estações que monitoram o gás ozônio, a de Itaquera, na zona leste de São Paulo, chamou a atenção por ultrapassar os níveis dos três anos anteriores, alcançando índice considerado “muito ruim” de qualidade do ar no período analisado. Embora o O3 possa ser formado naturalmente — e desempenhe uma função importante ao barrar raios ultravioleta do tipo B (UVB) —, ele acaba se formando em quantidades acima do ideal como consequência de outros poluentes emitidos pela atividade humana.
Para Tsai, os índices de ozônio se mantiveram porque as emissões não diminuíram o suficiente para limpar completamente o ar. E ele avisa: assim que o isolamento social acabar, a poluição também voltará aos níveis de antes da pandemia.
Menos raios
Outro efeito de ter parte da população em casa durante a quarentena foi a diminuição dos raios que caíram sobre a cidade de São Paulo. É o que observou um estudo conduzido pelo engenheiro Osmar Pinto Junior, coordenador do Grupo de Eletricidade Atmosférica (ELAT) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). De acordo com o levantamento, entre 20 de março e 2 de abril de 2020, apenas 4% do total das descargas elétricas atingiram o solo paulistano. Em anos anteriores, os percentuais para esse período variaram de 40% a 63%, de acordo com o ELAT/INPE.
Isso indica que as supertempestades (com mais de 3 mil raios) não são consequência apenas das “ilhas de calor” formadas em grandes cidades, como se pensava, mas também da poluição. “Este estudo foi sorte [devido ao isolamento social]. Não vamos conseguir observá-lo de novo”, lamenta Osmar Pinto.
Bom para a saúde?
Ainda não há estudos conclusivos sobre os efeitos da poluição nos sintomas da doença causada pelo novo coronavírus — isto é, se estar em um ambiente poluído agrava ou não a manifestação da Covid-19. Mas há suspeita de que essa relação exista, sim.
Um artigo publicado em abril pelo Centro para Pesquisa de Energia e Limpeza do Ar (CREA, na sigla em inglês), instituição finlandesa de pesquisa privada, ressalta que, além de contribuir para condições associadas ao agravamento da Covid-19 (como doenças cardiovasculares e câncer), graus elevados de poluição facilitam infecções virais ao prejudicar as defesas naturais do organismo. Um estudo de 2018 feito com mais de 10 mil pessoas nos Estados Unidos mostrou que breves picos de MP 2,5 já são suficientes para provocar doenças respiratórias que exigem hospitalização.
Um trabalho da Universidade Harvard, também nos EUA, apresentado em abril em uma versão pré-print (sem revisão por pares) indicou que lugares com maior concentração de MP 2,5 têm maior risco de morte por Covid-19. E isso é reiterado por investigações conduzidas em surtos de outros coronavírus: no início dos anos 2000, o ar poluído foi associado a um maior número de óbitos por Sars (Sars-CoV-1), doença que surgiu na China nesse período.
Embora ainda não se possa dizer que isso se aplica ao novo coronavírus, respirar um ar mais limpo não faz mal a ninguém. Aliás, salva vidas! Em um outro texto publicado em 30 de abril, a equipe do CREA demonstrou que a melhora na qualidade do ar naquele mês em diversos países da Europa que estavam praticando quarentena ou lockdown evitou 11 mil mortes associadas diretamente à poluição no continente.
Fica, portanto, a lição: que bom seria se pudéssemos aliar a liberdade da vida pré-pandemia ao que os novos hábitos nos mostraram. Tomara que a ciência — e cada um de nós — coloque esses aprendizados em prática para um futuro mais saudável.
Fonte: Revista Galileu